Voos Literários

Misoginia nas eleições e na vida em sociedade

Flávia Cunha
1 de setembro de 2022

Misoginia

  1. ódio ou aversão às mulheres
Fonte: Oxford Languages

A campanha eleitoral de 2022 é só mais um campo social no qual podemos observar a misoginia e o machismo cotidiano no Brasil. Até o momento, um episódio virou um símbolo misógino: os ataques de Jair Bolsonaro à jornalista Vera Magalhães durante o debate presidencial do dia 28 de agosto. Ofendido pelo comentário da jornalista sobre a conduta de desinformação e atraso na vacinação da covid-19, Bolsonaro reagiu da seguinte forma:

“Vera, eu acho que eu não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro.”

Machismo recorrente

A partir daí, o tema machismo na política esquentou o debate, com Bolsonaro como a figura central de crítica, principalmente das candidatas mulheres presentes no programa, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil).  A postura machista do atual presidente do Brasil não é uma novidade. Mas ele segue negando este fato. Em um evento com empresários em Brasília, dois dias depois do debate eleitoral, afirmou:

“Eu não ofendi a Vera Magalhães, só que ela bate em mim o tempo todo. Eu falei que ela… sonha comigo. Nada mais do que isso aí. Outra coisa, ela não fez uma pergunta, ela fez uma afirmação contra mim.”

Apesar do machismo evidente das duas declarações, o candidato pelo PL seguirá nessa narrativa de negação, que faz parte da conduta machista. Afinal, uma das formas de desmerecer uma mulher é justamente invalidar suas opiniões a respeito de um assunto. No caso, a jornalista Vera Magalhães afirma que a declaração de “dormir pensando nele” é, por si só, misógina. Além disso, para ela, a fala de Bolsonaro contribui para o machismo estrutural, ao associar o papel da mulher mesmo quando ela está exercendo seu trabalho a alguma conotação de cunho sexual.

Misoginia cotidiana

Para além das eleições, as mulheres enfrentam o machismo em suas relações cotidianas. De casos escancarados, como este de Bolsonaro, até o machismo sutil, com microagressões, inclusive no ambiente de trabalho.  Porém, para haver uma mudança de atitude na sociedade brasileira como um todo, é preciso haver uma conscientização sobre os prejuízos do machismo nas relações interpessoais.

Sendo assim, indico quatro sugestões de leitura que podem ser aconselhadas tanto para homens que queiram apoiar o feminismo quanto para mulheres que ainda não entenderam a importância da luta feminista. 

Dicas de leitura

Clube da Luta Feminista – Um manual de sobrevivência (para um ambiente de trabalho machista), de Jessica Bennett

Um guia divertido e prático sobre como se defender do machismo nas relações profissionais. Um viés interessante trazido pela autora é sobre comportamentos que não são notoriamente misóginos e que podem provocar dúvidas e inseguranças nas mulheres no ambiente corporativo. Entre eles, por exemplo, o caso da revista norte-americana Newsweek. Nos anos 1960 e 1970, era uma publicação notoriamente machista, o que deixou de ser décadas depois, quando Jessica Bennett foi repórter lá.

Confira um trecho:

“Certa vez, Gail Collins, colunista do New York Times, me contou que, se o machismo em sua época era de fato acachapante, pelo menos tinha uma espécie de vantagem: era fácil identificá-lo. Quando um sujeito passava a mão na sua bunda ou te dizia que ‘na Newsweek, mulher não escreve’, sem dúvida era injusto, mas pelo menos você reconhecia na hora. Era uma discriminação flagrante – machismo de papel passado e se encaixando na definição jurídica –, e não simplesmente uma ‘sensação’. (Será que aconteceu mesmo? Estou maluca? Será que só eu vi isto?)

Hoje, reconhecer o machismo está mais difícil do que antes. Tal como as microagressões que as pessoas negras suportam todos os dias – racismo dissimulado em forma de pequenos insultos ou desdém –, o machismo de hoje em dia é insidioso, vago, politicamente correto, e até mesmo simpático. São condutas indefiníveis, imensuráveis, escamoteadas, e dificílimas de acusar que talvez não sejam necessariamente intencionais nem conscientes. Às vezes as mulheres também incorrem nelas. Nada disso torna a coisa menos nociva. Na lida cotidiana, isso significa ver um homem instintivamente se voltar para uma mulher para ditar algo numa reunião, ou vê-la ser confundida com a auxiliar de escritório quando na verdade é a chefe.”

Mulheres na Luta 150 anos em busca de liberdade, igualdade e sororidade, de Marta Breen e Jenny Jordahl

Uma HQ com a trajetória de diversas mulheres importantes para o movimento feminista. O panorama destaca batalhas históricas, como a participação na política e a luta das mulheres contra a escravidão. A edição da editora Seguinte traz um posfácio sobre o feminismo no Brasil, que enriquece ainda mais este livro, de origem norueguesa.

Mulheres no jornalismo – práticas profissionais e emancipação social, organização de Marli dos Santos e Ana Carolina Rocha Pessôa Temer 

Este livro em formato digital da Faculdade Cásper Líbero está disponível gratuitamente aos interessados em se aprofundar nas especificidades de gênero de quem exerce a profissão de jornalista.

Confira um trecho:

“Como em outros segmentos do mundo do trabalho, o jornalismo está imerso no contexto da sociedade patriarcal, que desde seu surgimento se mantem à custa de um discurso baseado na questão econômica, o qual sustenta o poder familiar e político dos homens. Embora as conquistas femininas no mundo do trabalho se justificaram em grande parte pelas necessidades de sobrevivência e pelas mudanças nas instituições seculares, como a família, ainda hoje as mulheres sofrem com relações tensas no trabalho e discriminação de gênero, conforme apontam pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) […].”

E eu não sou uma mulher, de Bell Hooks

Um dos grandes méritos deste clássico feminista é demonstrar como a luta a favor do voto feminino nos Estados Unidos excluía mulheres negras e pobres.  Nesse sentido, considero a obra fundamental dentro do contexto eleitoral brasileiro atual. Levando em conta, por exemplo, o debate presidencial mencionado neste texto, somente com candidatos brancos e apenas duas pessoas sendo do sexo feminino. O racismo, inclusive, não foi um tema abordado ao longo deste debate, que também teve a ausência de jornalistas negros como apresentadores ou fazendo questionamentos.

Imagem: Band TV/ Reprodução


 

 

Voos Literários

A casa de Caio Fernando Abreu vai muito além dos muros

Flávia Cunha
1 de agosto de 2022

A casa de Caio Fernando Abreu ainda pode ser um espaço para preservação da memória do escritor gaúcho, que tem relevância nacional e internacional e faleceu em Porto Alegre, em 1996. A esperança vem de uma liminar judicial.  Apesar dos atuais proprietários do imóvel terem ordenado a derrubada do sobrado em estilo espanhol, a decisão interrompeu o processo de demolição. Infelizmente, a decisão judicial favorável à ação civil pública reivindicando que o imóvel seja considerado patrimônio cultural chegou quatro dias depois das retroescavadeiras. Entretanto, a casa de Caio F. é muito mais que suas paredes e vai “além dos muros”, como o autor cita em um dos  textos mais famosos com menção ao local.

Tentativa de acordo

Em entrevista à coluna Voos Literários, Marcelo Sgarbossa, advogado e integrante da Associação de Amigos do Caio Fernando Abreu, relata que a expectativa é de um acordo com os donos do imóvel. “A importância desta casa é muito mais que suas paredes. Além de mencionar o sobrado em seus textos, Caio também falava do bairro Menino Deus e da beleza de suas ruas”, destaca. Por enquanto, a expectativa de Sgarbossa é que um processo de mediação possa resultar em um centro cultural na rua Oscar Bittencourt, número 12. “Poderia ser conciliado com o uso comercial ou residencial da área”, pondera. Os proprietários do local, no entanto, ainda não se pronunciaram publicamente sobre o assunto.

No texto da ação popular, Sgarbossa, em conjunto com os advogados Jacqueline Custódio e José Renato de Oliveira Barcelos, lembram que “a memória e o patrimônio cultural de um povo são compostos por bens e valores inestimáveis, razão pela qual qualquer risco de lesão deve ser imediatamente reparado. (…) Lamentável a notícia da derrubada das paredes da casa”. Entretanto, é importante recordar que a derrubada foi permitida em licença concedida pela prefeitura de Porto Alegre. Após a repercussão do caso, integrantes do poder municipal lamentaram a demolição do imóvel. Em seguida, garantiram que apoiariam a tentativa de transformar o espaço em um centro cultural.

Manifestação pela memória e pela Arte

Um dia depois da derrubada das paredes da casa, admiradores do escritor realizaram um protesto em frente ao local. Apesar do clima de tristeza, a lição que fica é não desistir diante das adversidades. Por ora, não há uma conclusão a respeito deste episódio. Entretanto, já é um alento observar um integrante do Judiciário ser sensível aos apelos de quem luta pela preservação da memória cultural brasileira.

A casa de Quintana e a inspiração para o presente   

Afinal, a Arte também movimenta a economia, através de eventos e do turismo. Desse modo, um exemplo na própria capital gaúcha é a Casa de Cultura Mario Quintana, que só foi inaugurada com uma grande mobilização por parte do poder público. Embora tenha havido empenho, foram necessários 10 longos anos para que o antigo Hotel Majestic, e ex-morada de Quintana, virasse um centro cultural, inaugurado em 1990. Na comparação, a diferença é que, naquela época, o governo do Estado demonstrou interesse em comprar o imóvel, para evitar a derrubada do prédio de 1933. Hoje, a CCMQ é um centro cultural que recebe milhares de visitantes para atividades ligados ao cinema, música, teatro, literatura e artes visuais, além de ter a reprodução do quarto do poeta e diversos espaços que exaltam a importância de Quintana para a literatura brasileira.

Mais casas de escritores que são pontos turísticos 

Em síntese, transformar casas de escritores em pontos turísticos também foi uma decisão acertada para movimentar o turismo em diversas cidades brasileiras. Entre os destaques, estão a casas de Jorge Amado e Zelia Gattai, em Salvador, de Cora Coralina, na cidade de Goiás, de José de Alencar, em Fortaleza, e Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Minas Gerais. Da mesma forma, no Chile, três casas do poeta Pablo Neruda foram transformadas em espaços de memória e cultura. Neste sentido, nos parece evidente que bastaria mobilização por parte do poder público e da iniciativa privada para a casa de Caio F. ser transformada em um espaço de promoção da Arte.

Para além dos muros

Em 1994, Caio voltou retornou à capital gaúcha para viver com os pais, após ter a confirmação do diagnóstico de HIV positivo. Assim, a casa que o acolheu virou parte cada vez mais recorrente e relevante de sua literatura, como no texto a seguir:

“Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto”.

Última carta para além dos muros, crônica do autor publicada em O Estado de São Paulo, em 1994.

O escritor e a casa no Menino Deus

Além disso, a residência foi local, na época, para entrevistas e fotografias. Como nesta entrevista para a emissora TVE. Na gravação, Caio está em frente ao sobrado espanhol. Também aparece em algumas imagens dentro da casa. Nelas, está trabalhando em seu microcomputador, que chamava de Robocop.

 

Por fim, aproveito para ressaltar que já escrevi sobre Caio Fernando Abreu e a importância da preservação de sua casa. Para ler este texto, bastar clicar aqui.

Seguimos na luta em apoio à memória desse grande escritor!

Imagem: Caio F. Entre Nós: Caio na Memória Viva / Facebook

 

 

Voos Literários

Milton Ribeiro está preso! E não está…

Flávia Cunha
22 de junho de 2022
O Ministro da Educação, Milton Ribeiro, anuncia o relatório final do Grupo de Trabalho da reestruturação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, está preso desde a manhã desta quarta-feira por suspeita de corrupção. Mas um homônimo da área da Literatura encara com muito bom humor a infeliz coincidência de compartilhar o nome com uma figura tão emblemática dos defeitos do governo Bolsonaro. Nesta quarta-feira, não foi diferente e ele resolveu publicar no Twitter uma “nota oficial” sobre não estar preso.

Iguais apenas no nome

Porém, é bom explicar aos desavisados: o Milton Ribeiro livreiro e escritor em nada se assemelha ao seu xará, envolvido em suspeita de liberação irregular de verbas, em um esquema que envolveria dois pastores e até propina em ouro

Desde que o Milton pastor assumiu o cargo, em julho de 2020, o Milton dos livros ganhou junto a carga de ser hostilizado nas redes sociais por quem é de esquerda. Uma ironia do destino, já que o homônimo do ministro é contrário a Bolsonaro desde 2018 e não esconde isso nas redes sociais.

Falando com o homônimo que interessa

Em entrevista à coluna Voos Literários, Milton Ribeiro comentou que logo que o ministro assumiu o governo, sua reação foi de incômodo. Mas, com o tempo, foi aprendendo a lidar com a situação. 

“Depois que o xará entrou no governo, todos os dias no twitter @miltonribeiro recebia aplausos e críticas. Em um primeiro momento, eu sempre negava ser o ministro. Depois, comecei a me divertir.”

Entre os momentos cômicos, Ribeiro cita que respondia a apoiadores do governo com comentários como “Fora, Bolsonaro”, o que provocava perplexidade. A confusão era tão recorrente que seu perfil no twitter chegou a ser marcado em publicações do Ministério da Educação. Então, o Milton que não é pastor aproveitava para fazer críticas ao governo, o que gerava espanto por parte dos seguidores.

A ressalva aos militantes de esquerda também era continuamente necessária, já que muitos não compreendiam que aquele perfil não era do integrante do primeiro escalão do governo.

“Em determinadas situações, aproveitei a visibilidade para abordar temas que achava importantes, como a descriminalização do aborto. Também aproveitei para fazer publicidade da Bamboletras e dos livros que vendemos lá. No final, consegui enxergar como cômica essa coincidência”, explicou. 

Tempos cinzentos em busca de esperança

E convenhamos que só recorrendo mesmo a um pouco de humor e à Arte para a gente suportar tantas e tantas desgraças nesse Brasil bolsonarista. Um país com uma população cada vez mais sofrida, que precisa lidar com a dor de assassinatos de quem defende causas nobres. Suportar crianças coagidas a manterem a gravidez decorrentes de estupros. Se compadecer com pessoas LGBTs atacadas diariamente por simplesmente existirem, entre outras barbáries. 

Por isso, aproveitamos a dica de leitura do Milton Ribeiro que realmente nos interessa, o que ama os livros, e não o que exalta armas e conservadorismo (hipócrita). Sendo assim, também recomendamos Carcereiros, de Drauzio Varela. A obra trata do cotidiano dos agentes penitenciários a partir do olhar sensível de quem também vivenciou o cotidiano do sistema prisional brasileiro.   

O livro tem na Bamboletras, claro. Porém, vale a ressalva: aqui na coluna Voos Literários não ganhamos propina para divulgar boas iniciativas literárias, ao contrário de algumas pessoas meio suspeitas por aí. Pois acreditamos em conceitos utópicos como redes colaborativas e amor aos livros para que, um dia, o mundo seja mais agradável para quem defende os direitos humanos e a cultura. Entretanto, estes são tempos difíceis para os sonhadores, como disseram a Amélie Poulain. Porém, seguimos em frente, com esperança de que o futuro seja melhor.

 

Este texto foi sugerido pela editora-chefe do Vós, Geórgia Santos, com produção de Igor Natusch. Quer enviar uma sugestão de pauta para a coluna Voos Literários? Então, escreva para flavia@vos.homolog.arsnova.work ou me siga no Instagram @fcunhaprodutora, onde dou mais dicas de literatura e do mercado editorial.

Imagem: Fabio Rodrigues / Agência Brasil

 

 

 

 

Voos Literários

Casamento de Lula e Janja x elitismo à brasileira

Flávia Cunha
23 de maio de 2022

Desde o anúncio da festa de casamento do ex-presidente Lula com a sociológa Rosângela Silva, a Janja, realizado no dia 18 de maio, o noticiário político ganhou contornos de fofoca. Leo Dias, um colunista conhecido por expor a intimidade de celebridades, foi o responsável por disseminar os detalhes da cerimônia. De entre elas, a de que espumantes que custam 90 reais seriam oferecidos aos convidados, entre outros detalhes.

Esquerdista não pode ter luxo!

Foi o suficiente para que uma onda de ódio e críticas ganhassem força nas redes sociais e em parte da grande mídia brasileira. Afinal, Lula, um ex-presidente da República e candidato ao cargo mais importante do país, deveria ou não ter feito uma festa de casamento “luxuosa”? 

“É imoral neste momento em que tantos passam fome!”

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“Um esquerdista-comunista-petralha não pode ostentar!”

Pois me pergunto se os questionamentos a respeito de uma festa que não foi realizada com dinheiro público são pertinentes do ponto de vista político. Seria incoerência Lula pregar a redução da desigualdade social ao mesmo tempo em que se dá ao direito de ter uma festa de casamento com bebida (boa) liberada?

Elitismo à brasileira

Por trás da falaciosa polêmica, parece estar o elitismo que costuma acompanhar as críticas a representantes da esquerda brasileira. Que não podem usar Iphone nem comprar nada nos Estados Unidos por lá ser o berço do capitalismo, por exemplo. Que a esquerda caviar (ou cirandeira) é distante do povo pelo simples fato de ter mais dinheiro e por aí vai.

Os defensores dessa visão enxergam a esquerda como condenada a um compulsório voto de pobreza em nome de uma suposta coerência ideológica. Mas digamos que Lula resolvesse seguir essa linha de raciocínio…

O casamento versão “esquerdalha”

Receberia os convidados trajando camiseta puída, uma bermuda gasta e chinelos, com um corote em punho. Janja deveria abrir mão do vestido de noiva, esse símbolo da burguesia. Poderia usar um vestido simples, sem adornos. Afinal, esquerdistas não precisam ter vaidades! No convite de casamento, um alerta: traga sua bebida e 1 kg de carne para o churrasco.

No dia seguinte, certamente circulariam “notícias” a respeito da pobreza da celebração, de como era uma falta de respeito com a instituição do casamento, etc. Afinal, os adeptos do elitismo e do falso moralismo parecem se incomodar é com um ex-metalúrgico que ocupou um cargo tão importante e, ao que tudo indica, ocupará novamente. 

Os antipetistas preferem não enxergar que de comunista Lula não tem nada, já que durante seus dois mandatos buscou mais a conciliação de classes do que a revolução do proletariado. O moderado Geraldo Alckmin, atual candidato a vice, que o diga…

Sugestão de leitura para ampliar o debate

Subcidadania brasileira – Jessé Souza – Editora Leya

Trecho destacado pela coluna Voos Literários:

“Essa visão absurda e servil do brasileiro como lixo do mundo, que retira a autoestima e a autoconfiança de todo um povo, só logrou se tornar a ideia hegemônica entre nós porque se traduz em dinheiro e hegemonia política para a ínfima elite do dinheiro que nos domina há séculos. Essa ideia possibilita a união do desprezo das elites internacionais em relação à periferia do capitalismo, com o desprezo das elites nacionais pelo seu próprio povo. É apenas porque a sociologia do vira-lata serve como uma luva para a legitimação dos interesses econômicos e políticos dessas elites, o que explica que ela tenha se tornado a interpretação dominante da sociedade brasileira para si mesma até hoje.”

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Imagem: Ricardo Stuckert / Reprodução redes sociais

 

 

 

 

Voos Literários

Moro e uma fake news da fake news

Flávia Cunha
20 de abril de 2022

Moro, um dos pré-candidatos à presidência da enfraquecida terceira via, teve seu nome envolvido em uma fake news literária nesta semana. Na última segunda-feira, Dia Nacional do Livro Infantil, o ex-juiz postou em suas redes sociais a obra que encantou sua infância.

A citação ao livro Dendeleão foi o que bastou para acusarem Sérgio Moro de mentiroso contumaz. Afinal, de acordo com os “especialistas” da Internet, a obra, escrita pelo norte-americano Don Freeman, teria sido publicada no Brasil, em língua portuguesa, pela editora Ediouro, apenas em 1995, quando ele já teria mais de 20 anos de idade.

Mas qual foi a fonte para essa informação replicada à exaustão no Twitter?

Conforme as pesquisas que fiz nas redes sociais e no oráculo Google, a referência principal para esta data da década de 1990 foi o site Estante Virtual, de venda de livros usados. Portanto, não era uma fonte acadêmica ou editorial confiável sobre o lançamento da obra.

Reunião de pauta  

No início da noite desta terça-feira (dia 19), acionei meus colegas do Vós, antes da gravação do podcast Bendita Sois Vós. Parecia um assunto interessante de ser mencionado no episódio desta semana, já que sempre fazemos referência à política, mas levando em conta aspectos mais aprofundados das notícias. Até o momento da gravação, na noite do dia 19, tínhamos suspeitas que o livro teria sido lançado na década de 1970, porém não tínhamos uma confirmação oficial. Alguns indícios nos levavam a esse caminho, após pesquisas realizadas em grupo. A Geórgia Santos descobriu, por exemplo, que na época a Ediouro se chamava Edições de Ouro e a tradutora de Dendeleão, a escritora Stella Leonardos, havia lançado livros infantis por esta editora. Posteriormente, a Edições de Ouro uniu-se à empresa Tecnoprint, criando a Ediouro, ainda em atuação. Sendo assim, seria possível que a indicação de edições do livro fosse modificada, a partir desta mudança.  

Além disso, outros sites confiáveis, como da Academia Carioca de Letras, apontavam que o trabalho mais frequente de Stella como tradutora foi entre os anos 1960 e 1970.  Portanto, as edições da obra em questão poderiam ter simplesmente utilizado a mesma tradução, prática comum no mercado editorial. Diante de tais dúvidas, após um período de debates internos, optamos por não incluir o assunto no podcast. Afinal, se a nossa crítica era justamente a reprodução de uma informação incorreta, precisávamos ter responsabilidade.

Assim, fiquei com a missão de, no dia seguinte, acionar a assessoria de imprensa da Ediouro e aguardar esta resposta que seria destinada ao conteúdo desta coluna. Sem ter a ânsia pelo “furo” jornalístico, já que até aquele momento nenhum veículo de comunicação havia falado sobre a possibilidade de fake news envolvendo o assunto.

Fake news confirmada

Na manhã desta quarta-feira, o site Boatos.org divulgou que era falsa a informação de que Sérgio Moro teria citado um livro lançado em 1995 como se tivesse marcado a sua infância. No entanto, o site não tinha informações da parte da editora, que foi a confirmação que o Vós optou por fazer.

A confirmação da Ediouro

Segue a resposta da assessoria de imprensa da Editora Ediouro, enviada especialmente para a coluna Voos Literários:

A Ediouro contratou a obra Dendeleão, assim como a sua tradução, na década de 1970, o que nos leva a crer que a primeira edição da obra foi lançada nessa época. Em 1995, contratamos ilustrações para uma nova edição e a obra voltou a circular nesse momento. Não encontramos registros de data da primeira edição em nossos sistemas, pois trata-se de informação bem antiga.

Aproveito para deixar registrado que o autor do livro é o Don Freedman. A Stella Leonardos é a tradutora.”

Mais debates e análises conjuntas

Ao receber a resposta da Ediouro, entrei em contato, mais uma vez, com meus colegas do Vós. Ao comentar que a declaração da editora não havia sido categórica, o Igor Natusch conseguiu uma informação interessante, que ajudou na confirmação mais exata de que o assunto que circulava nas redes sociais era uma fake news. Em um arquivo da Procempa (Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre), havia referências à listagem de obras literárias de uma biblioteca local. Neste documento, a obra Dendeleão estava na quinta edição em 1995, o que já comprova que o livro não havia sido lançado naquele ano. 

Anúncio de 1973

Por fim, mas não menos importante como fonte de confirmação, está o tweet do usuário Jobson Camargo.

Ele resgatou um anúncio da Ediouro, publicado no jornal Folha de São Paulo, em dezembro de 1973 (imagem ao lado.)

A publicidade da editora incluiu Dendeleão como uma das obras sugeridas para a leitura de férias e Natal de crianças, há quase 49 anos.

 

No detalhe da imagem original, editada pelo Igor Natusch, é possível ver o nome da obra em questão, dentre outras lançadas pelo Pingos de Ouro, um selo editorial já extinto, da Ediouro.

Moro disse a verdade (ao menos dessa vez)

Sendo assim, percebemos que é perfeitamente possível que essa leitura tenha marcado a infância de Sérgio Moro, nascido em 1972. Por isso, fiz questão de citar todo o percurso sobre checagem de notícias. Pois assim, procurei salientar como pode ser irresponsável e perigoso o atropelo das redes sociais em citar como mentiroso um pré-candidato à presidência da República.

Fake news “do bem”?

Claro que seria delicioso apontar uma inverdade tão descarada em uma figura que já demonstrou não ter afinidade com a Literatura, como no episódio da entrevista com Pedro Bial, em abril de 2019.

Porém, precisamos ter o cuidado de confirmar as informações antes de sair espalhando-as por aí. Sempre é bom lembrar: não existe fake news “do bem”. Pois quando atinge o nosso lado da trincheira, nós bradamos contra as tias do zap-zap. Então, não podemos cometer os mesmos erros. 

E para quem acha que envolver um livro infantil em uma notícia falsa é algo superficial ou bobo, não nos esqueçamos da menção à obra para crianças Aparelho Sexual e Cia como parte do fantasioso kit gay. Ao não ser questionado, em rede nacional, porque estava inventando que um livro infantil era pornográfico, o então candidato Jair Bolsonaro abriu um precedente perigoso. 

* Após a publicação deste texto, recebi a informação de que a primeira edição do livro em questão foi registrada junto à Biblioteca Nacional, em 1973, pela editora Tecnoprint. A confirmação foi feita através do depósito legal (envio obrigatório de exemplar de livros publicados no Brasil) e consta no catálogo da Biblioteca Nacional.

Foto: Facebook/Reprodução

 

 

 

 

 



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A pandemia como fonte de inspiração literária

Flávia Cunha
29 de março de 2022

A pandemia, após 2 anos, tem contornos de rotina. Mesmo quem ainda prossegue – com razão – mantendo as medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades de saúde, já automatizou a máscara e o álcool em gel. Dessa forma, os conscientes são um resiliente exército de mascarados procurando sobreviver às agruras do coronavírus, ainda convivendo com perdas e lidando com os descrentes na manutenção dos cuidados. Diante de um cenário tão desafiador, pode parecer mesquinho falar em necessidade de produção literária. Porém, é inegável a vontade de alguns autores extravasarem, através da escrita, o que sentiram durante as restrições mais rígidas impostas pela pandemia, principalmente em 2020.

Catarse para traumas?

Mas será que os leitores querem consumir esse tipo de literatura sobre um passado tão recente? Nesse sentido, o quanto publicar livros com temáticas pandêmicas vai ajudar no entendimento do que passou? Em termos práticos, sabemos que eventos traumáticos inspiram produções artísticas. A Segunda Guerra Mundial e a ditadura militar brasileira, por exemplo, são fontes aparentemente inesgotáveis de estímulo criativo para autores e roteiristas. 

Esperar ou publicar?

Resta saber se seria ou não mais adequado aguardar um período de elaboração do luto coletivo para tocar em um tema tão sensível. Por outro lado, vivemos em uma época de extrema velocidade no consumo da informação. Sendo assim, talvez escritores devam mesmo publicar agora livros a respeito da pandemia, para demonstrar a relevância do assunto e não o deixar cair no esquecimento.

Já que, afinal de contas, em tempos de fake news e desinformação, precisamos de publicações confiáveis, para evitar que as próximas gerações caiam na conversa fiada de que o coronavírus foi uma grande conspiração mundial. Uma mentira. Uma falácia. E que as pessoas que ficaram confinadas em casa durante o ano de 2020 foram apenas covardes, e não solidárias com a saúde coletiva.

Duas sugestões de livros para refletir sobre os efeitos da pandemia

O Projeto Decamerão: 29 Historias da Pandemia A coletânea conta com nomes como Margaret Atwood, Mia Couto e Charles Yu. Os contos foram publicados originalmente no The New York Times, como uma forma de homenagem histórica a esse difícil momento enfrentado pela humanidade.  

Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil, populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia – O livro, lançado pelo Observatório Covid-19 Fiocruz e a Editora Fiocruz, demonstra, com informações técnicas e precisas, como os efeitos de uma pandemia vão muito além da doença em si. O e-book é disponibilizado gratuitamente, na rede Scielo Books.

Imagem: Dan Counsell/Unsplash

 

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Racismo à brasileira, a negação em ação

Flávia Cunha
22 de fevereiro de 2022

O racismo no Brasil existe e negá-lo é um desserviço a todas as pessoas interessadas em uma sociedade democrática e menos desigual. Porém, na grande imprensa o debate falacioso sobre liberdade de expressão parece ser mais importante do que a luta antirracista. Nesse sentido, um dos casos mais recentes é o artigo sobre racismo reverso publicado na Folha de São Paulo em janeiro deste ano.

Contudo, este é apenas um dos muitos episódios em que a grande mídia parece mais preocupada em ter uma visão supostamente plural do que em combater preconceitos.

Desigualdade também no jornalismo

Neste cenário, uma pesquisa divulgada em novembro de 2021 revelou que apenas 20% dos jornalistas brasileiros atuando em grandes redações são negros. Portanto, não é de se espantar que muitas pautas sobre racismo sejam abordadas de forma equivocada ou superficial. Para piorar esta conjuntura já desigual, há menos jornalistas negros ocupando cargos com poder de decisão.

Assassino, sim. Racista, não!

A este panorama preocupante, se soma a cobertura de assassinatos de pessoas negras em que o viés do racismo como motivação para os crimes é relativizado. Um dos exemplos mais evidentes foi no brutal homicídio do refugiado congolês Moïse Kabamgabe. Enquanto a imprensa internacional tratou o crime abertamente como racismo e xenofobia, a grande mídia brasileira foi menos enfática na abordagem. Por isso, os assassinos, homens brancos, são respeitosamente mencionados como suspeitos de um crime ainda sem razões evidentes. Um destes homens, inclusive, divulgou um vídeo negando que a motivação do crime tenha sido racista e não ter existido a intenção de matar. (Nestas condições, tudo bem espancar alguém até a morte, será?)

Aparentemente, pessoas brancas podem até admitir que são assassinas, mas não querem ser chamadas de racistas em hipótese nenhuma. 

A outra garota negra

Por uma triste coincidência, o primeiro romance ficcional que li em 2022 tem como enredo a falta de representatividade negra em funções de comando – no caso do livro, no mercado editorial. Também trata sobre a dificuldade de pessoas brancas reconhecerem preconceitos raciais. 

Na obra A outra garota negra, de Zakiya Dalila, a protagonista, Nella, ocupa há anos o cargo de assistente em uma grande editora de Nova York. Dentre seus sonhos, está o de ser a responsável pela publicação de livros com temática antirracista e ter outra colega negra no trabalho. Quando “a outra garota” do título do livro finalmente é contratada, Nella se sente confortável para confidenciar a dificuldade em apontar racismo no texto de um autor famoso, cliente da editora.

“— Mas isso é o que me chateia, porque não posso criticá-lo por isso. 

— Por que não? 

— Porque ele vai pensar que o estou chamando de racista. Você sabe como os brancos ficam quando acham que estão sendo chamados de racistas.” 

Mercado editorial brasileiro é branco 

A realidade do mercado editorial norte-americano, criticada na obra com conhecimento de causa, já que a autora trabalhou durante anos nesta área, não é diferente da conjuntura brasileira. Aqui, os proprietários das grandes editoras são, em sua maioria, homens, brancos e com idade avançada. Isso traz como uma das consequências o baixo percentual de autores negros com livros publicados. Em 2014, por exemplo, apenas 2,5% dos escritores com obras lançadas no Brasil não eram brancos. Dentre os personagens retratados em romances brasileiros no ano mencionado, apenas 6.9% eram negros e 4,5% protagonistas dos enredos ficcionais. Confira mais dados aqui

Ser antirracista é uma necessidade

Sendo assim, percebemos o quanto ainda precisamos avançar nas práticas antirracistas, tanto no mercado editorial quanto jornalístico. Como mulher branca que atua nas duas áreas, procuro sempre enfatizar, para outros brancos, os privilégios invisíveis que temos, em uma sociedade que insiste em um discurso vazio e falso de democracia racial. 

Procurar ser antirracista é um exercício diário de humildade, vergonha e solidariedade. Além disso, destaco a importância de não nos enxergarmos como brancos salvadores, mas conscientes de que nosso apoio à essa luta é fundamental. Afinal, silenciar diante do racismo é ser conivente com agressões e humilhações inaceitáveis.

 Imagem: Facebook/Reprodução

 

 

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Misoginia na política, um mal a ser combatido

Flávia Cunha
21 de janeiro de 2022

Misoginia em Mulheres e poder – um manifesto

“Quais são os fundamentos culturais da misoginia na política ou no ambiente de trabalho e quais são suas formas[…]? Como e por que as definições convencionais de “poder” (ou de “sabedoria” , “perícia” e “autoridade”) que trazemos em mente excluem as mulheres? 

O livro de autoria da professora britânica Mary Beard é uma boa fonte de consulta para entender as origens históricas da misoginia. De acordo com a especialista, o ódio às mulheres continua infelizmente tendo espaço na atualidade, principalmente na política.

Realidade brasileira

Contudo, a misoginia, assim como o machismo, podem ser sutis. Como o apagamento ou a falta de protagonismo recorrente das mulheres em determinados setores da vida pública. Se pensarmos no cenário político do Brasil 2022, já sabemos alguns fatos sobre o próximo presidente da República. Afora alguma mudança muito grande no cenário atual, assumirá o cargo um homem, branco, com 50 anos de idade ou mais. Mesmo com as mulheres sendo a maioria do eleitorado em nosso país, a eleição de Dilma Rousseff à presidência, nos já distantes anos de 2010 e 2014, parece ter sido um fato isolado na política nacional.

Desigualdade recorrente

E não é apenas no cargo máximo da República brasileira que a presença feminina é desigual. No Congresso Nacional, apenas 15% das cadeiras são ocupadas por parlamentares do sexo feminino. As desculpas dos conservadores para essa desproporção gigantesca vão desde falta de interesse das mulheres por política até o mais completo silêncio sobre o tema. No entanto, para quem estiver disposto a se dar conta, os motivos são o machismo estrutural e a misoginia, que conferem uma camada de violência e agressão simbólica para as mulheres que conseguem ser eleitas.

Para piorar, o machismo faria com que a maior parte do eleitorado feminino considerasse candidatas menos preparadas para ocupar determinados cargos eletivos. Afinal, não teve um político brasileiro que há poucos anos falou que mulher era ótima apenas para saber o preço dos produtos nos supermercados? Dentro desta visão deturpada e conservadora, elementos tão domésticos da sociedade não estariam preparados para serem deputadas, senadoras e presidentes.

Golpe misógino

E por falar em presidente ou presidenta, chegamos a um dos pontos mais difíceis de abordar até dentro da esquerda brasileira. Apesar do consenso para esse grupo de que houve um golpe parlamentar, o caráter misógino do impeachment de Dilma Rousseff é muitas vezes minimizado até por integrantes do PT.

Na visão que compartilho com militantes feministas, o golpe foi orquestrado por homens que odiavam Dilma não só por seu partido político. Mas, principalmente, pela ex-presidente ser uma mulher sem os atributos de doçura, submissão e beleza padrão valorizados por machistas.

Machismo e misoginia à esquerda

Para além dos antipetistas, a misoginia na política também contamina o espectro de esquerda. Prova disso foi o comentário de Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT, sobre a ausência de Dilma em um jantar. De acordo com o dirigente, Dilma não teria sido convidada ao evento, que contou com a presença do ex-presidente Lula e de Geraldo Alckmin, ex-tucano ventilado como vice do petista, por ser irrelevante politicamente. 

As declarações de Quaquá, por sua vez, geraram revolta dentro de integrantes da própria legenda, que consideraram a fala misógina e machista. Confira aqui a nota da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

Depois deste incidente, a reação de Quaquá, como machista “raiz” que demonstra ser, foi se dizer atacado e denunciar uma suposta tentativa de calarem sua voz de homem branco não consciente de seus privilégios. 

Para a evolução dos “esquerdomachos”

De uma maneira geral, ressalto que seria ótimo se a misoginia e o machismo fossem comportamentos recorrentes só na extrema direita. Pois daí, nós, mulheres, sofreríamos bem menos. Bastaria saber em quem os homens da nossa convivência votaram para estarmos “a salvo” da possibilidade de desdém, achincalhe ou desprezo sobre quem somos enquanto sujeitos políticos.

Coincidência ou não, Lula dias depois teve um encontro com Dilma e fez questão de postar a foto em suas redes sociais. Lula, então, não é machista? Sinceramente, considero muito improvável que um homem hetero de 76 anos não tenha, dentro de si, resquícios de machismo estrutural.  Mas, ao menos, o ex-presidente não vai a público desmerecer uma mulher, como fez o companheiro de partido. Nesse sentido, ele está anos-luz à frente de Jair Bolsonaro, que é machista (e racista e homofóbico…) 

Porém, se os homens de esquerda quiserem evoluir de verdade, precisam parar de se glorificar na comparação com bolsonaristas. Pois precisam mesmo é começarem a enxergar as próprias falhas e evoluírem, de verdade. 

Outros livros que inspiraram esse texto

Impeachment e misoginia nas redes sociais, de Rafael Maracajá Antonino – A obra investiga 

as conotações sexistas dos ataques sofridos na Internet pela então presidente Dilma Rousseff depois dos protestos de 2013. Leitura essencial para quem ainda duvida do ódio exacerbado à Dilma apenas pelo fato de ser uma mulher no comando de um país.   

O conto da aia, de Margaret Atwood – Muito já se falou sobre esse best-seller escrito nos anos 1980 e que voltou a ganhar atenção do público com uma bem-sucedida adaptação para série. Para quem teme ditaduras, é uma leitura assustadora, pois esta distopia mostra as consequências brutais para as mulheres da falta de democracia e do conservadorismo religioso. 

Imagem de capa: Arte/Canva

Imagem Dilma e Lula: Ricardo Stuckert/Instagram





 

 

 

Voos Literários

Exausta (mas com esperança em 2022)

Flávia Cunha
21 de dezembro de 2021

Exausta de Brasil. É assim que me encontro nesse finzinho de ano. Ando fugindo das notícias, o que não é algo muito digno de uma jornalista admitir publicamente. Mas sei que não estou sozinha nesta sensação.

Como não estar exausta? O ano de 2021 foi uma continuação bem difícil de 2020, com a tristeza crescente pelas vítimas da pandemia e a raiva incessante pela postura tenebrosa do ser (humano?) que ocupa a presidência da República. A última dele foi fazer uma dancinha em uma lancha, ao som de uma música com letra misógina. (Viram? Mesmo exausta, sigo tendo acesso a notícias infames).

Esperança

Porém, neste último texto do ano gostaria de deixar uma mensagem de esperança e não apenas de cansaço e reclamação. (Exausta mas com empatia pelos sentimentos alheios, compreendem?) Por isso, desejo que os bons ventos do Chile possam, de alguma forma, chegar ao Brasil. 

Sabemos que a realidade de cada país é diferente. Por outro lado, não podemos esquecer que o modelo econômico chileno é inspiração para Paulo Guedes. Ele mesmo, o ministro maléfico que deseja o fim da suposta mamata dos aposentados. Afinal, na visão dele, quem merece ficar bem são apenas os muito ricos e nunca os trabalhadores das camadas mais empobrecidas.

Brasileiros mais conscientes

E, sim, estou exausta também de Paulo Guedes mas em busca de esperança, lembram? Pois então, vou focar no desejo que os eleitores tenham mais consciência ao votar em 2022. Que entre as escolhas possíveis, os brasileiros resolvam abrir a “porta” de um futuro com menos pobreza e mais vacinas. Entendam que política não se faz apenas nas urnas. Pois precisamos estar nas ruas, expressando nossos desejos, assim como nossos irmãos chilenos bem fizeram em 2019. Porque lá, mesmo exaustos de tanto neoliberalismo e crueldade dos governantes, eles não se renderam. 

Feminismo e política

Aliás, inspirada pela vitória de Gabriel Boric, estou lendo Mulheres de minha alma, da chilena Isabel Allende, a escritora de língua espanhola mais lida no mundo. Na obra, a autora trata sobre sua visão pessoal do feminismo e faz necessárias observações a respeito da política recente em seu país:

“Até 2019, o Chile se considerava o oásis da América Latina, país próspero e estável num continente sacudido por vaivéns políticos e por violência. Em 18 de outubro daquele ano, o país e o mundo se surpreenderam quando a ira popular explodiu. Os números econômicos otimistas não mostravam a distribuição dos recursos nem o fato de que a desigualdade no Chile é uma das maiores do mundo.

O modelo econômico do neoliberalismo extremo, imposto pela ditadura do General Pinochet nos anos 1970 e 1980, privatizou quase tudo, inclusive os serviços básicos, como a água potável, e deu carta branca ao capital, enquanto os trabalhadores eram duramente reprimidos.

Isso produziu um boom econômico que durou algum tempo e possibilitou o enriquecimento desenfreado de uns poucos, enquanto o restante da população sobrevivia com dificuldade a crédito. É verdade que a pobreza diminuiu para menos de 10%, mas essa cifra não revela a extensa pobreza dissimulada da classe média baixa, da classe trabalhadora e dos aposentados, que recebem pensões miseráveis. O descontentamento acumulou-se durante mais de trinta anos.

Nos meses seguintes a outubro de 2019, milhões de pessoas saíram às ruas para protestar em todas as cidades importantes do país, no início de forma pacífica, mas logo começaram os atos de vandalismo. A polícia reagiu com uma brutalidade que não se via desde a época da ditadura. 

Ao movimento de protesto, que não tinha líderes visíveis nem estava ligado a partidos políticos, foram-se somando diversos setores da sociedade, com suas próprias reivindicações, desde os povos originários até estudantes, sindicatos, associações profissionais e, lógico, grupos feministas.”

 

Como podemos perceber, há semelhanças da descrição da conjuntura chilena feita por Isabel Allende com o atual estado de pobreza dissimulada da população brasileira. Por isso, mesmo exaustos, merecemos a esperança de que mudanças positivas também possam acontecer por aqui. Quem sabe? É melhor acreditar, apesar do ceticismo e cansaço.

Feliz 2022! Retorno em janeiro, com colunas mensais.

Imagem: Qimono – 502 images/Pixabay

 

 

 

Voos Literários

Os cafonas seguem passando vergonha no Brasil

Flávia Cunha
23 de novembro de 2021

Desculpem, leitores de bom gosto, mas os cafonas permanecem em alta em 2021. É touro de ouro, campanha contra Fernanda Montenegro e Gilberto Gil na Academia Brasileira de Letras, defesa da “consciência humana” para negar o racismo, entre outras muitas bizarrices. Enquanto isso, os preços dos alimentos não param de subir, assim como o valor dos combustíveis. Mas sobre isso os cafonas preferem não protestar. Até porque, para este grupo, qualquer governo é melhor que a “ditadura comunista do petê”.  

Elite pobre de espírito

Não que todo o cafona ainda seja a favor de Jair Bolsonaro e sua forma tosca de governar. Afinal, depois de tantos vexames internacionais, não pega bem para quem é da elite seguir defendendo o bolsonarismo. Então, muitos dividem-se entre apostar em Sérgio Moro ou em outras alternativas da terceira via. Tudo para evitar que Lula retorne ao poder mesmo que o ex-presidente tenha sido elogiado por lideranças em tour pela Europa. O que interessa mesmo é a desigualdade brasileira aumentar cada vez mais. Com isso, os cafonas tão pobres que só tem dinheiro se sentirão superiores a quem passam fome. É tudo uma questão de mérito, dizem. Os cafonas que foram contrários a uma atriz e a um músico negro na ABL ficaram calados quando um neurocirurgião branco e de sobrenome famoso virou imortal na Academia. Para eles, o Brasil perfeito não precisa ter diversidade alguma. 

E nós?

Enquanto isso, seguimos tentando resistir de alguma forma. Apoiando projetos sociais e não perdendo a indignação com os absurdos propagados pelos cafonas. Em 2020, escrevi um texto alertando que os canalhas não suportam poesia. E foi com algum alento que recebi a notícia de 5 escritoras serem as finalistas na categoria poesia do prestigiado prêmio Jabuti. Pesquisem as obras de Mar Becker, Maria Lúcia Alvim, Jussara Salazar, Micheliny Verunschk e Prisca Agustoni Pereira. Pois a indicação destas poetas contribui para romper com o machismo também presente no meio editorial brasileiro. 

Esse texto é uma singela homenagem à Fernanda Young, escritora falecida em 2019, que segue fazendo muita falta nos dias atuais.

Imagem: Paulo Pinto / Fotos Públicas