Faz um bom tempo que li este texto pela primeira vez, publicado em julho de 2015 no site Salon. Desde então, procuro revisitá-lo com alguma frequência e sempre encontro nas palavras da autora, a escritora muçulmana Lamya H, sentidos que a leitura anterior não revelava.
Por entender que esta discussão praticamente não existe no Brasil, e por combater frontalmente os estereótipos e preconceitos que cercam a comunidade muçulmana e os povos árabes em geral, resolvi fazer uma tradução livre e imperfeita das palavras de Lamya. Publico seu texto aqui em minha coluna no Vós na esperança de que suas reflexões também deixem outras mentes inquietas e, quem sabe, contribuam para mudanças em paradigmas já tão cristalizados.
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Por Lamya H*
Eu estou empolgada com este encontro. Eu realmente estou. Já faz um tempo desde minha última decepção amorosa, e minha melhor amiga tomou para si a tarefa de decidir que chegou a hora de eu seguir em frente. Ela insistiu para que eu baixasse o Tinder e me animou enquanto fazíamos juntas meu perfil. Fui encorajada a deslizar para a direita algumas vezes e falar com mulheres com quem eu dava um match. Levou algum tempo, mas eu finalmente estou entrando neste clima. E agora eu estou empolgada com este encontro.
Ela conseguiu se elevar até o topo das minhas crushes do Tinder. Sua originalidade – um componente essencial de todas as minhas paixões – é empolgante. Ela é inteligente, engraçada e ainda por cima linda.
Vamos nos encontrar para tomar um sorvete. Ela está um pouco atrasada. Começo a olhar para todos os rostos que estão passando ao redor, tentando encontrar alguma semelhança com as fotos que ela postou no Tinder. Queria vê-la antes de ser vista. “Procure pelo hijab”, eu havia dito a ela – um pouco ansiosa por revelar o que há embaixo dos chapéus nas minhas próprias fotos do Tinder. “É difícil não me notar.” Sua resposta indiferente, nem fetichista, nem surpresa, me tranquilizou. Estou empolgada com este encontro.
Mas… Nós nos vimos no mesmo instante, trocamos olhares tímidos e cumprimentos rápidos antes de pedir os sorvetes. Nos sentamos e a segunda pergunta que ela me fez foi:
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“Então, Lamya, me diga como você pode ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”
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Sempre tem um mas.
Isso acontece com tanta frequência que já tenho até uma estratégia. Primeiro, reviro levemente os olhos. Depois vem a resposta pronta. Digo que diversidade sexual e de gênero e islamismo não são coisas mutualmente excludentes. Que o Islã não é um monólito. Que o meu Islã é amplo e meu Deus, acolhedor. Que a comunidade LGBT também não é um monólito, que há diferentes formas de ser LGBT e diferentes narrativas que não se encaixam nos modelos ocidentais de “sair do armário” e reproduzir modelos familiares heteronormativos. Que as pessoas precisam parar de fetichizar aqueles de nós que vivemos nestas intersecções aparentemente impossíveis. Que a minha orientação sexual e minha religiosidade muçulmana não precisam ser reconciliadas, pois elas estão profundamente conectadas e fazem parte de quem eu sou.
Depois que eu termino esse discurso educativo, estou exausta e meu interesse na pessoa evapora. As tentativas de seguir tendo um encontro legal parecem vazias e, depois que um certo período de tempo já passou, eu uso o trabalho como desculpa e vou embora.
Já é tarde quando meu amigo me chama. Do nada, e um pouco depois do horário apropriado para uma ligação. O telefone toca uma vez apenas e depois ele desliga. Já sei que esse tipo de chamada é uma senha para que eu atenda imediatamente quando ele ligar de novo, antes que ele mude de ideia. Ele respira fundo depois do “alô” e esta é minha deixa para assumir o rumo da conversa. Eu me aconchego no sofá com o telefone, me acomodo na sala à meia-luz, falo um pouco sobre amenidades e coisas do dia a dia até que ele se sinta pronto para conversar.
Vem aos poucos. Ele me conta que seu pai está doente. Que acabou de falar com sua mãe ao telefone. Que têm havido comentários maldosos sobre seu ex-namorado e níveis pesados de culpabilização. “Você tem rezado?”, sua mãe lhe pergunta. “Você tem lido o Alcorão? Se você lesse, saberia a diferença entre certo e errado.” Ele parece cansado e irritado, mas especialmente cansado. Cansado de alegarem uma relação entre ele ser gay e os problemas de sua família. Cansado de silêncios e de não poder responder de volta. Cansado de deixar algumas coisas passarem batido em nome da compaixão. Será que os pais dele sabem que ele está sofrendo? Será que sabem que estão magoando ele, que estão afastando ele do conforto que encontrou na religião? Suas palavras transformam-se em lágrimas e eu me pego chorando junto.
Mas… Enquanto as lágrimas dão lugar ao silêncio que se acomoda entre nós, ele me faz uma pergunta tranquila:
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“Como você consegue, Lamya? Como você consegue ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”
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Eu não posso mentir para o meu amigo. Ele sempre esteve presente nos momentos difíceis. Eu sempre estive presente em seus momentos difíceis. Ele sabe o que significa lidar com o fato de ser gay e ser muçulmano. Eu me recuso a respondê-lo com respostas prontas. Não posso usar respostas prontas para ele porque sequer as tenho para mim mesma.
A própria ideia de que tenho que ter uma resposta é parte do problema. Como se nós fôssemos seres estáticos que precisam ter tudo solucionado. Como se só fosse permitido viver e amar após solucionar todos os impasses. Como se não houvesse espaço para o amadurecimento, para questionamentos críticos ou para aprendizados. Essas são as respostas que eu nunca quero ter.
Mas eis algumas coisas que eu sei, algumas possibilidades que encontrei e que tornam possível ser ao mesmo tempo LGBT e muçulmana.
Minha orientação sexual e minha fé muçulmana estão profundamente costuradas no tecido de quem eu sou. É impossível que eu tenha que escolher entre uma coisa ou outra. É impossível que eu veja ambas como mutuamente excludentes. Eu não preciso que um Imã me diga que posso encontrar conforto e alegria em ambas. Não preciso de explicações nos versos do Alcorão e nas Hadith, que frequentemente são citadas em outro sentido. Eu examinei todas as explicações e hermenêuticas do Alcorão numa tentativa de torná-lo mais acolhedor aos LGBTs. Algumas delas me convenceram, outras definitivamente não. Em alguns momentos parecia que eu estava brincando com as palavras, esticando seus significados. Este processo acabou me ensinando que um texto é um texto. Textos vêm com contextos e interpretações, é possível me apegar ao que dialoga comigo e deixar o resto para lá. Confiar sobretudo na minha fé e na minha prática, na justiça e na compaixão.
É desta forma que procuro estender essa compaixão aos outros, particularmente à minha comunidade muçulmana. Eu não tenho que renunciar a ela e não posso culpar toda uma comunidade por casos de homofobia em um mundo que é homofóbico. Não posso fazer isso enquanto o homonacionalismo e a política LGBT tradicional vêm sendo utilizados para marginalizar minha comunidade e pintá-la como atrasada, justificando ocupações. Não preciso me defender por seguir frequentando a minha mesquita. Não preciso justificar a plenitude espiritual e a sensação de conexão que eu sinto neste espaço imperfeito, nesta comunidade imperfeita – que luta, sim, contra a homofobia, assim como contra o racismo e a misoginia. Uma comunidade que enfrenta simultaneamente a vigilância e a perseguição. Que sofre com guerras feitas em nosso nome – guerras que dizem nos salvar de nós mesmos –, com nossas pátrias sendo bombardeadas por drones. Essa é a comunidade imperfeita com a qual eu luto junto, mas ao mesmo tempo contra.
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Eu não preciso performar minha sexualidade lésbica de uma forma que seja compreensível para pessoas heterossexuais – através do casamento ou reivindicando imposições biológicas –, ou para outras pessoas LGBTs
Eu não sou obrigada a tirar meu hijab ou a sair do armário se eu não quiser. Nem para os meus pais, nem para conhecidos casuais e nem mesmo para os meus amigos
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O que eu preciso, e o que percebi que não posso viver sem, é a minha comunidade. Mais especificamente, a comunidade LGBT muçulmana: uma família que nós escolhemos, composta por pessoas que comem juntas, protestam juntas, onde eu posso ser lésbica e muçulmana sem ter que ficar me defendendo, me explicando e me justificando. Uma comunidade com pessoas que comem juntas após o jejum diário no Ramadã, que leem o Alcorão juntas e que se divertem juntas em passeios na praia. Pessoas que me colocam para cima após uma decepção amorosa. Pessoas com quem eu posso contar quando preciso de apoio, porque elas também contaram comigo quando precisaram. Pessoas que definem o que é compartilhar o amor.
Não me entendam mal, ainda assim tem dias em que viver parece impossível. Em que o futuro parece impossível. Dias em que palavras casuais, mas cáusticas, machucam profundamente. Dias em que choro escondida na escada. Dias em que é mais fácil apenas dizer as coisas certas, ao invés de realmente acreditar nelas. Dias que parecem insustentáveis e exaustivos. Dias em que parece mais fácil sonhar com soluções simples, cortar os laços comunitários e ser assimilada – desistir e fingir.
Mas também há dias em que se agitam com possibilidades revolucionárias: estruturas familiares alternativas e sonhos sobre comunidades muçulmanas LGBTs. São estes dias que fazem tudo valer a pena. São estes dias que tornam possível ser LGBT e muçulmana ao mesmo tempo. Dias em que deixamos os “mas” de lado e apenas somos.
Eu conto ao meu amigo sobre estes dias e, ao invés de exaustão, sinto apenas alívio.
*Lamya H é uma escritora lésbica e muçulmana vivendo em Nova York.
(Crédito da imagem: Antonio Guillem via Shutterstock/Salon)
