Igor Natusch

Uma viagem no tempo em marcha a ré

Igor Natusch
20 de novembro de 2019

O governo brasileiro está determinado a descobrir a fórmula para a viagem no tempo. De acordo com algumas correntes da física, a viagem ao futuro é teoricamente possível – mas o governo Bolsonaro detesta a ciência com grande paixão, então a opção natural é seguir em sentido oposto. Aos invés de descobrir as maravilhas do futuro, o esforço é para reviver o  passado – fazendo uso de métodos arcaicos e grosseiros, mas que até aqui se mostram bastante funcionais.

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É a viagem no tempo em marcha a ré
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A paixão pelo passado, como a gente sabe, é uma característica fundamental dos movimentos reacionários. Mas não é um passado qualquer, é claro: tem que ser um passado idealizado, onde só aconteceram as coisas que sejam do agrado, com o mínimo de nuances possível. Se for o caso, dá até para editar o passado, ou fazer uma espécie de peça teatral dele, mesmo que fique bem pouco parecido com o passado que de fato existiu. Antigamente é que era bom, dirão os viajantes do tempo em marcha ré – e, como nos filmes e livros de ficção científica, vão alterando o mundo do passado sem pensar nas consequências.

Para ser um bom viajante do tempo em marcha a ré, é fundamental ser uma figura lamentável no presente. Ajuda muito se você mentir qualificações acadêmicas que não tem, combater ameaças conspiratórias que não existem ou sentir um recalque imenso pela diversão que os outros talvez nem tenham de verdade, mas que você não consegue suportar nem imaginar que tenham. Do mesmo modo que o bom soldado de guerra é o que odeia o inimigo sem fazer a menor ideia do porquê, o bom viajante ao passado precisa ter raiva do presente – e, é claro, precisa morrer de medo de qualquer coisa que está por vir.

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Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil

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A viagem no tempo em marcha a ré é uma tarefa que se cumpre em duas esferas. Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil. A partir daí, é o esforço para vender o pacote ideológico básico: que o presente é nojento, podre e corrompido, e que o futuro ideal não é uma caminhada para frente, mas o resgate do passado tão lindo que os malvados destruíram com suas conspirações e libertinagens.

Parece absurdo, mas convence muita gente. Porque a angústia une as pessoas: todo mundo tem seus medos, suas incertezas, suas próprias carências e recalques. Quando se consegue direcionar toda essa frustração em um único feixe de energia, abre-se enfim o túnel para o passado: a vontade coletiva vira combustível, e o surto reacionário direciona nossa máquina do tempo rumo ao que está lá longe e, ao mesmo tempo, nunca existiu.

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O lado mais funcional desse método é que não há surpresas: a gente encontra lá atrás, no fim do túnel, exatamente o mundo que nossa imaginação inventou antes de partir
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No Brasil que os viajantes de marcha a ré querem a todo custo resgatar, o Império foi uma maravilha, a família imperial guiava a nação mais progressista do mundo, sorriam todos em um Brasil cosmopolita e pulsante de prosperidade. A Proclamação da República foi, nessa curiosa fibra do tempo, um erro que, quem sabe, ainda dá tempo de corrigir. Um Brasil onde racismo não existia – afinal de conta, ninguém falava em racismo, e o racismo só existe porque insistimos em falar nele, não é? Onde as mulheres eram felizes servindo aos maridos como donas do lar, onde a arte não falava de bandalheiras, onde os índios morriam em silêncio sem encher o saco. Onde a Terra inteira flutuava no espaço, perfeita em sua planitude sem curvas, com os astros celestes flutuando sobre o berço esplêndido tal móbiles em um quarto de bebê.

Se você olhar com cuidado, vai perceber que se trata de um passado horroroso: nele, a grande maioria das pessoas só existe para sofrer, ou nem isso. Mas não tem problema. Na revolucionária anti-ciência da viagem no tempo em marcha a ré, dá sempre para ir arrumando o passado pelo caminho, e qualquer coisa é só colocar a culpa nos malvados esquerdopatas de sempre.

Foto: Reprodução/YouTube

Voos Literários

Um novo disco inspirado no livro A Cor Púrpura

Flávia Cunha
21 de maio de 2019

Valéria Custódio é uma jovem cantora e compositora de Mogi das Cruzes (SP) que tive a felicidade de conhecer durante minha atuação na área de produção cultural. A Valéria veio a Porto Alegre para um show e eu a acompanhei em uma entrevista. O curto percurso de ida e volta até a FM Cultura e alguns minutos nos bastidores da rádio antes de ela entrar no ar foram suficientes para eu admirá-la como ser humano. Depois, a ouvi cantando. A voz impressiona. E a precisão ao tocar violão demonstrou, para mim, que ali estava uma artista completa.

E quando eu soube que o nome do EP da cantora, que será lançado em julho de 2019, se chamaria Púrpura em homenagem ao livro da escritora norte-americana Alice Walker, decidi convidá-la para escrever sobre essa inspiração que sai da literatura e vai para a música.  

Com vocês, Valéria Custódio:

Quando abri o livro, já havia assistido ao filme A Cor Púrpura. E não foi um livro fácil de ler, embora a escrita seja bem dinâmica.

Como já conhecia o enredo, sabia que a história era muito emocionante e verdadeira. E talvez, pelo fato de ser uma mulher escrevendo, o livro me tocou ainda mais. Agora observando melhor e revisitando as ideias que tive, vejo como essa história foi um divisor de águas gigantesco na minha vida.

Primeiro pela questão racial, é claro. Me ajudou a não ter uma atitude tão impulsiva nas discussões sobre preconceito, mas mais pensada. Fui realmente querer saber quais eram as minhas origens e das minhas irmãs. Porque a história do livro fala desse amor infinito entre duas irmãs e isso me tocou muito, pois também sou apaixonada pelos meus irmãos.

A Cor Púrpura eu ousaria dizer que me deu novos olhos e me amadureceu como artista, pois conheci um universo artístico muito maior depois dessa história, além de ter me amadurecido como ser humano, como mulher.

É um livro para a vida toda e com a inspiração que veio dele, eu apresento as minhas canções para o público de uma forma muito honesta e verdadeira, pois eu fui tocada por uma história escrita pela Alice Walker, uma mulher negra, da forma mais verdadeira possível.

O meu trabalho pode nem chegar nela, mas de todo o meu coração eu agradeço pela belíssima obra que ela escreveu.”

Valéria Custódio lançou, na semana passada, o single Pra Você que faz parte do EP Púrpura.  Confiram aqui, realmente vale a pena.

Para quem ainda não leu o livro A Cor Púrpura, a obra mostra a sofrida vida de Celie, uma mulher negra, pobre e quase analfabeta no Sul dos Estados Unidos, na primeira metade do século XX. O relato é feito a partir de cartas escritas pela personagem, que sofre abusos sexuais desde a infância. O enredo é tristemente atual, ao abordar temas como racismo, preconceito, desigualdade de gênero e diferenças sociais. O premiado filme de Steven Spielberg foi lançado em 1986. 

Voos Literários

O jazz, o racismo e as eleições 2018

Flávia Cunha
2 de outubro de 2018

Vocês já devem ter ouvido por aí a canção Strange Fruit, imortalizada na voz de Billie Holiday, mesmo que não sejam ouvintes habituais de jazz. Da minha parte, só fiquei sabendo recentemente do que se tratavam os “estranhos frutos” mencionados na música. A referência tem relação com a foto abaixo, que retrata os enforcamentos de negros nos Estados Unidos, principalmente nos estados sulistas, notoriamente racistas. Os linchamentos começaram no fim do século 19 e mantiveram-se (inacreditavelmente, eu diria) até a década de 1930.

Em 1939, Billie Holiday lançou a canção, que virou um símbolo contra a opressão aos negros norte-americanos mas enfrentou resistência de parte dos brancos, que não concordavam com o teor da música. Confira a letra completa da canção e a tradução aqui.

Aprendi isso (e muito mais) em um dos encontros da série de Audições Comentadas de Jazz, promovida pelo radialista e expert no assunto Paulo Moreira, realizada no dia 13 de setembro, no Instituto Ling. Durante o bate-papo entremeado por gravações de Billie Holiday, Moreira citou a história da canção Strange Fruit. Depois, a cantora Camila Toledo subiu ao palco e, antes de cantar essa música, leu o seguinte trecho do livro Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção:

Holiday cantou, sim, Strange Fruit para grandes plateias negras. […] Cantou a canção diversas vezes no famoso Apollo Theater, no Harlem. Jack Schiffmann, cuja família administrava o Apollo disse […] em suas memórias […] o que aconteceu quando ela finalmente se apresentou lá. ‘Se você a ouvisse em qualquer outro lugar, ficaria tocado e mais nada’, ele escreveu. ‘Mas no Apollo a canção assumia um profundo simbolismo. Não só você enxergava, em todo seu horror gráfico aquele “fruto” como via em Billie Holiday a esposa, a irmã ou a mãe da vítima, debaixo da árvore, quase prostrada de tristeza e fúria. Talvez se fosse essa sua índole – como era certamente a das platéias no Apollo – você visse e sentisse a agonia de outra vítima de linchamento. […] E quando ela arrancava as últimas palavras de sua boca, não havia uma única alma na platéia, negra ou branca, que não se sentisse meio estrangulada. Seguia-se um momento de silêncio pesado, opressivo, e então uma espécie de som sussurrante que eu nunca tinha ouvido antes. Era o som de quase 2 mil pessoas suspirando.”

Ainda não entendeu o que o assunto tem a ver com o momento político atual brasileiro?

Pense em relativização do racismo. Reflita sobre o questionamento da necessidade de cotas raciais em um país com uma “Lei Áurea” que condenou os negros à pobreza imediata, ao conceder uma libertação sem nenhum tipo de indenização financeira e sem facilitar o acesso à educação, moradia ou a empregos. Para os racistas brasileiras, é mera coincidência (para não dizer coisa pior) que, de 1888 para cá, a maioria da população carcerária do Brasil seja composta por negros, conforme aponta levantamento divulgado em 2017 pelo governo federal.  

E para ampliar os horizontes de quem precisa e apoiar aqueles que batalham pela Cultura em Porto Alegre (RS) que divulgo  novas oportunidades de conferir a cantora (e ativista da causa negra) Camila Toledo, com o projeto Camila e a Ponte. No dia 21 de outubro, a apresentação será no London Pub e, no dia 25, no barco Cisne Branco.

Além de homenagear lindamente as canções dessa diva do jazz, Camila também faz a leitura de trechos de outros livros além do mencionado nesse texto. Vale a pena conferir!

 

Airan Albino

Consciência e invisibilidade negra

Airan Albino
20 de novembro de 2017

Dia 20 de novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra. A data foi escolhida em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), principal referência negra na história do Brasil. Todos nós sabemos disso, do porquê ser feriado em algumas cidades. Entretanto, uma coisa não pode passar batido nessas orações: referência.

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Zumbi é, sim, o primeiro nome em que pensamos quando falamos de negritude no país, mas ele não é um bastião, o único

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Temos muitas referências negras na nossa história e, propositalmente, não sabemos de sua existência. Em conversas com amigos – negros e brancos de diferentes classes sociais – fiquei assustado ao saber do desconhecimento de nomes como Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994). Esses dois foram líderes contemporâneos que tiveram impacto na cultura e política negra brasileira no último século, mas por que não os conhecemos? Ou pior: por que não vamos atrás de suas histórias?

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Porque o racismo age de muitas formas e invisibilizar o negro é uma delas

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Sou de Porto Alegre, nascido e criado, e só em 2015 passei a conhecer eventos de identidade e resistência do povo negro da cidade. Porto Alegre é uma cidade com uma segregação absurda. Todos nós, moradores da Capital, sabemos disso. No momento em que falamos os nomes dos bairros Moinhos de Vento e Restinga, conseguimos enxergar a cor dos moradores. Conseguimos fazer as associações de branco e negro; rico e pobre; central e periférico; bom e ruim; organizado e bagunçado; limpo e sujo. E fazemos isso sem esforço nenhum, “é natural.”

O Dia Nacional da Consciência Negra é um dia para que se reflita em cima de questões como essa, a da invisibilidade. Ele serve para que o debate do racismo seja levado ao maior número de pessoas possível, brancas e/ou negras. Ele serve para pensarmos em formas de mudar essas associações de bom e ruim, no momento em que falamos sobre pessoas brancas e pessoas negras. Ele serve para que as referências negras não sejam esquecidas, mas, sim, estudadas e respeitadas.

E esse momento de reflexão sobre a invisibilidade pode começar em Porto Alegre, uma das cidades mais ricas em cultura e história negra do Brasil. Na cidade que abrigou uma das maiores referências negras do país: Oliveira Silveira (1941-2009). Na cidade em que se iniciou o movimento e o projeto para que o 20 de novembro fosse escolhido como o dia da nossa consciência negra.

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*Na foto, Oliveira Silveira, poeta, militante do Movimento Negro e um dos líderes da campanha pelo reconhecimento do Dia Nacional da Consciência Negra (Divulgação)

Samir Oliveira

Não em nosso nome!

Colaborador Vós
16 de novembro de 2017
Foto: Beto Barata/PR

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, traz consigo uma série de debates a respeito do racismo no Brasil. A população LGBT negra está entre a mais vulnerável em nossa comunidade. Para refletir sobre essas questões, convidei o jornalista e militante do coletivo Juntos, Fernando de Oliveira Lúcio, a escrever um texto para a coluna Igualmente. Fernando foi coordenador do Projeto Purpurina, em São Paulo, e foi homenageado, em 2016, pela Associação da Parada LGBT de São Paulo, por seu documentário “Princesas Impossíveis”, sobre as vidas de travestis e transexuais.

Samir Oliveira

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Por Fernando de Oliveira Lúcio

A Semana da Consciência Negra se aproxima em um momento bastante oportuno, com discussões acerca de raça e discriminação pautando os veículos midiáticos. Enquanto militante negro e gay, que reivindica a luta do povo trabalhador com a mesma intensidade do combate a todo tipo de preconceito, enxergo agora um momento de importante reflexão para a chamada “esquerda identitária”. Quais serão nossos rumos daqui para frente?

Há pouco mais de uma semana, a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois vem inflamando ânimos com sua reivindicação por um salário maior que os atuais 33 mil reais. Em sua defesa, define-se como uma “escrava”, oprimida por uma sociedade racista e machista. Não contente com a controvérsia anterior, Luislinda voltou a se comparar ao povo desfavorecido há dois dias, quando declarou ser uma mulher “preta, pobre e periférica”.

São inegáveis os avanços no debate sobre opressão nas últimas décadas. Nossa sociedade já não tolera que âncoras jornalísticos desdenhem das “coisas de preto” sem uma reação negativa em massa, forçando a emissora a suspendê-lo. Tampouco aceitamos que se tente patologizar a homossexualidade ou restringir o direito da mulher ao aborto legal sem ampla mobilização.

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Em um cenário como este, resta uma questão essencial:

Quem está do nosso lado?

Quem merece nossa defesa?

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Luislinda é um personalidade admirável. Primeira juíza negra do país, teve papel importante na defesa da legislação antirracismo. Com muita luta, conquistou seu lugar no alto escalão da política nacional … e escolheu seu lado. Filiada ao PSDB, um dos maiores baluartes do neoliberalismo no país, a autoproclamada representante das classes desfavorecidas acha por bem usar um discurso de combate ao racismo para ampliar seus privilégios. E o faz no exato momento em que auxilia um governo golpista a retirar os parcos direitos conquistados pelos trabalhadores. Há que se lembrar a cor da pele da maioria dos afetados por essas políticas nefastas: negra.

O uso de comparações exdrúxulas, alimentadas por motivações pessoais ou interesses políticos, não é um fenômeno novo. Em 2016, ao sofrer uma condução coercitiva ilegal, o ex-presidente Lula e vários de seus apoiadores apressaram-se a comparar seu mártir ao povo negro vitimado pela arbitrariedade pessoal. Lula, sem dúvida provindo da classe trabalhadora, hoje responde a processo judicial em liberdade, assessorado por advogados pagos a peso de ouro. É necessário apontar as irregularidades no processo a ele dirigido, porém qual o cabimento de compará-lo aos moradores das favelas, as mesmas favelas “pacificadas” em 2010 por ordem dele, a fim de abrir espaço para a realização da Copa do Mundo? E, sobretudo, qual a cor da pele da maioria dos afetados por essa política de segurança truculenta? Negra.

Mundo afora, a política encontra-se em um processo de reorganização. Mulheres, LGBTs, negros colhem os frutos de décadas de luta e vêem suas pautas debatidas e apoiadas por amplos setores da sociedade, talvez como nunca antes na história da Civilização Ocidental. Ao mesmo tempo, o descontentamento com o neoliberalismo, abraçado inclusive por grande parte dos antigos lutadores sociais, tem criado forte descontentamento entre aqueles que vêm sendo deixados para trás. Quem, como eu, acredita em outro modelo de sociedade, em que todos tenham seus direitos sociais e políticos reconhecidos, em que ninguém seja discriminado em função de raça, gênero ou sexualidade, não deve titubear ao tomar sempre o lado do povo trabalhador.

Defender representantes do neoliberalismo, cúmplices da exploração sofrida pela maioria dos negros, LGBTs e mulheres? Não em meu nome. Não em nosso nome!

 Foto: Beto Barata/PR

Geórgia Santos

Racismo é coisa de branco 

Geórgia Santos
14 de novembro de 2017

Em um vídeo que vazou na semana passada, o jornalista William Waack condenou determinado comportamento como “coisa de preto”, se referindo à toda a comunidade negra com um desprezo que se nota também em seus olhos, na expressão corporal. Ele foi afastado de suas funções pela Rede Globo e o episódio provocou, em um primeiro momento, a esperada e adequada indignação. Mas os defensores não demoraram a aparecer, alegando que era uma frase fora de contexto, que foi um comentário inocente fora do ar, que ele é o melhor jornalista do mundo – como se isso fosse relevante diante de um caso como esse. Ouviu-se, inclusive, que ele estava sendo perseguidos por abjetos da patrulha do politicamente correto. Que era coisa de esquerdopata. Enfim, que não era racismo.

Acontece que a frase não é aleatória e, assim como as defesas, revela muito sobre a forma como nossa sociedade é construída.

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O que William Waack disse não é deslize, é racismo

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É o mais cristalino reflexo de uma estrutura elitista e branca que invisibiliza os negros como ruídos de segunda categoria. O que William Waack disse também não é piada. É o que pensam aqueles que acreditam estar na Casa Grande, acima daqueles que consideram estorvos se não estão a seu serviço.

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E defender o que William Waack disse não é solidariedade, é dissimular o fato de que os brancos são o problema

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A onipresença do racismo

Eu nasci em uma cidade colonizada por italianos no interior do Rio Grande do Sul. Sou branca, assim como 99,9% da população de Paraí. Ouvi que algo era “coisa de preto” ainda quando criança. Não entendi o sentido, mesmo assim, em algum momento, reproduzi a frase em casa. Imediatamente meus pais conversaram comigo sobre o problema do preconceito, lembrando inclusive que tenho dois primos negros. E somente no momento daquela conversa percebi o que aquilo realmente significava. Mas não parou por aí, a cantilena se renova com o passar dos anos, frequentemente resumida a um “nigri, pó”. Uma expressão que simplesmente explica um erro com a palavra “negro” em italiano. E eu continuei testemunhando coisas do tipo em Porto Alegre, na faculdade, no trabalho, fora do Rio Grande do Sul, no exterior.

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Sempre contado como piada, como algo engraçado

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Isso mostra, mesmo que superficialmente, que as palavras de Waack não foram aleatórias. São parte de uma estrutura muito maior que, historicamente, oprime os negros no Brasil. Como disse Juremir Machado da Silva de maneira brilhante no espaço que ocupa no Correio do Povo, “o imaginário de William Waack vazou”. E com ele vazou o imaginário do branco brasileiro. Afinal de contas, o racismo também se encontra no silêncio. Paulo Sotero, interlocutor de William Waack no momento do comentário, foi cúmplice. Riu. Ajudou a perpetuar um estereótipo vil.

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E essa engrenagem cruel não vai parar a menos que cada um de nós reconheça o seu papel nessa estrutura pérfida e assuma que racismo é coisa de branco 

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Com esse episódio, revisitei minha história apenas para concluir, dolorosamente, que eu faço parte dessa estrutura e que já me beneficiei dela inúmeras vezes. Não mais. Já passou da hora de o brasileiro admitir a existência do racismo e a sordidez da origem desse preconceito – assim como já passou da hora de fazer alguma coisa para mudar essa realidade. Afinal, não são os brancos desconfortáveis com o flagra que precisam ser respeitados.

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O Justificando convidou a mestre em Filosofia Djamila Ribeiro para falar sobre o caso de William Waack. A autora do livro “O Que é Lugar de Fala” alerta para a importância de se refletir de maneira crítica sobre o racismo estrutural no Brasil, especialmente os brancos. Ela ressalta que é fundamental compreender que o “racismo é um sistema de opressão que nega direitos à população negra”.

 

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu não sou seu negro

Pedro Henrique Gomes
3 de março de 2017

James Baldwin iniciou o projeto de um livro, Remember This House (1979), que não concluiu, no qual pretendia contar a história dos Estados Unidos através da figura de três amigos seus, notadamente Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Em comum, além da militância pelos direitos civis dos negros americanos, Baldwin chama atenção ao fato de que os três, nos anos 1960, foram assassinados antes mesmo dos 40 anos – ele morreria aos 63 anos, na França, para onde se mudou em 1948. Eu não sou seu negro, dirigido por Raoul Peck, é construído inteiramente a partir de fragmentos dos manuscritos deixados por Baldwin.

“Não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram”

Negro, escritor, militante e orador habilidoso. O texto salienta a sofisticação do pensamento do seu pensamento, a poesia crua de sua prosa, expõe suas contradições de jovem, revela as angústias dos anos de maturidade. Baldwin é muito persuasivo e é algo como isto: não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram. O genocídio indígena e a escravidão negra não foram invenções dos negros. O filme chama atenção para as divisões de classe no seio da sociedade americana: “o branco é uma metáfora do poder”.

Peck costura a narração, na voz de Samuel L. Jackson, com imagens de grandes filmes do cinema americano. Baldwin, atento também ao cinema, comenta alguns deles, sua herança, seu imaginário, seus heróis. Não havia representação do negro (nem do índio) no cinema americano senão como elementos de vilania ou a partir de um ponto de vista aristocrático. Não era possível o reconhecimento do negro no cinema. Baldwin cresceu envolvido por essa cultura.

O filme de Raoul Peck é consciente do poderoso material que tem em mãos e não o despeja sobre seus espectadores. Sua narração é pausada, cantada letra por letra em sonoridade irrepreensível, o filme é minucioso nesse sentido puramente estético do rigor documental, tão rigoroso que chega a ser um tanto engessado e apegado ao “televisionismo” da montagem. Ao mesmo tempo, a produção de Baldwin como escritor tratava, não com menor força, de sexualidade, de pressões sociais, em suma, da homossexualidade – Baldwin era homossexual. O filme menciona isso apenas lateralmente através de um relatório do FBI, o que é estranho, pois confiar ao estado policial e racista a descrição de uma particularidade fundamental de seu personagem ameaça (ainda bem que não consegue, graças a ele mesmo) retirar um pedaço dele. Não foi o recorte escolhido pelo cineasta, no entanto.

Outra questão que se imputa negativamente ao filme de Peck, sem surpreender, é um “olhar” semelhante ao que grande parte da crítica (ocidental) despejou (com muita violência, diríamos) sobre os cinemas africanos durante boa parte dos seus anos de formação, a partir de 1960. Em resumo, esperavam que os cineastas dos países africanos “não abandonassem as suas raízes”, que “criticassem o colonialismo” e o seu continuador exatamente perverso, o neocolonialismo pós-independência.

Era preciso ser radical, diziam. O bem aventurado imaginário colonizador (eurocêntrico; nestes casos, em grande parte o francês) pretendia um certo cinema africano: aquele que eles gostariam de ver. Os cineastas africanos queriam outra coisa – ou pelo menos algumas outras coisas, mas não há espaço para remontar este debate agora. É claro que ao salientar isso não se interrompe as críticas ao filme, apenas se questiona uma modalidade específica de juízo valorativo que parece querer um tipo de filme adequado aos seus desejos, esquecendo o filme tal como ele foi concebido.

I am not your negro, de Raoul Peck, França/EUA. Com James Baldwin, Martin Luther King, Malcolm X, Medgar Evers, Dick Cavett, Samuel L. Jackson, Henry Belafonte.