Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender Cidade Invisível (Parte 1)

Flávia Cunha
21 de fevereiro de 2021
Atenção: O texto contém spoilers da série Cidade Invisível

Cidade Invisível, da Netflix, é um sucesso no Brasil e em outros 60 países. Mas também gerou controvérsia ao não dar destaque aos povos originários no roteiro, elenco e equipe de produção. O fato gerou críticas de lideranças e ativistas indígenas. A releitura do folclore brasileiro realmente dá poucas explicações sobre a origem de personagens como Saci, Iara, Curupira e Boto. Mas a Literatura pode ser um bom caminho para compreender melhor as lendas e mitos citados na série e ir além no assunto.

Oportunidades perdidas

E havia possibilidades no roteiro para mais explicações ao público a respeito do tema. Um exemplo disso são as cenas de Luna com o livro de folclore, que poderiam ter sido usadas como uma forma de detalhar as lendas do Saci e do Curupira. Ao invés disso, houve a opção por um lugar-comum de mostrar a conhecida história da armadilha para prender o Saci. Além disso, o livro usado como elemento cenográfico também mostra desenhos de um saci negro, sem nenhum tipo de esclarecimento a respeito. Porém, vale lembrar que essa é a versão mais consagrada do personagem, em função de adaptações como a do Sítio do Picapau Amarelo. Por outro lado, não há qualquer menção no roteiro de que a lenda do Saci foi criada pelos guaranis, no Sul do Brasil. Incorporando, depois, elementos da cultura africana. Essa origem é consenso entre os pesquisadores, como podemos ver aqui.

Origens pouco conhecidas

Já o Curupira é um dos mitos mais antigos do Brasil, tendo relatos escritos a respeito de sua história desde 1560. Sua origem é, indiscutivelmente, indígena. Assim como a Iara e o Boto, que são lendas criadas por tribos da Amazônia. Como esses personagens em Cidade Invisível foram parar no Rio de Janeiro? Pelo menos até agora, não sabemos.  

Mas também há críticas injustas. Como ao fato de a Cuca não ser caracterizada como um jacaré. Essa confusão é gerada pelas adaptações televisivas do Sítio do Picapau Amarelo. Porém, de acordo com o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, a descrição física da cuca não é um consenso dentro das origens ibéricas da lenda. Conforme a publicação, ela seria uma versão feminina do bicho-papão. Além disso, suas histórias variam de acordo com a região brasileira. Em Pernambuco, é descrita como uma mulher velha e feia, uma espécie de feiticeira. O que parece unânime é que dificilmente a Cuca seria uma mulher linda e sedutora como Alessandra Negrini, mas a atuação (e beleza) da atriz compensam sua escolha no elenco.    

Tutu Marambá

Com essas ressalvas, estou longe de dizer que não houve pesquisa na produção de Carlos Saldanha (criador de sucessos de animação como A Era do Gelo e Rio) e para o roteiro assinado  por Carolina Munhoz e Raphael Draccon. Tanto é que a série traz à tona as lendas de Tutu Marambá e Corpo-Seco, personagens pouco conhecidos do grande público. Eles são mencionados no Dicionário do Folclore Brasileiro, uma das publicações mais consagradas no país sobre o tema, que teve a primeira edição em 1954. Luís da Câmara Cascudo aponta que Tutu é um assombrador de crianças, uma espécie de bicho papão citado em cantigas e acalantos infantis, como a Cuca. De acordo com Cascudo, “há vários tutus espantosos, tutu-zambeta, tutu-marambá, tutu-do-mato.” Sua transformação em porco do mato tem origem no folclore da Bahia. 

Corpo Seco

Já o vilão Corpo Seco é “um homem que passou pela vida semeando malefícios […] Ao morrer, nem Deus nem o Diabo o quiseram, e a própria terra o repeliu enojada de sua carne, e um dia, […] da tumba se levantou [….] vagando e assombrando os viventes na calada da noite.” É um mito de origem europeia, a partir da crença de que cadáveres de seres humanos amaldiçoados não seriam desfeitos pela terra. Por isso, o corpo ficaria seco. Como são almas penadas, vagam pelo mundo, atormentando os vivos. Sendo assim, ainda é um mistério porque o Corpo Seco da série é um perseguidor de seres míticos, ao invés de ser um inimigo dos seres humanos.

Mérito inegável

Os produtores da série ainda não se pronunciaram sobre as críticas à falta de representatividade indígena . Torço para que a segunda temporada de Cidade Invisível traga mais elementos que expliquem as origens das lendas brasileiras. De qualquer forma, há o mérito indiscutível de despertar o interesse geral sobre o assunto. E, para mostrar que os mitos e lendas brasileiros vão muito além do apresentado na série, na semana que vem trarei algumas sugestões de leitura. Selecionei livros de autoria indígena ou de pesquisadores que tiveram contato direto com tribos indígenas. Aguardem!

Imagens: Netflix/Divulgação

Voos Literários

Três leituras para o Carnaval da pandemia

Flávia Cunha
12 de fevereiro de 2021
“Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar.”

É o que canta Chico Buarque em uma famosa canção. Mas no Brasil da pandemia, teremos que nos guardar muito mais, até podermos participar de festejos carnavalescos sem risco à nossa saúde e a dos outros. Este feriadão não-oficial em 2021 terá muita gente trabalhando. Ainda assim, haverá quem tirará uns dias de folga. Mas sem folia, já que oficialmente os festejos de Carnaval foram cancelados Brasil afora.

Sugestões literárias

Para quem estiver com horas livres nos próximos dias, selecionei três livros com temáticas diversas. Uma obra trata sobre o Carnaval do passado, outra publicação contém reflexões importantes a respeito da pandemia. Também trago como sugestão um best-seller sobre busca espiritual, em um momento no qual precisamos ter resiliência e paciência para aguardar a vacinação em massa no Brasil. 

Metrópole à Beira-Mar, de Ruy Castro

Com o subtítulo O Rio moderno dos anos 20, a obra aborda, entre outros assuntos, o Carnaval de 1919. O festejo, pós-gripe espanhola, deixou a cidade maravilhosa tomada por uma espécie de frenesi, sendo ainda hoje considerado o maior Carnaval de todos os tempos.  Ruy Castro comenta, no prólogo do livro, a respeito da sensação vivida no Rio do século passado: 

“O Carnaval de 1919 seria o da revanche — a grande desforra contra a peste que quase dizimara a cidade.”  

Em uma comparação com a pandemia do coronavírus, muitas pessoas acreditam que o mesmo acontecerá no Brasil quando tudo isso for (finalmente) coisa do passado.

Reflexões sobre a pandemia, organizado por Maria de Lourdes Borges, Evânia Reich e Raquel Cipriani Xavier

A publicação é para quem deseja se aprofundar nos aspectos filosóficos decorrentes do grave problema de saúde pública que ainda  enfrentamos. O livro, com 15 ensaios, é uma iniciativa do Núcleo de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A obra está disponível para download gratuito aqui.

Comer, Rezar e Amar, de Elizabeth Gilbert

Essa indicação é uma das minhas leituras “de conforto” deste mês de fevereiro. O livro, que deu origem a uma conhecida adaptação cinematográfica estrelada por Julia Roberts, é uma odisseia em busca do autoconhecimento. Em um verão brasileiro no qual não devemos viajar, é uma delícia percorrer as ruas de cidades italianas com a protagonista ou acompanhar seus esforços para fazer meditações na Índia. O tom está longe da autoajuda ou do encontro fácil com a felicidade, o que me agradou bastante. 

Por fim, desejo um bom Carnaval a meus leitores, seja em frente à televisão vendo desfiles de anos passados ou lendo um bom livro. O importante é manter com a saúde mental em dia e longe de aglomerações.

Imagem: Arte sobre foto de David Mark/Pixabay

Voos Literários

A força da literatura produzida por mulheres

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2021

As mulheres ainda são minoria no mercado editorial brasileiro, seja entre autoras publicadas, editoras e demais profissionais do setor. Sem dúvida, a falta de representatividade feminina na literatura brasileira é um reflexo da sociedade patriarcal na qual vivemos. A partir de uma visão machista, obras escritas por homens são consideradas universais, enquanto títulos de autoria de mulheres são colocados em um nicho. Neste raciocínio equivocado, livros  de autores homens seriam destinados a todas as pessoas. Já as obras produzidas por mulheres, atingiriam apenas o público feminino. 

 Mulherio das Letras

Buscando ampliar a participação no mercado editorial, muitas mulheres têm se organizado em coletivos que tem como  objetivo o fortalecimento e projeção da literatura de autoria feminina. Um deste grupos é o Mulherio das Letras, criado em 2017, e que atualmente conta com mais de 7 mil seguidores no Facebook. Ao longo dos anos, foram sendo criados grupos regionais em diversos estados brasileiros e também no Exterior, mostrando a potência da articulação feminina e feminista.

A principal meta do grupo Mulherio das Letras nas redes sociais é fomentar a divulgação de obras escritas por mulheres. E foi lá que tive o contato inicial com a poeta paraibana Anna Apolinário. Anna, que também é produtora cultural e organizadora do sarau Selváticas, me enviou informações sobre seu livro mais recente, A chave selvagem do sonho

Anna Apolinário

Ao terminar a leitura da obra, me vieram à mente os adjetivos forte e visceral. Pois são poemas que demonstram a coragem do desnudar-se, do inebriar-se por sonhos e vontades, em uma demonstração libertária que sabemos ter sido sistematicamente negada às mulheres.  Do livro, destaco trechos do texto Carta à Sylvia Plath, que homenageia a escritora norte-americana, considerada uma referência na poesia confessional e que morreu tragicamente, ao suicidar-se, em 1963. 

“Carta a Sylvia Plath
Estamos em 2018, Sylvia, o céu desaba sob minhas pupilas, pelo quarto ecoa o gemido da guitarra de PJ Harvey, no viço de meus trinta anos, me perfumo com feromônios ofídicos e continuo pensando em ti, por isso te escrevo. […] O mundo hoje é ainda um emaranhado terrível, Sylvia, gosto de me fechar dentro de teu poema, beber tua voz, um vinho hipnótico e obscuro, sentir a tremenda embriaguez dos sentidos, teu canto hediondo de sereia.”

Para saber mais informações sobre A chave selvagem do sonho, clique aqui.

Homenagem à Marielle Franco

Além de lançar obras individuais, Anna Apolinário também costuma participar de antologias coletivas, como Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle FrancoO livro reuniu 50 poetas em uma iniciativa do grupo Mulherio das Letras publicada pela Quintal Edições. 

Encerro este texto com o poema de Anna Apolinário em homenagem à vereadora assassinada em março de 2018, em um crime que precisa ser urgentemente esclarecido.

Mulher, 

Aniquilam-te o corpo

Derramam teu sangue

Covardemente

Mas em teu nome

Nenhum talho

Tua luta, tua ideia, tua voz

Pulsam

Incessantes

Dentro e além deste poema

A morte não conduz ao silêncio

Mas engendra e fortalece o grito:

Marielle, presente!

Agora, sempre.

 

Imagem de capa:  Sergey Zolkin/Unsplash

Voos Literários

Janeiro: uma página em branco?

Flávia Cunha
31 de janeiro de 2021

Descobri, recentemente, a existência de uma campanha mundial sobre saúde mental chamada Janeiro Branco. A inspiração para o nome seria o fato de o primeiro mês do ano ser como uma página em branco.  Neste sentido, os primeiros 31 dias do novo ciclo seriam um momento para criar metas e refletir a respeito de mudanças. Em anos anteriores, realmente janeiro parecia ser este período de pausa, pois tudo funcionava mais lentamente.

Mas não em 2021.

Em meio à uma pandemia conduzida por um governo irresponsável, o brasileiro consciente não teve descanso em pleno janeiro, não importa se branco ou da cor que for. A realidade nos atropela. Falta de oxigênio em hospitais, denúncia de superfaturamento (ou descaso com a fome da população) no episódio do leite condensado (e chicletes, não esqueçamos). O presidente? Ele prefere dar risada e mandar a imprensa enfiar as latas de leite condensado “naquele lugar”, mostrando, mais uma vez, que nada entende da liturgia do cargo que ocupa.

Negação ou irresponsabilidade?

Há quem prefira, em meio à atual conjuntura, seguir a vida normalmente, em festas clandestinas e praias superlotadas. A alegação é que se a pandemia não for colocada em segundo plano, ficaremos tristes. Mas será mesmo que viver em negação é a saída para o equilíbrio emocional, enquanto ultrapassamos a marca de 220 mil mortes oficiais pela covid 19 em território brasileiro? 

O desafio de manter a sanidade mental

Sem dúvida, além da epidemia provocada pelo coronavírus, estamos vivendo uma epidemia de ansiedade e depressão. Já falei sobre esse assunto por aqui mais de uma vez. Retorno agora com a perspectiva do novo ano, que mal começou e já nos apresenta um cenário desolador. É notória a necessidade de ainda manter, a longo prazo, protocolos com os quais já não aguentamos mais lidar, como máscaras, álcool gel e distanciamento, enquanto a vacinação não for aplicada em massa no Brasil.

Diante deste panorama, ainda é necessário manter a saúde mental em ordem para garantir a sobrevivência. Pois no Brasil da desigualdade, quem não ficou desempregado precisa ter resiliência para seguir trabalhando. Afinal, os boletos não param de chegar e as cobranças profissionais, também não. 

Diante de tamanhos descalabros impostos pelo Brasil pandêmico bolsonarista, o grande desafio é ficarmos equilibrados em 2021.

Uma sugestão para alcançar este objetivo é não se cobrar tanto. É ter A coragem de ser imperfeito, título do livro de Brené Brown. A pesquisadora entrevistou milhares de mulheres e homens para entender o funcionamento de mecanismos como vergonha e vulnerabilidade, pelo ponto de vista profissional, amoroso e familiar.

Não fingir ser perfeito é libertador

Na prática, é melhor ser imperfeito e reconhecer, em uma situação profissional, que não sabe determinada questão do que mentir. Ou, em caso de um erro, é melhor ficar vulnerável e pedir desculpas do que seguir fingindo que está certo, conforme destaca a pesquisadora:

Imagine o estresse e a ansiedade de não saber o que se está fazendo, mas tentar convencer um cliente de que sabe, de não ser capaz de pedir ajuda e de não ter ninguém com quem conversar sobre o seu problema. É assim que perdemos funcionários. É muito difícil continuar motivado nessas circunstâncias. A pessoa começa a poupar esforços, a não se importar mais, e acaba jogando a toalha. Depois da minha palestra, um dos mentores do grupo se aproximou de mim e disse: ‘Trabalhei com vendas durante minha carreira toda e posso lhe garantir que não há nada mais importante do que ter a coragem de dizer ‘Eu não sei’ e ‘Errei’. Ser honesto e transparente é a chave do sucesso em todas as áreas da vida.’”

Aparentemente, na política brasileira, honestidade e transparência não são características usuais. Mas certamente temos no poder um presidente que será lembrado, no futuro, pela má educação e dificuldade em reconhecer erros. A empáfia e falta de noção de fazer um discurso com palavrões está longe de ser uma demonstração de força. Forte mesmo é aquele que reconhece equívocos. Porém, para isso, é preciso haver autocrítica e vontade de evoluir. Coisas que Bolsonaro e seu clã parecem não ter nem um pouco.

Para conhecer mais sobre as pesquisas de Brené Brown:

Para saber mais sobre o Janeiro Branco, que está em sua oitava edição, clique aqui.

Imagem: World-fly / Pixabay 

Voos Literários

Distanciamento social e as carreatas Fora Bolsonaro

Flávia Cunha
24 de janeiro de 2021

Tenho vivido em distanciamento social relativamente rígido desde março de 2020. Îsso, claro, graças ao privilégio de poder trabalhar de forma remota nas minhas funções como produtora cultural e jornalista. Depois de quase um ano sem ir a locais com aglomeração de pessoas em razão da pandemia, fui convidada por uma amiga a ir na manifestação “Fora Bolsonaro”,  neste sábado, dia 23.  Após essa provocação, fiquei durante um tempo refletindo sobre a possível incoerência entre defender o distanciamento social e sair de casa para um protesto.

Cheguei à conclusão que eram atividades essenciais (e urgentes):

Pressionar para tirar do poder um presidente que demonstra tamanho descaso na condução de uma pandemia.
Sair às ruas para demonstrar a insatisfação com a falta de organização para vacinar a população. 
Lutar para o retorno do auxílio emergencial já que milhares de pessoas passam fome com o fim do benefício, 

Com isso em mente, resolvi comparecer ao protesto, ainda que a convocação tenha sido para uma carreata e eu indo a pé, por não ter carro. Os organizadores do ato em Porto Alegre contabilizaram a adesão de pelo menos 1 mil veículos, que se concentraram no Largo Zumbi dos Palmares para depois percorrerem as ruas de diferentes bairros da capital gaúcha. Os protestos, em forma de carreatas, foram realizados em dezenas de cidades brasileiras e na maioria das grandes capitais.

Uma avaliação pessoal do protesto

Em Porto Alegre, os pedestres, como eu, ficaram no local da concentração. Posso garantir que a quantidade de carros era realmente grande. Porém, não sei se o número total de adesão chegou a 2 mil veículos, como vi em algumas postagens mais otimistas nas redes sociais. Mas, ao contrário do que afirmam os defensores de Bolsonaro, o protesto não era apenas de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais. Havia muitos idosos dentro dos veículos e pessoas ostentando cartazes visivelmente improvisados. O que, na minha opinião, é uma comprovação do quão genuíno é o sentimento de revolta de parte da população com o presidente da República e seu governo repleto de incompetência, desorganização e desprezo pela vida humana.

Haverá resultados?

Voltei para casa satisfeita por ver tanta gente engajada na luta por exigir a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro. A pressão surtirá efeito no Congresso Nacional? Sinceramente, não sei. Se a opção por carreatas foi elitista, conforme vi algumas pessoas de esquerda comentando, também não consigo avaliar com exatidão. Acredito que tenha sido a alternativa mais segura neste momento para demonstrar insatisfação com o governo. Ainda que tenha sido, de certa forma, excludente para quem, como eu, é pedestre e não pôde acompanhar a manifestação em sua integralidade.

Distanciamento social precisa continuar

Afora necessários protestos e saídas essenciais para comprar comida, por exemplo, aconselho, a quem puder, que prossiga em distanciamento social. Considero ser a atitude mais sensata, enquanto a vacinação não for realizada em massa no Brasil. Mesmo que quem mantenha-se em casa, seja taxado de radical, medroso ou exagerado. Os adjetivos são muitos e podemos colocar nessa lista também o termo “comunista”, mesmo que a quarentena tenha sido recomendada em países onde os governos estão muito longe do espectro político de esquerda.

Aos resilientes do distanciamento social

Como incentivo aos que permanecerão em casa por muito tempo com o compromisso pessoal de evitar a propagação do coronavírus, recomendo a leitura do e-book gratuito Porto Alegre em Quarentena. A obra é uma coletânea com o registro poético dos primeiros meses da pandemia, a partir do olhar de escritores que moram na capital do Rio Grande do Sul. São diferentes estilos e temáticas diversas. 

Porto Alegre em Quarentena

A diversidade presente na obra é um registro histórico do ano que passou. O conteúdo varia desde a sensação em si de isolamento, até temas sociais urgentes que vieram à tona nos últimos meses, como a luta antirracista. Na apresentação do livro, os organizadores Camilo Mattar Raabe e Diego Grando comentam: “Os poemas aqui reunidos formam, enfim, um retrato de um tempo e de uma cidade: um 2020 que corre estranho, uma Porto Alegre onde estamos sem estar.”

Um poema para encerrar

Entre todos os poemas, destaco Disperato Incantabile – Afflito ma non troppp de Diego Grando, por reflitir o espírito dessa pandemia sem fim:

“lorem ipsum fecha a porta / tem miojo no jantar / nostradamus / vós travais / eles trovam por wi-fi / quem tem boca fica em casa / não tem cão caça com live / pandeguices / isquemias / esqueminhas confirmados / rivotril no dry martini / gardenal com aperol / hoje a rave clandestina é num galpão em ivoti / lorem ipsum segue o baile / vai à merda e volta atrás / como lidar / em tempos de / seno b cosseno a / cloroquina mon amour / no dos outros é refresco / quem furar o isolamento / não vai preso no quartel / vem roçar essa mãozinha / marinada em álcool gel / vem roçar na minha tela / ou eu faço um escarcéu / lorem ipsum vai no super / estocar papel higiênico / tem entrega que é do bem / tem delivery do mal / tomar sol na basculante / já virou lugar-comum / tomar água do chuveiro / não é novo nem normal / dormir cedo / acordar tarde / dormir tarde / acordar cedo / google meet / zoom zoom zoom / não passou um avião / lorem ipsum coisa e tal”

Para baixar o livro, de forma gratuita, clique aqui. Mais detalhes sobre a obra podem ser conferidos em matéria do site Literatura RS.

Imagens: Facebook / Reprodução

 

Voos Literários

SOS Manaus: o Brasil sufocado pela pandemia

Flávia Cunha
16 de janeiro de 2021

Depois de 10 meses de pandemia no país, presenciamos, com horror e impotência, o estado do Amazonas pedir socorro. A falta de oxigênio e outros insumos básicos para pacientes com covid-19 nos hospitais públicos em Manaus é um tapa na nossa cara. Diante de tamanho desleixo do governo federal, surgiu a campanha Brasil Sufocado, que pede assinaturas virtuais para a abertura de processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro.

Será que agora, finalmente, haverá abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro no Congresso Nacional?

Particularmente, observo com alguma cautela o movimento Brasil Sufocado, por ter o apoio explícito do presidenciável Luciano Huck. Apesar disso, realmente já passou da hora de fazermos algo para impedir a permanência no poder de um presidente tão incapaz. Além da pressão por impeachment, voltaram a ganhar força nas redes sociais os comentários sobre Bolsonaro ser julgado por genocídio pelo Tribunal Internacional Penal, em função de sua conduta diante da pandemia.

Mas isso seria possível?

Para que a abertura de uma investigação nesse sentido acontecesse, seria necessário a comprovação de intenção de crime contra a humanidade. Ou seja, precisaria haver um plano concreto do governo federal para a morte em massa da população por covid-19. Incompetência ou negligência governamental não são julgadas em Haia, conforme já explicou o primeiro promotor-chefe do TPI, Luís Moreno Ocampo.

Indicações de obras juridicas

Aos curiosos pela área jurídica, sugiro dois livros para entender melhor o funcionamento do Tribunal de Haia: Tribunal Penal Internacional: a concretização de um sonho, de David Augusto Fernandes, e  Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, de Valério Oliveira Mazzuoli.

Dica de leitura para leigos

Já Testemunha é um thriller jurídico do consagrado escritor norte-americano Scott Turow. A obra pode ajudar a conhecer os meandros da corte internacional, conforme revela o trecho a seguir:

No fim da década de noventa, a ONU havia reconhecido que a proliferação de fóruns penais especiais em Haia indicava um triste fato: o genocídio e as atrocidades de guerra não estavam perto de acabar. Foram iniciadas as negociações de um tratado global para criar um tribunal permanente de crimes de guerra, o TPI.

Contudo, enquanto as conversas se arrastavam, mais e mais potências mundiais perceberam os riscos de se submeter a penalidades criminais controladas por estrangeiros. Não apenas Estados Unidos como também Rússia, China, Israel, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e a maioria das nações árabes se recusaram a participar. As nações europeias, latinas e africanas assinaram o tratado, profundamente desapontadas com os Estados Unidos e os outros países por terem recuado.”

Voltando à realidade brasileira

É bom recordar que o presidente brasileiro já é investigado pelo Tribunal de Haia por denúncias de violações contra o meio ambiente e os povos indígenas. Além disso, o Supremo Tribunal Federal deu prazo de 48 horas, na última sexta-feira (dia 15/1), para que o governo federal apresentasse um plano detalhado do enfrentamento ao colapso na saúde pública em Manaus.

Infelizmente, este é apenas mais um triste capítulo no Brasil sufocado pela pandemia e por um governo displicente. Seguiremos apenas articulando protestos virtuais e fazendo panelaços dentro de casa? Até quando?

Para ajudar na prática

Existem campanhas de apoio à saúde pública no estado do Amazonas. Entre elas, destaco a iniciativa SOS Manaus. Para contribuir, clique aqui.

Imagem: Márcio James / Fotos Públicas

Voos Literários

Stupid white men

Flávia Cunha
9 de janeiro de 2021

Ao ver pela primeira vez as imagens da invasão de apoiadores de Trump ao Congresso norte-americano, pensei: “Stupid white men”. A expressão em inglês refere-se ao título  do livro do cineasta Michael Moore. Na época do lançamento da obra, em 2001, o alvo de críticas do autor era George W. Bush. Para Moore, os seguidores de Bush nos Estados Unidos de 20 anos atrás eram, em sua maioria, os tais “stupid white men”: homens brancos, com pouca inteligência, como um espelho do então presidente.

UMA NAÇÃO DE IDIOTAS

Mas qual seria a causa da “idiotice” de parte dos cidadãos brancos norte-americanos? Na avaliação do cineasta, entre as razões estavam o analfabetismo funcional e a falta do hábito de leitura no país, conforme descreve no capítulo Uma Nação de Idiotas:

“[…] se   você   vive   em   um   país   onde   44   milhões   não   conseguem   ler   —   e talvez   outros   200   milhões   consigam   ler,   mas   normalmente   não   o   fazem   —   bem, amigos,   vocês   e   eu   vivemos   em   um   lugar   bastante   assustador.   Uma   nação   que   não  apenas   produz   em   grande   quantidade,   em   detrimento   da   qualidade,   estudantes analfabetos,   MAS   FAZ   DE   TUDO   PARA   CONTINUAR   IGNORANTE   E   IDIOTA,   é   uma nação que não  deveria estar dirigindo o mundo — pelo menos não  até que a maioria de seus   cidadãos   consiga   localizar   o   Kosovo   (ou   qualquer   outro   país   que   tenha bombardeado) no mapa. Não   surpreende  os   estrangeiros   que   os   americanos,   que   adoram   se   revelar   em sua   idiotice,   “elegeram”   um   presidente   que   raramente   lê   algo   —   incluindo   os documentos   e   os   resumos   das   notícias   —   e   acha   que   a   África   é   um   país,   não   um  continente.   Um   líder   idiota   de   uma   nação   idiota.”
UM ESPELHO DE TRUMP

Possivelmente, a parcela da população norte-americana classificada por Moore como “stupid white men” há exatas duas décadas deu origem aos estúpidos e violentos apoiadores de Donald Trump. Em 2001, Bush não conseguia disfarçar seu comportamento considerado imbecil por seus opositores, Já em 2021, Trump, propositalmente, ostenta truculência e dissemina fake news a todo o momento. Na semana passada, incitou seus seguidores à violência com argumentos pouco verossímeis de ter sido prejudicado nas eleições. Por esse motivo, a invasão do congresso norte-americano é considerada uma ameaça sem precedentes à democracia norte-americana. Infelizmente, a estupidez e a violência dos homens brancos deixou de ser o título jocoso de um livro e tornou-se um perigo real, não apenas nos Estados Unidos.

Fiquemos atentos, pois Jair Bolsonaro adora ser uma versão tupiniquim e (ainda mais) caricata de Trump. 

Imagem: NYT/ Reprodução 

Voos Literários

O último texto do ano

Flávia Cunha
31 de dezembro de 2020
Neste último texto do ano

começo confessando que fiquei na dúvida sobre o que escrever. Então, durante alguns dias, achei que poderia ser uma boa ideia fazer uma retrospectiva a respeito dos temas e livros abordados na coluna Voos Literários. Depois, imaginei que vocês, meus leitores, já estariam cansados de balanços e retrospectivas. E, certamente, se tem uma palavra que define 2020 é cansaço.

Neste último texto do ano,

prossigo confidenciando que continuei mais um tempo sem saber qual assunto eu analisaria aqui. Apesar da hesitação, cheguei a escrever uma espécie de inventário de quantos livros eu havia lido nos últimos 12 meses.  Para, assim, poder avaliar de que forma a pandemia e o distanciamento social afetaram meu ritmo de leitura. Porém, desisti deste projeto de postagem, por considerar inócua a minha experiência individual perante tantas pessoas acometidas de ansiedade e outras dificuldades.

Neste último texto do ano,

pensei, ainda, em refletir sobre o quanto 2021 será desafiador no Brasil. Sem auxílio emergencial, sem data certa para começar a vacinação. Com pandemia, com Bolsonaro. Porém, mais uma vez, abandonei o texto, antes mesmo de começar. Afinal, quem, infelizmente, não sabe disso? 

Neste último texto do ano,

acabei, meio na marra, optando por escrever apenas uma tentativa desajeitada de transmitir esperança. Mas como fazer isso?  Talvez compartilhar um sonho possa ser uma saída. Desejar que em algum livro, ainda a ser publicado, esteja a resposta para muitos de nossos problemas atuais. E não ter vergonha de fantasiar que, no próximo ano, poderia muito bem existir uma obra chamada “Como a vacina contra o coronavírus mudou o mundo”.  Além disso, aproveito para imaginar, com todas as minhas forças, um livro com o nome “A falta de planejamento da vacinação no Brasil resultou na queda de Bolsonaro”.  

Nesse último texto do ano,

termino me despedindo e propondo que a gente não desista. Que tenhamos força e resiliência em 2021 para, a cada dia, lutar, do jeito que der, por um mundo menos injusto.  Antes de encerrar, aproveito para deixar um pequeno presente para vocês: um poema de Mario Quintana, chamado Esperança. Pois se tem algo que precisamos, é dela.

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança…

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

Voos Literários

Pra que essa ansiedade, essa angústia?

Flávia Cunha
19 de dezembro de 2020
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, concede entrevista coletiva após anúncio do Plano Nacional de Operalização de Vacinação contra a Covid-19.

Pra que essa ansiedade, essa angústia?

A recente declaração do ministro da Saúde ocorreu em um delicado momento, no qual o Brasil registra 183 mil mortos – na contagem oficial – devido à pandemia de covid-19. Ao tentar adivinhar quais seriam as eventuais razões para ele ter falado essa frase infeliz, podemos imaginar que Eduardo Pazuello talvez seja um homem muito paciente. Ou, de repente, esteja levando sua vida de uma maneira tão normal que realmente não veja motivos para ansiedade ou angústia. O fato é que muitos aguardam que um cronograma efetivo de vacinação nacional seja (finalmente) apresentado à população e colocado em prática.

Mas há motivos ou não para sentirmos ansiedade e angústia? 

De acordo com o dicionário Aurélio, o significado ligado à psicologia da palavra ansiedade é:  “condição emocional de sofrimento, definida pela expectativa de que algo inesperado e perigoso aconteça, diante da qual o indivíduo se acha indefeso.”

De uma certa forma, Pazuello tem razão. Não há nada inesperado na falta de articulação do governo federal e nas falas cada vez mais caricatas do presidente  Bolsonaro em relação ao suposto risco das vacinas (“Se virar jacaré, é problema seu!”).

O medo é justificável

Mas há, sim, um perigo no fato dessas pessoas estarem no governo federal durante a pior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos. Por isso, a ansiedade. Que, conforme o dicionário Aurélio, também pode ter o significado figurado de “ausência de tranquilidade, medo, receio”.

Como ficaremos tranquilos ao ver as vacinas sendo aplicadas em habitantes de outros países enquanto aqui no Brasil o que vemos é esse festival de insanidades?

Inquietude diante da sensação de ameaça

Já a angústia citada pelo ministro é mais complexa e densa em seus diversos sentidos. Novamente recorrendo ao Aurélio, angústia é a “condição de quem está muito ansioso, inquieto”. O dicionário também cita uma das possibilidades filosóficas do termo. “Sentimento de ameaça que, para Kierkegaard (1813-1855), não se consegue determinar nem medir, sendo próprio da condição humana.”

E o que pode ser mais ameaçador do que a perspectiva de ficarmos à mercê de um governo displicente em plena pandemia?  Voltando à fala do ministro, me parece que, além de ser descontextualizada no aspecto político e administrativo, também demonstra uma falta de noção na sua própria área de atuação. Saúde mental é coisa séria, Pazuello, e não deve ser menosprezada.

Dicas de Leitura

Mas, enquanto a vacinação não vem no Brasil, precisamos de boas leituras, que possam nos ajudar a lidar com a ansiedade. 

Sugestão 1 – Título:  Mentes Ansiosas – O medo e a ansiedade nossos de cada dia

Autora: Ana Beatriz Barbosa Silva.

Breve análise: A obra, da mesma autora de Mentes Perigosas, está na sua segunda edição, que foi atualizada e ampliada. No livro, a psiquiatra aborda o tema com uma linguagem acessível para o público em geral. A especialista também aponta possíveis maneiras de lidar com a ansiedade.

Indicação da bibliotecária Gislene Sapata Rodrigues

Sugestão 2 – Título: Para lidar com a ansiedade

Autora: Anissis Moura Ramos

Breve comentário: Este é um livro bastante atual, já contendo referências à pandemia e como o atual momento pode desencadear crises de ansiedade.  A psicóloga, especialista em psicologia clínica, tem consultório em Porto Alegre/RS.

Trecho da obra: “Segundo o DSM-5 (Manual  de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais) o Transtorno de Ansiedade compreende vários outros sintomas que se caracterizam principalmente pelo medo. Claro que o medo desencadeia algumas alterações comportamentais e até mesmo fisiológicas.

A pessoa acometida por um medo exacerbado, pode desenvolver uma crise de pânico, apresentando sintomas como taquicardia, dificuldade respiratória, sensação de sufocamento parando na emergência de um hospital. Geralmente, quem sofre da Síndrome do Pânico tem acompanhamento psicoterápico e psiquiátrico, portanto, nesse período de pandemia, no caso de uma crise, deve procurar ajuda junto aos profissionais que lhe acompanham, evitando uma emergência de hospital.”

Indicação da jornalista Katia Hoffmann

Sugestão 3 – Título: Livre de Ansiedade 

Autor:  Robert L. Leahy

Breve comentário: A obra contém uma abordagem cognitivo-comportamental a respeito do assunto, além de sugerir maneiras de tentar lidar com a ansiedade. O autor é considerado um dos mais respeitados terapeutas nessa área da psicologia e é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Aqui tem um artigo completo a respeito do livro. 

Indicação da psicóloga Katia Bressane

Sugestão 4 – Título: A Mente Vencendo o Humor 

Autores: Dennis Greenberger e Christine A. Padesky

Breve Comentário: Outra sugestão de livro com abordagem cognitivo- comportamental,  a obra ensina técnicas para procurar conter pensamentos disfuncionais e controlar a mente. Conforme a sinopse, “A mente vencendo o humor ensina estratégias, métodos e habilidades que se mostraram úteis na abordagem de perturbações do humor como depressão, ansiedade, raiva, pânico, ciúme, culpa e vergonha. “
Indicação da jornalista Lu Thomé
2020: um desafio para a saúde mental
No fim das contas, temos muitas razões para estarmos com “essa ansiedade, essa angústia” citadas pelo ministro da Saúde. O ano de 2020 foi desafiador também para a saúde mental em uma escala global, mas especialmente no Brasil, onde vivemos uma verdadeira epidemia de ansiedade. No Vós, já tratamos sobre o assunto em uma reportagem especial. Clique aqui para ler.
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

 

Voos Literários

Sobre direitos humanos e “cidadãos de bem”

Flávia Cunha
12 de dezembro de 2020

Há 72 anos, em 10 de dezembro de 1948, era criado um dos documentos balizadores do mundo pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em uma assembleia-geral da Organização das Nações Unidas. Na época, a maioria dos 58 países integrantes da ONU foi favorável ao texto, incluindo o Brasil.  Desde sua criação, a declaração, composta por 30 artigos, é considerada um marco no compromisso internacional para um mundo mais justo e com menos desigualdade.

DESVIRTUAMENTO CONCEITUAL

Tantas décadas depois, o que vemos no Brasil do século 21 é uma deturpação do conceito de direitos humanos. A ideia errônea vigente é de que serviriam apenas para proteger criminosos e livrá-los de punição. E, então, o que percebemos entre os chamados cidadãos de bem é uma necessidade de justiçamento contra bandidos.  Também evidencia-se um discurso bastante questionável de que direitos humanos deveriam servir apenas para “humanos direitos”.

MAS SERÁ QUE ELES ENTENDEM O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS?

Para começar, não dá para saber quantos partidários desse discurso tosco realmente leram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É bom lembrar que este é um texto amplamente acessível, inclusive na Internet, além de contar com uma bela adaptação destinada ao público infantil, com texto de Ruth Rocha e ilustrações de Otavio Roth.

Para efeitos didáticos, seguiremos o pensamento (equivocado, volto a ressaltar) de que direitos humanos deveriam ser apenas para “humanos direitos”. Como exercício de reflexão, consideraremos “humanos direitos” aqueles que não cometem crimes como assaltos e assassinatos. (Sonegar impostos, sabemos, é um crime considerado menor por cidadãos de bem, muitos deles grandes empresários cheios de pendências e problemas com a Receita Federal.)

Continuando essa linha de raciocínio, vamos imaginar aqui uma pessoa comum. Um trabalhador ou trabalhadora, de baixa renda, que se esforça para ter o suficiente por mês para pagar alimentação e um local de moradia. Será que os direitos humanos chegam mesmo a uma pessoa assim?

VEJAMOS O PRIMEIRO ITEM DO ARTIGO 23 DA DECLARAÇÃO:
Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Sobre a sentença acima, vale enfatizar que “condições justas e favoráveis de trabalho” são cada vez mais difíceis para a população brasileira, não somente em razão da pandemia. Há anos, vem se desenhando um cenário baseado em precarização das relações de trabalho, com salários cada vez menos justos. Afora que a livre escolha acaba se tornando uma falácia, em um panorama com grande desemprego e poucas oportunidades de novas vagas. 

Continuando nossa argumentação, destaco parte de um dos itens do artigo 27 da Declaração:
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes […].

O ponto exposto nesse trecho do artigo 27 é o conceito de fruição da Arte. Sim, ele deveria ser fundamental na vida de todos, mas acaba sendo pouco presente na vida dos brasileiros, mesmo em tempos pré-pandêmicos. Dentre os maiores impeditivos para a Arte estar no dia a dia de muitos trabalhadores, acredito serem os mais comuns a falta de tempo e dificuldade de acesso a espaços culturais, mesmo gratuitos.

UM RESPIRO LITERÁRIO

Um exemplo literário dessa alienação do trabalho e falta de acesso à cultura e lazer pode ser encontrado no conto “Roda-Gigante”, do livro Mundos Paralelos, lançamento independente do escritor gaúcho Rodrigo Mizunski Peres. Tive o privilégio de ler esse texto antes de sua publicação, por ter sido a produtora editorial da obra. E esse conto foi o que mais me chamou a atenção dentre os 19 que integram o livro. Um exemplo claro, no meu ponto de vista, do quanto as condições de trabalho afetam a vida de “humanos direitos” e podem, de certa forma, impedir o acesso destes a direitos humanos básicos, como os que citei ao longo deste post.  

O enredo de “Roda-Gigante” narra a jornada exaustiva e repetitiva de uma operária. Conforme a leitura avança, acompanhamos o arrebatamento da personagem ao deparar-se com um parque de diversões, próximo à fábrica onde trabalha:

“Não costumava parar fosse na ida ou na volta de sua monótona rotina. Sequer passara na padaria para comprar seu pão. Mas se deteve na calçada, e ficou a mirar – já admirava – a roda-gigante. Pois nunca mesmo andara numa. Nunca fora a um parque de diversões. Nunca. Não soube precisar quanto tempo ficara ali parada, mas o suficiente para alterar sua rotina.”
Confiram um trecho do conto, na leitura cênica feita pela atriz Elisa Lucas:

DIREITOS HUMANOS

É essencial lutarmos para que os direitos humanos sejam respeitados. É a única forma de livrarmos o Brasil da barbárie e da injustiça social defendidas por uma parcela egoísta, privilegiada e torpe da nossa sociedade. Para quem ainda não leu, uma versão digital da Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser adquirida aqui.