Samir Oliveira

Sim, é possível ser LGBT e muçulmana

Samir Oliveira
21 de dezembro de 2017
(Credit: Antonio Guillem via Shutterstock/Salon)

Faz um bom tempo que li este texto pela primeira vez, publicado em julho de 2015 no site Salon. Desde então, procuro revisitá-lo com alguma frequência e sempre encontro nas palavras da autora, a escritora muçulmana Lamya H, sentidos que a leitura anterior não revelava.

Por entender que esta discussão praticamente não existe no Brasil, e por combater frontalmente os estereótipos e preconceitos que cercam a comunidade muçulmana e os povos árabes em geral, resolvi fazer uma tradução livre e imperfeita das palavras de Lamya. Publico seu texto aqui em minha coluna no Vós na esperança de que suas reflexões também deixem outras mentes inquietas e, quem sabe, contribuam para mudanças em paradigmas já tão cristalizados.

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Por Lamya H*

Eu estou empolgada com este encontro. Eu realmente estou. Já faz um tempo desde minha última decepção amorosa, e minha melhor amiga tomou para si a tarefa de decidir que chegou a hora de eu seguir em frente. Ela insistiu para que eu baixasse o Tinder e me animou enquanto fazíamos juntas meu perfil. Fui encorajada a deslizar para a direita algumas vezes e falar com mulheres com quem eu dava um match. Levou algum tempo, mas eu finalmente estou entrando neste clima. E agora eu estou empolgada com este encontro.

Ela conseguiu se elevar até o topo das minhas crushes do Tinder. Sua originalidade – um componente essencial de todas as minhas paixões – é empolgante. Ela é inteligente, engraçada e ainda por cima linda.

Vamos nos encontrar para tomar um sorvete. Ela está um pouco atrasada. Começo a olhar para todos os rostos que estão passando ao redor, tentando encontrar alguma semelhança com as fotos que ela postou no Tinder. Queria vê-la antes de ser vista. “Procure pelo hijab”, eu havia dito a ela – um pouco ansiosa por revelar o que há embaixo dos chapéus nas minhas próprias fotos do Tinder. “É difícil não me notar.” Sua resposta indiferente, nem fetichista, nem surpresa, me tranquilizou. Estou empolgada com este encontro.

Mas… Nós nos vimos no mesmo instante, trocamos olhares tímidos e cumprimentos rápidos antes de pedir os sorvetes. Nos sentamos e a segunda pergunta que ela me fez foi:

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“Então, Lamya, me diga como você pode ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”

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Sempre tem um mas.

Isso acontece com tanta frequência que já tenho até uma estratégia. Primeiro, reviro levemente os olhos. Depois vem a resposta pronta. Digo que diversidade sexual e de gênero e islamismo não são coisas mutualmente excludentes. Que o Islã não é um monólito. Que o meu Islã é amplo e meu Deus, acolhedor. Que a comunidade LGBT também não é um monólito, que há diferentes formas de ser LGBT e diferentes narrativas que não se encaixam nos modelos ocidentais de “sair do armário” e reproduzir modelos familiares heteronormativos. Que as pessoas precisam parar de fetichizar aqueles de nós que vivemos nestas intersecções aparentemente impossíveis. Que a minha orientação sexual e minha religiosidade muçulmana não precisam ser reconciliadas, pois elas estão profundamente conectadas e fazem parte de quem eu sou.

Depois que eu termino esse discurso educativo, estou exausta e meu interesse na pessoa evapora. As tentativas de seguir tendo um encontro legal parecem vazias e, depois que um certo período de tempo já passou, eu uso o trabalho como desculpa e vou embora.

Já é tarde quando meu amigo me chama. Do nada, e um pouco depois do horário apropriado para uma ligação. O telefone toca uma vez apenas e depois ele desliga. Já sei que esse tipo de chamada é uma senha para que eu atenda imediatamente quando ele ligar de novo, antes que ele mude de ideia. Ele respira fundo depois do “alô” e esta é minha deixa para assumir o rumo da conversa. Eu me aconchego no sofá com o telefone, me acomodo na sala à meia-luz, falo um pouco sobre amenidades e coisas do dia a dia até que ele se sinta pronto para conversar.

Vem aos poucos. Ele me conta que seu pai está doente. Que acabou de falar com sua mãe ao telefone. Que têm havido comentários maldosos sobre seu ex-namorado e níveis pesados de culpabilização. “Você tem rezado?”, sua mãe lhe pergunta. “Você tem lido o Alcorão? Se você lesse, saberia a diferença entre certo e errado.” Ele parece cansado e irritado, mas especialmente cansado.  Cansado de alegarem uma relação entre ele ser gay e os problemas de sua família. Cansado de silêncios e de não poder responder de volta. Cansado de deixar algumas coisas passarem batido em nome da compaixão. Será que os pais dele sabem que ele está sofrendo? Será que sabem que estão magoando ele, que estão afastando ele do conforto que encontrou na religião? Suas palavras transformam-se em lágrimas e eu me pego chorando junto.

Mas… Enquanto as lágrimas dão lugar ao silêncio que se acomoda entre nós, ele me faz uma pergunta tranquila:

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“Como você consegue, Lamya? Como você consegue ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”

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Eu não posso mentir para o meu amigo. Ele sempre esteve presente nos momentos difíceis. Eu sempre estive presente em seus momentos difíceis. Ele sabe o que significa lidar com o fato de ser gay e ser muçulmano. Eu me recuso a respondê-lo com respostas prontas. Não posso usar respostas prontas para ele porque sequer as tenho para mim mesma.

A própria ideia de que tenho que ter uma resposta é parte do problema. Como se nós fôssemos seres estáticos que precisam ter tudo solucionado. Como se só fosse permitido viver e amar após solucionar todos os impasses. Como se não houvesse espaço para o amadurecimento, para questionamentos críticos ou para aprendizados. Essas são as respostas que eu nunca quero ter.

Mas eis algumas coisas que eu sei, algumas possibilidades que encontrei e que tornam possível ser ao mesmo tempo LGBT e muçulmana.

Minha orientação sexual e minha fé muçulmana estão profundamente costuradas no tecido de quem eu sou. É impossível que eu tenha que escolher entre uma coisa ou outra. É impossível que eu veja ambas como mutuamente excludentes. Eu não preciso que um Imã me diga que posso encontrar conforto e alegria em ambas. Não preciso de explicações nos versos do Alcorão e nas Hadith, que frequentemente são citadas em outro sentido. Eu examinei todas as explicações e hermenêuticas do Alcorão numa tentativa de torná-lo mais acolhedor aos LGBTs. Algumas delas me convenceram, outras definitivamente não. Em alguns momentos parecia que eu estava brincando com as palavras, esticando seus significados. Este processo acabou me ensinando que um texto é um texto. Textos vêm com contextos e interpretações, é possível me apegar ao que dialoga comigo e deixar o resto para lá. Confiar sobretudo na minha fé e na minha prática, na justiça e na compaixão.

É desta forma que procuro estender essa compaixão aos outros, particularmente à minha comunidade muçulmana. Eu não tenho que renunciar a ela e não posso culpar toda uma comunidade por casos de homofobia em um mundo que é homofóbico. Não posso fazer isso enquanto o homonacionalismo e a política LGBT tradicional vêm sendo utilizados para marginalizar minha comunidade e pintá-la como atrasada, justificando ocupações. Não preciso me defender por seguir frequentando a minha mesquita. Não preciso justificar a plenitude espiritual e a sensação de conexão que eu sinto neste espaço imperfeito, nesta comunidade imperfeita – que luta, sim, contra a homofobia, assim como contra o racismo e a misoginia. Uma comunidade que enfrenta simultaneamente a vigilância e a perseguição. Que sofre com guerras feitas em nosso nome – guerras que dizem nos salvar de nós mesmos –, com nossas pátrias sendo bombardeadas por drones. Essa é a comunidade imperfeita com a qual eu luto junto, mas ao mesmo tempo contra.

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Eu não preciso performar minha sexualidade lésbica de uma forma que seja compreensível para pessoas heterossexuais – através do casamento ou reivindicando imposições biológicas –, ou para outras pessoas LGBTs

Eu não sou obrigada a tirar meu hijab ou a sair do armário se eu não quiser. Nem para os meus pais, nem para conhecidos casuais e nem mesmo para os meus amigos

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O que eu preciso, e o que percebi que não posso viver sem, é a minha comunidade. Mais especificamente, a comunidade LGBT muçulmana: uma família que nós escolhemos, composta por pessoas que comem juntas, protestam juntas, onde eu posso ser lésbica e muçulmana sem ter que ficar me defendendo, me explicando e me justificando. Uma comunidade com pessoas que comem juntas após o jejum diário no Ramadã, que leem o Alcorão juntas e que se divertem juntas em passeios na praia. Pessoas que me colocam para cima após uma decepção amorosa. Pessoas com quem eu posso contar quando preciso de apoio, porque elas também contaram comigo quando precisaram. Pessoas que definem o que é compartilhar o amor.

Não me entendam mal, ainda assim tem dias em que viver parece impossível. Em que o futuro parece impossível. Dias em que palavras casuais, mas cáusticas, machucam profundamente. Dias em que choro escondida na escada. Dias em que é mais fácil apenas dizer as coisas certas, ao invés de realmente acreditar nelas. Dias que parecem insustentáveis e exaustivos. Dias em que parece mais fácil sonhar com soluções simples, cortar os laços comunitários e ser assimilada – desistir e fingir.

Mas também há dias em que se agitam com possibilidades revolucionárias: estruturas familiares alternativas e sonhos sobre comunidades muçulmanas LGBTs. São estes dias que fazem tudo valer a pena. São estes dias que tornam possível ser LGBT e muçulmana ao mesmo tempo. Dias em que deixamos os “mas” de lado e apenas somos.

Eu conto ao meu amigo sobre estes dias e, ao invés de exaustão, sinto apenas alívio.

*Lamya H é uma escritora lésbica e muçulmana vivendo em Nova York.

(Crédito da imagem: Antonio Guillem via Shutterstock/Salon)

Samir Oliveira

Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital

Samir Oliveira
7 de dezembro de 2017

O governo Temer excluiu qualquer menção à palavra “gênero” da nova versão da Base Nacional Comum Curricular. O texto, debatido no Conselho Nacional de Educação, define as diretrizes pedagógicas que as escolas públicas e privadas no Brasil devem seguir em cada disciplina, durante o Ensino Fundamental.

O Conselho é formado por especialistas, profissionais qualificados para estruturar as bases curriculares das escolas. Os conselheiros aprovaram emendas importantes ao texto, incluindo noções de combate à discriminação de gênero em disciplinas como História, Geografia e Ensino Religioso. Todas elas foram ceifadas ao chegar ao gabinete do ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM).

A censura passaria despercebida e sem alarde, já que o governo se negou a fornecer uma cópia do texto à imprensa. Felizmente o conteúdo acabou vindo a público e agora a sociedade civil pode pressionar o governo a voltar atrás. Não podemos aceitar que o mesmo ministro que deu a Alexandre Frota – um estuprador confesso – o status informal de conselheiro agora queira tornar as escolas espaços medievais e desconectados da realidade.

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Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital

E barrar este debate é mais do que uma reação conservadora, é uma estupidez ineficaz

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As crianças e jovens têm acesso a informações e experiências que nenhuma regulação arcaica é capaz de proibir – desde o convívio com os amigos até o contato com as tecnologias de comunicação. A escola é um espaço fundamental de socialização e deve estar orientada para acolher a diversidade.

Estudei a maior parte do Ensino Fundamental em escola pública estadual, no interior do Rio Grande do Sul. Naquela época, entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos anos 2000, não havia qualquer discussão a respeito do bullying. Era muito difícil que se passasse um dia sem que eu sofresse algum tipo de agressão – física, verbal ou psicológica – por ser gay. Naquele momento eu sequer me entendia enquanto gay, mas meu comportamento não correspondia ao que era esperado de um menino, então eu “merecia” ser caçoado.

Gosto de pensar que muita coisa mudou de lá para cá. E, de fato, mudou. Avançamos muito! O problema do bullying nas escolas hoje é levado a sério. O que não quer dizer que não tenhamos que percorrer ainda um longo caminho. A recente expulsão de uma menina trans de 13 anos de uma escola em Fortaleza revela o abismo que se coloca diante de nós. O caminho para superá-lo passa pela inclusão de gênero e sexualidade nas diretrizes curriculares. Chega a ser criminoso compactuar com este tipo de censura no país que mais mata LGBTs no mundo, onde a população trans é a mais vitimada, num ciclo de violência que se inicia com a evasão escolar e o abandono familiar.

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O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de avançar neste tema durante o primeiro mandato do governo Dilma

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O Ministério da Educação, comandado então por Fernando Haddad, havia elaborado materiais didáticos contra a homofobia para distribuir nas escolas. A bancada fundamentalista na Câmara – que fazia parte da base de apoio do PT – ameaçou abandonar o governo caso a iniciativa seguisse adiante. Isso bastou para que nossos direitos fossem rifados e Dilma desse uma de suas declarações mais infelizes ao dizer que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”.

Talvez, se naquele momento o governo Dilma houvesse enfrentado os reacionários, hoje a realidade em nossas escolas fosse um pouco melhor. O abismo não seria tão profundo. Agora Temer não precisa ceder às pressões fundamentalistas, pois seu governo é liderado diretamente por estes setores, que elaboram as políticas e decidem de forma autoritária o que deve ser debatido nas escolas.

A tesoura do ministro Mendonça Filho na Base Nacional Comum Curricular vem acompanhada de projetos absurdos chamados de “Escola Sem Partido” em diversas cidades e estados do país. Até mesmo no Congresso Nacional.

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São iniciativas que desejam, na verdade, colocar uma mordaça sobre a boca dos professores, como se a educação fosse um processo mecânico e neutro, despido de subjetividades

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Em São Paulo, a vereadora Sâmia Bomfim, do PSOL, está na linha de frente contra esta aberração e já conseguiu barrar sua votação uma vez. Como ela mesma disse em um discurso na Câmara dos Deputados: “A geração que ocupou as escolas no final de 2015 e no início de 2016 irá cobrar a conta” de todas as medidas regressivas que tentam colocar em curso atualmente.

Estas tentativas de censurar professores e de obstruir a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas não passam de uma grande cortina de fumaça para que a sociedade perca tempo – e os órgãos públicos escoem dinheiro – neste esforço inútil voltado ao atraso, enquanto o que realmente deveríamos estar debatendo é a qualidade do nosso ensino, as condições de trabalho e a remuneração dos nossos professores e a estrutura de nossas escolas.

Samir Oliveira

Não em nosso nome!

Colaborador Vós
16 de novembro de 2017
Foto: Beto Barata/PR

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, traz consigo uma série de debates a respeito do racismo no Brasil. A população LGBT negra está entre a mais vulnerável em nossa comunidade. Para refletir sobre essas questões, convidei o jornalista e militante do coletivo Juntos, Fernando de Oliveira Lúcio, a escrever um texto para a coluna Igualmente. Fernando foi coordenador do Projeto Purpurina, em São Paulo, e foi homenageado, em 2016, pela Associação da Parada LGBT de São Paulo, por seu documentário “Princesas Impossíveis”, sobre as vidas de travestis e transexuais.

Samir Oliveira

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Por Fernando de Oliveira Lúcio

A Semana da Consciência Negra se aproxima em um momento bastante oportuno, com discussões acerca de raça e discriminação pautando os veículos midiáticos. Enquanto militante negro e gay, que reivindica a luta do povo trabalhador com a mesma intensidade do combate a todo tipo de preconceito, enxergo agora um momento de importante reflexão para a chamada “esquerda identitária”. Quais serão nossos rumos daqui para frente?

Há pouco mais de uma semana, a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois vem inflamando ânimos com sua reivindicação por um salário maior que os atuais 33 mil reais. Em sua defesa, define-se como uma “escrava”, oprimida por uma sociedade racista e machista. Não contente com a controvérsia anterior, Luislinda voltou a se comparar ao povo desfavorecido há dois dias, quando declarou ser uma mulher “preta, pobre e periférica”.

São inegáveis os avanços no debate sobre opressão nas últimas décadas. Nossa sociedade já não tolera que âncoras jornalísticos desdenhem das “coisas de preto” sem uma reação negativa em massa, forçando a emissora a suspendê-lo. Tampouco aceitamos que se tente patologizar a homossexualidade ou restringir o direito da mulher ao aborto legal sem ampla mobilização.

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Em um cenário como este, resta uma questão essencial:

Quem está do nosso lado?

Quem merece nossa defesa?

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Luislinda é um personalidade admirável. Primeira juíza negra do país, teve papel importante na defesa da legislação antirracismo. Com muita luta, conquistou seu lugar no alto escalão da política nacional … e escolheu seu lado. Filiada ao PSDB, um dos maiores baluartes do neoliberalismo no país, a autoproclamada representante das classes desfavorecidas acha por bem usar um discurso de combate ao racismo para ampliar seus privilégios. E o faz no exato momento em que auxilia um governo golpista a retirar os parcos direitos conquistados pelos trabalhadores. Há que se lembrar a cor da pele da maioria dos afetados por essas políticas nefastas: negra.

O uso de comparações exdrúxulas, alimentadas por motivações pessoais ou interesses políticos, não é um fenômeno novo. Em 2016, ao sofrer uma condução coercitiva ilegal, o ex-presidente Lula e vários de seus apoiadores apressaram-se a comparar seu mártir ao povo negro vitimado pela arbitrariedade pessoal. Lula, sem dúvida provindo da classe trabalhadora, hoje responde a processo judicial em liberdade, assessorado por advogados pagos a peso de ouro. É necessário apontar as irregularidades no processo a ele dirigido, porém qual o cabimento de compará-lo aos moradores das favelas, as mesmas favelas “pacificadas” em 2010 por ordem dele, a fim de abrir espaço para a realização da Copa do Mundo? E, sobretudo, qual a cor da pele da maioria dos afetados por essa política de segurança truculenta? Negra.

Mundo afora, a política encontra-se em um processo de reorganização. Mulheres, LGBTs, negros colhem os frutos de décadas de luta e vêem suas pautas debatidas e apoiadas por amplos setores da sociedade, talvez como nunca antes na história da Civilização Ocidental. Ao mesmo tempo, o descontentamento com o neoliberalismo, abraçado inclusive por grande parte dos antigos lutadores sociais, tem criado forte descontentamento entre aqueles que vêm sendo deixados para trás. Quem, como eu, acredita em outro modelo de sociedade, em que todos tenham seus direitos sociais e políticos reconhecidos, em que ninguém seja discriminado em função de raça, gênero ou sexualidade, não deve titubear ao tomar sempre o lado do povo trabalhador.

Defender representantes do neoliberalismo, cúmplices da exploração sofrida pela maioria dos negros, LGBTs e mulheres? Não em meu nome. Não em nosso nome!

 Foto: Beto Barata/PR

Samir Oliveira

Essa vitória é nossa – Bolsonaro é condenado a pagar multa por ofensas à população LGBT

Samir Oliveira
9 de novembro de 2017

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) foi condenado esta semana a pagar uma multa de R$ 150 mil por dano moral coletivo contra a população LGBT. A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirma a sentença que já havia sido proferida em primeira instância em 2015. A indenização irá para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDDD), criado pelo Ministério da Justiça.

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Essa vitória é nossa! É do movimento LGBT e de todos aqueles que lutam por um mundo mais justo e sem ódio

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A ação foi movida pelos grupos Diversidade, Arco Íris e CaboFree após declarações homofóbicas do deputado em 2011, durante entrevista ao programa CQC. Bolsonaro disse que jamais teria um filho gay porque seus filhos tiveram uma “boa educação” e acusou as paradas do orgulho LGBT de promoverem os “maus costumes”, contra Deus e a preservação da família.

Naquela época, Bolsonaro se gabava de nunca haver sido condenado. Agora já conta com a terceira condenação só este ano. A primeira foi uma multa de R$ 10 mil por ter dito que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não mereceria. E a segunda foi uma indenização de R$ 50 mil por comentários racistas contra a população quilombola.

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Bolsonaro pode não estar morrendo pela boca – tendo em vista que sua retórica odiosa infelizmente encontra apelo em setores expressivos da sociedade -, mas está pagando muito caro por ela

As três multas impostas pela Justiça já somam R$ 210 mil

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Na sentença que o condenou em primeira instância pelas declarações ao CQC, a juíza considerou que a liberdade de expressão não está acima da garantia de direitos a populações oprimidas. Ou seja: que liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de opressão. E a imunidade parlamentar do deputado não se aplica a este caso, em que ele estava emitindo uma opinião pessoal.

É significativo que Bolsonaro esteja sendo condenado justamente por estimular o ódio contra três grupos extremamente vulneráveis da sociedade: mulheres, negros e negras e a população LGBT. Por mais moroso que possa ser o processo judicial, as sentenças demonstram que esse tipo de discurso violento não encontra lugar na nossa Constituição.

Vivemos uma conjuntura muito dura, com o crescimento de setores semi-fascistas que preferem inventar pedófilos em museus do que derrubar um governo corrupto que compra apoio descarado no Congresso para se manter no poder. O movimento LGBT vem jogando um papel central neste enfrentamento, ocupando as ruas na linha de frente contra o conservadorismo. Afinal são as nossas vidas que estão diretamente em risco com este tipo de discurso de ódio.

As condenações do Bolsonaro são um bem-vindo sopro de alívio em meio a tantos retrocessos. É melhor ele Jair abrindo o bolso!

Samir Oliveira

Parada Livre de Porto Alegre: um berro contra os retrocessos

Samir Oliveira
2 de novembro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

No dia 26 de novembro Porto Alegre realiza a XXI edição da Parada Livre. Um evento de massas, que reúne pelo menos 35 mil pessoas todos os anos na Redenção em uma verdadeira festa política de luta por direitos e celebração da diversidade.

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O tema deste ano não poderia ser mais adequado:

“Berro contra os retrocessos”

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É com esta combatividade que os LGBTs irão às ruas neste dia. O momento político do país exige uma resposta frontal ao conservadorismo e uma reação afrontosa às tentativas medievais de censurar expressões de sexualidade e identidade.

A Parada Livre representa essa resistência construída democraticamente por uma série de coletivos e organizações. É verdade que é preciso que ela seja cada vez mais política, no sentido de incidir sobre a estrutura política que nega nossos direitos, abafa nossa liberdade e espanca nossos corpos. Esse processo está permanentemente em curso, com as linguagens e estéticas próprias que a população LGBT domina para fazer política. Afinal, a própria existência da Parada é um ato político. É extremamente político que dezenas de milhares de corpos LGBTs saiam às ruas juntos para expressar seus afetos e exercer a plena liberdade de ser quem são.

A Parada Livre deste ano será mais uma etapa de um novo ciclo de lutas que a população LGBT vem travando no Brasil nos últimos meses. Os ataques de setores proto-fascistas da sociedade exigem uma resposta forte e impulsionam uma articulação entre todo o movimento.

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Ataques constantes

A representação maior deste novo ciclo foi a reação ao fechamento da exposição QueerMuseu em Porto Alegre. O episódio fortaleceu grupos de extrema-direita que destilam ódio contra qualquer manifestação de diversidade. Iniciou-se uma cruzada medieval contra a arte e as expressões de sexualidade e gênero no Brasil. O recuo vergonhoso do Santander diante destes grupos violentos catalisou esse sentimento antidiversidade.

A reação do movimento LGBT foi imediata e forte. Mais de duas mil pessoas se reuniram em frente ao Santander em plena quarta-feira para defender a liberdade artística. A vanguarda do movimento se uniu à categoria artística num duro enfrentamento aos grupos de ódio – especialmente ao MBL e seus satélites, que compareceram presencialmente no protesto e provocaram os ativistas.

A decisão da Justiça, em primeira instância, de autorizar a chamada “cura gay” representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no que diz respeito ao consenso médico-psiquiátrico, científico e psicológico de que homossexualidade não é uma doença. Também esse episódio gerou uma onda de lutas muito forte. Em Porto Alegre, milhares foram às ruas para lutar contra este absurdo.

A população LGBT carrega consigo a responsabilidade de estar no enfrentamento diário à intolerância e ao fascismo, pois são seus corpos e suas expressões de afeto, identidade e sexualidade que estão sendo atacadas.

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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Só neste ano foram 169 transexuais assassinados e assassinadas. A população de travestis e transexuais é a mais vulnerável nesse contexto de extermínio

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Fortalecer a Parada Livre é fortalecer essa resistência tão necessária nos dias de hoje. É lutar por vidas humanas que estão em risco por causa do preconceito e da intolerância. Por isso é tão criminoso que a prefeitura de Porto Alegre tenha suspendido o apoio que sempre deu ao evento. O movimento não se intimidou diante da postura autoritária de Nelson Marchezan Júnior e batalha duramente por financiamento, contando com a parceria de casas noturnas e bares LGBTs e com a criatividade militante na venda de bottons, camisetas e canecas – que podem ser compradas através da loja virtual http://www.lojaafirme.com.br.

A Parada Livre deste ano não será menor. Pelo contrário, expressará com muita força o verdadeiro berro contra os retrocessos que a população LGBT dará na Redenção em 26 de novembro. Será fabuloso!

Foto: Fernanda Piccolo

Samir Oliveira

Ativistas trans se reúnem em Porto Alegre para debater construção de políticas públicas e luta por direitos

Samir Oliveira
26 de outubro de 2017

Porto Alegre vai receber neste final de semana um encontro de ativistas transexuais de toda a Região Sul do país. Trata-se do III Workshop Sul da Rede Trans Brasil. O evento ocorre de 27 a 30 de outubro, no Hotel Embaixador.

A iniciativa é organizada pela Rede Trans Brasil e pela Igualdade-RS. Ao longo de quatro dias, as ativistas e os ativistas irão debater uma série de questões que envolvem a comunidade T.

O tema central do encontro é: “Educação e trabalho oportunizam para a inclusão social”. Uma consigna que faz todo o sentido para uma população totalmente marginalizada, que não encontra alternativas a não ser a prostituição ou subempregos totalmente precários.

A evasão escolar é um problema dramático para a população de travestis e transexuais, que são obrigados/as a abandonar os estudos por conta do preconceito e da discriminação. Isso quando não são expulsas/os de suas casas pela intolerância da própria família – algo comum em todos os lugares, especialmente no interior.

Pensar em políticas públicas que garantam a permanência de travestis e transexuais nas escolas é um desafio que requer um olhar específico do poder público a este problema. A evasão escolar não é um fenômeno homogêneo e a população T é um dos grupos mais vulneráveis neste processo.

A capacitação e iniciativas que facilitem o acesso a empregos formais também é um passo fundamental a ser dado pelo poder público. Uma iniciativa interessante é a oferta de isenção de impostos a empresas que contratem um determinado número de funcionárias/os travestis e transexuais. É lamentável que tenha que haver uma política de desoneração para que as empresas passem a olhar para essa população, mas é um passo necessário em direção à conquista do direito ao trabalho.

Nos quatro dias de encontro, as/os ativistas da Rede Trans Brasil organizarão debates com autoridades públicas, pesquisadores e militantes de movimentos sociais. Além do trabalho e da educação, estão na programação temas como saúde da população trans, iniciativas de mapeamento e produção de dados que orientem políticas públicas, a relação com a mídia e a luta por uma retificação de nome civil e de gênero que despatologize as identidades trans.

Uma das lideranças da organização do evento é Marcelly Malta, figura histórica do movimento LGBT gaúcho e uma articuladora nacional da luta das pessoas trans. Vice-presidenta da Rede Trans Brasil e presidenta da Igualdade-RS, Marcelly batalhou bravamente – e foi vitoriosa – pela criação de uma ala para travestis e seus maridos dentro do Presídio Central de Porto Alegre. Um projeto fundamental para que essa população tenha um mínimo de dignidade e proteção dentro de um ambiente onde absolutamente todos os direitos são negados.

O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. A população trans é a mais vulnerável e vitimada. A auto-organização de travestis e transexuais e a articulação com o restante do movimento, com gestores públicos e o conjunto das entidades da sociedade civil é fundamental para que essa triste realidade se modifique. Viva a luta das pessoas trans!

O encontro da Rede Trans Brasil é aberto e gratuito e ocorre no Hotel Embaixador (Rua Jerônimo Coelho, 354, no Centro de Porto Alegre). Confira abaixo a programação completa:

SEXTA-FEIRA – 27/10

14h: Credenciamento
16h: Coffe Break
19h: Mesa de abertura
19h45: Fala da presidenta da Rede Trans Brasil, Tathiane Araújo.
20h30: Apresentações artísticas

SÁBADO – 28/10

9h: Diagnóstico das violações de direitos humanos, busca de ações governamentais da gestão de Estados e políticas de segurança pública
– Jorge Martins Moreira: Doutorando em Direito Constitucional/UBA (Igualdade/RS)
– Adriana Souza: Coordenadora da Diversidade Sexual do RS
– Patrícia Couto: Ouvidora da Defensoria Pública do RS.
– Guilherme Gomes Ferreira: Mestre em Serviço Social
– Gustavo Passos: Mestre e Doutorando em Educação pela UFRGS e coordenador de programas de prevenção à violência da Fundação La Salle / SMSPC de Canoas.
– Mediação: Cutuxa Borges – Transgrupo Marcela Prado

10h30: Perfil socioeconômico da população trans no Brasil – A importância da produção de dados para a construção de políticas públicas legislativas e judiciárias.
– Guilherme Gomes Ferreira: Mestre em Serviço Social
– Gustavo Passos: Mestre e Doutorando em Educação pela UFRGS e coordenador de programas de prevenção à violência da Fundação La Salle / SMSPC de Canoas.
– José Stona – UFRGS
– Mediação: Liza Minelli – Grupo Esperança

14h: Novas tecnologias de prevenção e estratégias de apropriação destes mecanismos para pessoas trans (PrEP-PeP e a importância do diagnóstico precoce)
– Representante da Coordenação Estadual de IST Aids do RS
– Representante da Coordenação Municipal de IST Aids de Porto Alegre
– Alicia Krüger: Assessora técnica do Departamento Nacional de IST Aids e Hepatites Virais
– Marcos Benedetti: Mestre em Antropologia Social
– Mediação: Luana de Jesus – Secretária da Rede Trans Brasil na Região Sul

16h: Mídia e a estigmatização das pessoas trans na sociedade
– Gabriel Galli: Jornalista e coordenador-geral do Grupo SOMOS
– Gian Carlos Lorenzeti Panisson: Estudante de comunicação social da ESPM Sul
– Alice Ferreira: Mulher travesti e radialista
– Caio Ramos: Publicitário e ilustrador, formado em Filosofia e Comunicação Social pela UFRGS
– Mediação: Cristiany Beatriz – Fórum Transexuais de Goiás.

DOMINGO – 29/10

9h: Política de saúde pública com foco na prevenção às IST/Aids e HIV para a população de homens trans
– Cauã Cintra: Coordenador do Núcleo de Homens Trans da Rede Trans Brasil
– Vicent Pereira Goulart: Grupo SOMOS
– Ale Mujica: Grupo Estrela Guia
– Mediação: Murilo Christofer Alves

14h: Processo transexualizador e as reais necessidades para a garantia de tratamentos que contemplem as necessidades de pessoas trans
– Cristiany Beatriz: Fórum Transexuais de Goiás
– Etory Luiz: Núcleo de Homens Trans da Rede Trans Brasil
– Ângelo Brandelli Costa: Conselho Regional de Psicologia do RS, PUCRS e PROTIG
– Mediação: Sophia  – Igualdade RS

16h: Retificação de nome civil: A (des)patologização de gênero em debate
– Jorge Martins Moreira: Doutorando em Direito Constitucional/UBA – Igualdade RS
– Luisa Stern: Advogada – Igualdade RS
– Gustavo Bernardes
– Gabriela Baptista Silva: Psicóloga Clínica e Mestre em Psicologia Social
– Mediação: Sophia – Igualdade RS

SEGUNDA-FEIRA – 30/10

9h: Propostas e moções

Samir Oliveira

Vídeo flagra agressão policial a travestis em Porto Alegre

Samir Oliveira
19 de outubro de 2017

Infelizmente, este é mais um texto sobre agressão a travestis por policiais. Na semana passada, escrevi a respeito da perseguição que a população T sofre em um bairro nobre de São Paulo. Desta vez o crime ocorreu em Porto Alegre, na Rua Ramiro Barcelos, em plena luz do dia.

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Um vídeo chocante mostra um policial militar agredindo uma travesti negra durante o que parece ser uma abordagem

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Em seguida uma brigadiana se aproxima, mas não faz questão de interromper o abuso ou chamar a atenção de seu colega. O material foi denunciado ao gabinete do vereador Roberto Robaina (PSOL) – que, junto com Luciana Genro, se reuniu com o governador José Ivo Sartori (PMDB) e o secretário de segurança Cezar Schirmer para apresentar oficialmente o caso e cobrar providências.

Vídeo flagra o momento em que travesti é agredida por policial militar na rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre.

Este caso, felizmente, chegou às mãos de autoridades políticas comprometidas com a luta LGBT. Isso, aliado com a ampla cobertura da imprensa, pode fazer com que alguma atitude seja tomada pelo Estado em relação à conduta dos servidores envolvidos. Mesmo assim, é preciso estar muito vigilante, pois o percurso que este tipo de denúncia toma nos escaninhos da burocracia policial quase sempre resulta em arquivamento. Ou em pizza, para utilizar um jargão da política.

Como repórter, já acompanhei diversos casos de abuso de autoridade por parte da polícia. Talvez o principal deles tenha sido o de dois jovens africanos que foram humilhados por uma brigadiana dentro de um ônibus. Tive uma longa conversa com eles, que retratei nesta reportagem. Percorri a cadeia de comando policial atrás de explicações, de respostas e de informações sobre o andamento das investigações. No fim, a servidora foi inocentada, mesmo tendo – sem nenhuma justificativa que não fosse o racismo – apontado uma arma carregada para dois jovens inocentes dentro de um ônibus em movimento, numa conduta que expôs todos os passageiros ao risco de levarem um tiro.

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A diferença é que agora existe um vídeo comprovando a denúncia

E existem agentes públicos dispostos a pressionar até mesmo o comandante em chefe da Brigada Militar – a saber, o governador – para que alguma providência seja tomada

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Sempre que uma denúncia dessas vem à tona, surgem apressados defensores da polícia para dizer que se trata de um “caso isolado”. O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, especialmente a população de travestis e transexuais. Nosso modelo policial é uma herança nefasta da ditadura militar que permaneceu intocada desde a redemocratização. Este tipo de conduta é praticamente uma tradição consagrada na polícia. Está longe de ser um “caso isolado”.

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Investigações independentes

Mudar esta realidade é uma luta que mesmo os policiais que entendem a importância do respeito aos direitos humanos precisam travar dentro da corporação. O sistema é estruturado para proteger este tipo de conduta criminosa. A rígida estrutura militar prevê punições severas para qualquer tipo de desrespeito à hierarquia policial, mas pouco ou nada faz em relação a condutas abusivas da tropa contra a população que deveria proteger.

É absurdo que a própria Brigada Militar seja responsável por avaliar as denúncias que chegam contra os integrantes da corporação. O mesmo vale para a Polícia Civil. Corregedorias vinculadas à própria instituição são o caminho mais seguro para o “deixa disso” do corporativismo.

Neste sentido, é importante a defesa que o ex-deputado Marcos Rolim faz da criação de uma corregedoria independente no Estado. Um órgão sem ligação direta com as polícias que atue para investigar denúncias de abuso e descontrole dos agentes. Não é algo que depende do governo federal. Trata-se de uma mudança institucional que cabe aos governadores e deputados estaduais aprovarem.

Enquanto isso não ocorre, seguimos lutando com as armas que temos e aproveitando todas as fissuras que existem dentro do sistema para criar brechas em favor de uma nova cultura democrática dentro dos rincões mais autoritários do Estado. Se os policiais entenderem que não podem esbofetear travestis – ou qualquer cidadão – durante uma simples abordagem, já teremos conquistado uma importante vitória. Mais uma, no marco de muitas que ainda precisam ser consolidadas.

Samir Oliveira

Travestis organizadas contra a violência policial

Samir Oliveira
5 de outubro de 2017

Esta semana vi uma notícia que me chocou e inspirou ao mesmo tempo: a de que travestis estavam denunciando a violência e o assédio sofridos por policiais à paisana na Zona Sul de São Paulo. Fiquei chocado – talvez ingenuamente – por perceber que este tipo de conduta ocorria em plena luz do dia. Por custar a crer que essa realidade, tão comum durante a ditadura, como relatam muitas travestis que viveram aquele período, segue presente até hoje.

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E fiquei inspirado pela força e resistência destas mulheres. Não se intimidaram diante da violência. Organizaram-se, filmaram seus agressores e foram até as últimas consequências com suas denúncias.

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Elas desejam apenas trabalhar. É evidente que sua presença é um incômodo ao bairro Cidade Jardim. Travestis, e ainda por cima prostitutas, desvalorizam o preço dos imóveis na região nobre de São Paulo.

Como elas ousam permanecer próximo ao Jockey Club? Misteriosamente aparecem policiais à paisana para reprimi-las, sem que ninguém assuma tê-los contratado. A própria associação de moradores do Cidade Jardim nega a contratação com uma mão e defende que se enxote as prostitutas com a outra.

Desconfio que façam isso porque sabem que é ilegal contratar policiais militares para bicos de qualquer natureza. Tanto é que a própria corregedoria da Polícia está investigando o caso. O que não deixa de ser revoltante – afinal a corporação não está apurando a comprovada e registrada violência dos policiais contra as travestis, mas sim o fato de eles estarem fazendo um bico.

Não fosse a organização das travestis e a coragem em encaminhar as denúncias, nós provavelmente nem tomaríamos conhecimento desta situação humilhante a que elas estão expostas. Que os movimentos LGBTs de São Paulo cerquem de solidariedade estas trabalhadoras. No país em que a expectativa de vida da população trans é de 35 anos, elas são verdadeiras sobreviventes.

Samir Oliveira

A força da Jesus travesti na pele de Renata Carvalho

Samir Oliveira
28 de setembro de 2017
Foto: Ligia Jardim/Divulgação

E se Jesus Cristo fosse uma travesti vivendo entre nós até os dias de hoje? Essa é a premissa do espetáculo “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, dirigido por Natalia Mallo e interpretado por Renata Carvalho. Tive o privilégio de assistir à peça semana passada no festival Porto Alegre em Cena. Saí impressionado.

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É impossível não se comover com a potência revolucionária de seu texto e com a atuação primorosa de Renata. Ela sustenta o monólogo durante uma hora com força titânica

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O roteiro é recheado de parábolas bíblicas, como não poderia deixar de ser. Em muitos momentos, as referências são trazidas à luz da atualidade para refletir sobre problemas sociais e opressões a populações vulneráveis. Uma das cenas que mais me tocou foi quando Jesus relembra a tentativa de apedrejamento de uma mulher em praça pública. Num tom celestial, sua intervenção conclamou os presentes: “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. E então a multidão se dissipou.

A Jesus travesti interpretada por Renata Carvalho domina na ponta da língua as gírias do mundo LGBT. Frequenta baile funk e celebra de forma quase divina o prazer em todas as suas formas – inclusive o sexual.

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O espetáculo é um grito de luta por direitos a mulheres, negros e negras e à população LGBT – especialmente à população trans. A cena final da peça é praticamente um manifesto

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Não sou um crítico de teatro. Este texto traz apenas minhas impressões leigas sobre o espetáculo. Uma dramatização que provocou a fúria de setores conservadores que consideram uma ofensa a possibilidade de que Jesus Cristo seja retratado como uma travesti e interpretado por uma atriz travesti.

Estes setores sentiram-se fortalecidos com a decisão vergonhosa do banco Santander de encerrar a exposição Queermuseu em Porto Alegre. Por isso, ingressaram na Justiça para censurar a peça em Jundiaí e levaram. Encontraram um juiz conservador o bastante para atender ao pedido, numa sentença que é uma verdadeira afronta ao Estado laico. Em Porto Alegre, duas ações foram protocoladas na tentativa de interditar a peça. Felizmente aqui a Justiça não vestiu a vergonhosa farda da censura. O magistrado declarou textualmente que impedir a realização do espetáculo é censurar a liberdade de pensamento e o avanço da humanidade.

Tive a oportunidade de conversar com a Renata Carvalho e a Natalia Mallo antes da peça, no teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Elas gentilmente receberam ativistas do movimento LGBT da cidade e se mostraram muito interessadas na construção de necessárias pontes entre a expressão artística e a luta por direitos.

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O tiro dos reacionários saiu pela culatra

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A censura à peça em Jundiaí deu visibilidade ao espetáculo e gerou uma onda de solidariedade em torno de atriz Renata Carvalho. Isso ficou demonstrado em Porto Alegre através do encontro da atriz com os movimentos LGBTs e do expressivo público que lotou o teatro. A imprensa compareceu em peso para entrevistar a atriz e a diretora e realizar a cobertura da estreia da peça.

Em meio a tantos retrocessos, a plena exibição de “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu” em Porto Alegre e o sucesso atingido pelo espetáculo soaram como um ritual de resistência e liberdade. Como disse Simone de Beauvoir: não existem tempos mortos. E nós estamos bem vivos!

Foto: Ligia Jardim/Divulgação

Samir Oliveira

Eu poderia ter sido uma vítima da “cura gay”

Samir Oliveira
21 de setembro de 2017

O ano era 2003. Eu ainda não conhecia o termo “cura gay”. Acho que ninguém conhecia. Não era um assunto tratado pela mídia ou com trânsito na esfera política

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Eu tinha apenas 15 anos quando fui arrastado à força para fora do armário. Não pude optar por permanecer dentro dele até me sentir fortalecido o bastante para sair. De cara, fui levado a um médico. Não a um psiquiatra, mas a um neurologista. Sim, gente: um neurologista. É evidente que o plano traçado para mim era o de alguma espécie de “cura”. Lembro até hoje das palavras daquele médico, com um livro da OMS em mãos: “Desde os anos 1990 a homossexualidade não é considerada uma doença”.

Nunca mais vi esse médico. Não lembro seu nome. Mas, nos últimos dias, tenho lembrado constantemente de suas palavras e do que elas significaram para mim naquele momento. Minha vontade é de ligar para ele e agradecer: “Você não sabe, mas me salvou”.

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Imaginem se eu caísse nas mãos de um charlatão? Ou se existisse em 2003 uma liminar judicial abrindo brechas para supostas terapias de “reversão sexual”?

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Tenho pensado muito nisso na última semana. Não apenas no que aconteceu ou poderia ter acontecido comigo. Mas no que pode estar acontecendo neste momento com um menino gay ou uma menina lésbica de 15 anos. Será que eles terão a sorte de ouvir de um profissional da saúde que “homossexualidade não é doença”? Ou será que irão ouvir que a Justiça agora autoriza a “cura gay”?

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O Samir de 2003 pensaria que estamos vivendo em uma distopia

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A aclamada série “The Handmaid’s Tale” nos alerta que os sinais do retrocesso sempre estiveram presentes, mas que nunca demos importância. Fico me perguntando se em 2003 os sinais de que algum tipo de “cura gay” seria possível em 2017 pairavam no ar. Realmente não sei, estava preocupado demais em sobreviver ao inferno naquela época para notar.

Hoje eu sei. Sei que a ação que resultou no precedente para a “cura gay” foi aberta por uma psicóloga lotada no gabinete de um deputado federal evangélico do DEM. Rozangela Alves Justino trabalha com Sóstenes Cavalcante, que além de parlamentar é pastor da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia – ele mesmo.

O deputado Sóstenes, chefe da psicóloga-missionária que reivindica a “cura gay” na Justiça, diz em seu próprio site pessoal falar diretamente com Deus: “Comigo Deus tem tratos específicos de tempos em tempos para cumprir determinadas missões”.

Hoje eu sei que a seita de Silas Malafaia investe na abertura de centros de reabilitação para dependentes químicos. O que o impediria de inaugurar centros de reabilitação para homossexuais? Se tais tratamentos passarem a ser considerados legais, nada.

O perfil @nadanovonofront no Twitter faz um alerta interessante. Estes centros de reabilitação que pipocam em todo o país possuem convênios com os governos. Ou seja, recebem recursos públicos para tratar de dependentes químicos – já que não há vagas para todos na rede hospitalar ou nos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).

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Imaginem o mercado lucrativo que a “cura gay” pode representar para os rentistas da fé. Nada mais pragmático para setores que aprenderam a ganhar dinheiro a partir do sofrimento

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Um relatório do Conselho Federal de Psicologia aponta as condições degradantes em que os pacientes são tratados nestes centros. O órgão avaliou 68 comunidades terapêuticas em 25 estados e constatou violações graves: “Interceptação e violação de correspondência, violência física, castigos, tortura, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência prévia de exames clínicos como teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências encontradas em todos os lugares visitados”, disse Cláudio Garcia Capitão, que representava o CFP no Conselho Nacional de Saúde em 2015, quando apresentou o estudo.

Aqueles que desejam a “cura gay” já perderam diversas vezes no Congresso. Não conseguiram fazer avançar seus projetos, mesmo em um Congresso absolutamente conservador como o nosso – o que revela o nível de regressão medieval da medida. Por isso apelam à Justiça, onde em algum momento acabariam encontrando um juiz conservador que lhes desse razão.

Eu acredito que podemos mudar essa história. A disputa segue na Justiça e no Congresso, mas a saída não virá das instituições. Virá da nossa organização coletiva e da força da nossa luta. Só assim poderemos deixar de viver neste presente distópico.