Voos Literários

Maria Valéria, mãe fora do padrão

Flávia Cunha
8 de maio de 2020

Com a chegada do Dia das Mães, a idealização da figura materna proposta nos noticiários e na publicidade pode magoar quem não tem a mãe presente em sua vida por qualquer motivo. Essa ausência em geral é suprida por figuras femininas substitutas, que muitas vezes exercem a maternagem de forma afetuosa e dedicada. Pode ser uma avó, uma tia, uma tia-avó, uma amiga da família. O parentesco não importa. O que interessa mesmo é a importância que essa mulher exerce na vida dos órfãos (de amor ou de fato). 

MÃE É QUEM CRIA

Ao buscar uma personagem literária que representasse essas mães fora do padrão, acabei lembrando de um dos clássicos da literatura brasileira, O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Uma das mulheres mais representativas no enredo e a única que aparece nos sete volumes da série literária é Maria Valéria, uma solteirona aparentemente nada afetuosa, mas que é a grande referência materna dos sobrinhos e sobrinhos-netos. Sua irmã, Alice, morre na primeira parte da trilogia, O Continente. Os dois sobrinhos eram crianças e a Dinda, como é chamada, acolhe Rodrigo e Toríbio.

O AMOR NAS ENTRELINHAS

No trecho a seguir do segundo livro, O Retrato, Rodrigo, já adulto, retorna ao sobrado e se emociona ao rever Maria Valéria, que disfarça seu afeto pelo sobrinho:

“Ergueu os olhos e viu lá em cima no vestíbulo, ao pé do último degrau, o vulto da tia. Precipitou-se escada acima e caiu nos braços de Maria Valéria, beijando-lhe as faces, a testa, as mãos, enquanto ela lhe retribuía esses carinhos apenas com seus beijos secos e rápidos.

— Então não está contente com a minha chegada, Dinda? — perguntou ele, quando sentiu que podia falar sem o perigo de romper o choro.

— Quem foi que disse que não estou? — Com as mãos ossudas tomou-lhe do queixo, olhou-o nos olhos demoradamente e perguntou: — Que é isso na vista?

— Decerto foi a poeira da estrada…”

Quando chegamos em O Arquipélago, percebemos a importância estrutural da personagem dentro da narrativa, ao ser ela a responsável por fornecer material para o romance que o sobrinho-neto Floriano escreverá sobre os 200 anos de história do Rio Grande do Sul. A Dinda naquele momento é vista como um farol:

Quando a velha Maria Valéria anda pela casa nas suas rondas noturnas, com uma vela acesa na mão, vejo nela um farol. Estou certo de que a luz dessa vela poderá me alumiar alguns dos caminhos que ficaram pra trás no tempo. “

LINHAGEM DA PERSONAGEM

Dentro da genealogia da trilogia, Maria Valéria é sobrinha-neta de Bibiana e torna-se a última matriarca da família Terra Cambará. Apesar disso, seu nome não é tão conhecido do grande público como sua tia-avó ou Ana Terra, a primeira mãe do enredo.

VOOS LITERÁRIOS ENTREVISTA

Pensando nas razões que levaram à invisibilidade dessa personagem que é uma mãe fora do padrão, conversamos com a escritora e pesquisadora Lélia Almeida, que em 1992 elaborou uma dissertação de mestrado sobre Maria Valéria para a pós-graduação da Letras da UFRGS.

 VL:  Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa a respeito da personagem Maria Valéria?

LÉLIA: Foi durante uma disciplina sobre as personagens femininas de Machado de Assis, ministrada pelo professor Flávio Loureiro Chaves, um dos especialistas na obra de Erico Verissimo. Ele tornou-se o orientador do meu trabalho, no qual observei a importância de Maria Valéria, que fugia da representação tradicional das personagens femininas: as mães, que são boas, e as putas, que são más. A solteirona criada por Erico Verissimo está mais ligada às Deusas Virgens, que são figuras mitológicas que não se submetem ao poder do patriarcado e não se casam. Na minha pesquisa, associo Maria Valéria ao arquétipo de Héstia, que cuida do fogo da casa. Lembrando que na época não existiam pesquisas publicadas sobre as personagens femininas de O Tempo e o Vento e muito menos estudos de gênero. Mesmo sendo uma personagem escrita por um homem e tendo o hábito de mimar muito os personagens masculinos, considero que Maria Valéria demonstra um grande senso de realidade sobre as dificuldades femininas enfrentadas na época em que se passa a história.

VL: A personagem Maria Valéria, de O Tempo e o Vento, pode ser classificada como uma mãe fora das padrões, apesar de não ser chamada de mãe pelos sobrinhos e sobrinhos-netos?

LÉLIA: A personagem, é de certa forma, uma espécie de mãe de todos na história, mesmo não tendo características estereotipadas ligadas ao feminino, como a docilidade e o afeto. Maria Valéria tem atributos mais associados ao masculino: austeridade, autoridade, ausência de vaidade ao vestir-se, etc. Admiro o humor sarcástico da personagem e seu hábito de citar ditos populares.

VL: Qual a importância da personagem Maria Valéria dentro da narrativa da trilogia?

LÉLIA: Além de aparecer em todos os volumes da trilogia, considero a personagem importante por romper a forma tradicional das mulheres se comportarem dentro do enredo de O Tempo e o Vento. Mesmo nos dias atuais, a feminilidade está associada à maternidade e Maria Valéria demonstra ter valor mesmo não sendo mãe.  

(A entrevista com a escritora Lélia Almeida continua na próxima coluna, abordando feminismo e a importância da leitura de obras escritas por mulheres)

 A ideia desse texto surgiu para homenagear minha tia-avó Marina, uma espécie de mãe fora dos padrões, que encheu de afeto e doçura minha infância, adolescência e início da vida adulta. Ela partiu há quase duas décadas, com 90 anos dedicados a dar amor a muitos sobrinhos e sobrinhos-netos.

Imagem: Abertura da série O Tempo e o Vento/Reprodução Internet

Voos Literários

Os canalhas não suportam poesia (e solidariedade)

Flávia Cunha
1 de maio de 2020

Os canalhas no poder não suportam poesia, arte, solidariedade e empatia. Os canalhas no poder não suportam senso crítico, estado de bem-estar social e apoio governamental para minimizar os danos da pandemia no combate à miséria e ao desemprego.

Os canalhas no poder não suportam comércio fechado e trabalhadores em segurança em casa. Os canalhas no poder não respeitam as vítimas de um vírus mortal. Não suportam humanidade.

Os canalhas no poder são misóginos, machistas e precisaram ser pressionados no Congresso para dar uma renda emergencial diferenciada às milhares de mães solo que precisam garantir o sustento de seus filhos. Os canalhas no poder não se importam com as aglomerações e filas nas agências bancárias de trabalhadores informais desesperados. Os canalhas no poder enxergam apenas como um gasto esse auxílio emergencial e não como um direito, por estarmos vivendo um grave problema sanitário. Os canalhas no poder só se importam como eles mesmos. 

E agora, o que faremos?

Poesia. No sentido literal e artístico.

Ou poesia metafórica, com ações solidárias e manifestações contra o governo. Que o feriado do Dia do Trabalhador sirva como inspiração para pensarmos estratégias para essa luta.  Porque se governo e grandes empresários priorizam somente a economia, cabe, a nós, a resistência. 

Quem é o autor dos cartuns

São de Rafael Corrêa as imagens usadas nesse texto.  O cartunista, ilustrador e designer gráfico  já ganhou mais de 50 prêmios nacionais e internacionais. Desde abril de 2018, o cartum sobre os canalhas que não suportam poesia circula pelas redes sociais, muitas vezes sem crédito.  Em entrevista à coluna Voos Literários, o cartunista comentou que chegou a receber ameaças na época das eleições, por ter feito campanha contra o então candidato Jair Bolsonaro. Mas isso não fez ele desanimar. Continua firme e forte com seu trabalho durante a pandemia. “Está sendo um desafio. Me sinto na obrigação de fazer um retrato ilustrado deste período histórico. A função do cartunista não é só a de fazer rir, mas também de registrar seu tempo, como um cronista mesmo.” 

 

Sigam o trabalho do cartunista no Facebook e Instagram

Imagens: Reprodução/Facebook

 

 

Voos Literários

A atualidade da poesia política de Hilda Hilst

Flávia Cunha
24 de abril de 2020

Uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos completaria 90 anos nessa semana, se entre nós estivesse. Hilda Hilst partiu desse plano em 2004 mas sua obra permanece com frescor nos dias atuais, cinzentos por tantos motivos, da pandemia do coronavírus aos desmandos de um governo insano e incompetente. O legado de Hilda ficou marcado por ela tratar de temas eróticos, sendo criticada pelos mais conservadores por atrever-se a escrever textos pornográficos, a partir da década de 1990.

SEM MEDO

O preconceito pela temática sexual em suas obras deriva, certamente, do fato de ser uma mulher fazendo isso. Outros grandes autores usaram de recursos como o erotismo e palavrões sem serem tão cerceados em sua escrita. (Entre eles, Rubem Fonseca, falecido recentemente, e que merecerá em breve uma coluna para reverenciar sua memória e legado.)

Voltando a Hilda, a escritora era uma mulher que parecia não se acovardar para nada. Em 1974, em plena época da ditadura militar brasileira, a poeta dedica um capítulo à resistência e engajamento político, em um livro que aparentemente seria para falar apenas de amor e erotismo. 

POESIA POLÍTICA

A obra a que me refiro é Júbilo, memória, noviciado da paixão, relançado pela Companhia das Letras, e que tive o prazer de revisitar durante essa quarentena, depois de ganhá-lo de presente de aniversário, em 2018. O capítulo em questão é “Poemas aos homens de nossos tempos”, no qual Hilda se dirige aos leitores e também aos homens políticos, que naquele momento – assim como agora – eram militares pouco preocupados com o bem-estar dos brasileiros.

III

Sobre o vosso jazigo

– Homem político –

Nem compaixão, nem flores.

Apenas o escuro grito

Dos homens.

Sobre os vossos filhos

– Homem político –

A desventura

Do vosso nome.

E enquanto estiverdes

À frente da Pátria

Sobre nós, a mordaça.

E sobre as vossas vidas

– Homem político –

Inexoravelmente, nossa morte.

A ARTE SALVA

Mas Hilda também aponta que o caminho para a nossa salvação – ao menos metafórica – é a arte: 

VI

Tudo vive em mim. Tudo se entranha

Na minha tumultuada vida. E por isso

Não te enganas, homem, meu irmão,

Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.

Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam

Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,

O olhar aguado, todos eles em mim,

Porque o poeta é irmão do escondido das gentes

Descobre além da aparência, é antes de tudo

livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala

Fala do seu quarto, não fala do palanque,

Não está no comício, não deseja riqueza

Não barganha, sabe que o ouro é sangue

Tem os olhos no espírito do homem

No possível infinito. Sabe de cada um

A própria fome. E porque é assim, eu te peço:

Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta

O homem está vivo.

 

VAI PASSAR

Nesse momento de pandemia, é difícil para nós, sonhadores e idealistas, termos um governante com tão pouco tato e sensibilidade para lidar com o luto de inúmeras famílias. Para além da inabilidade política de coordenar um grave problema de saúde pública, Jair Bolsonaro não tem uma postura digna do cargo que ocupa.

Entre a vida e a morte, entre a miséria e o arriscar a existência para sobreviver, seguem os brasileiros, aguardando por dias melhores. Precisamos de resiliência e equilíbrio emocional para aguentar tudo que ainda virá, da proliferação de uma doença ainda sem vacina até os desmandos de um capitão grosseiro e despreparado.

#vaipassar #forabolsonaro

Imagem: Fanpage Instituto Hilda Hilst/Reprodução

Voos Literários

#coronavírus – Vamos respeitar os idosos?

Flávia Cunha
17 de abril de 2020

“Se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam. […] A imagem sublimada deles mesmos que lhes é proposta é a do sábio aureolado de cabelos brancos, rico de experiência e venerável. Se dela se afastam, caem no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam.”

A Velhice, de Simone de Beauvoir

É raro haver tanto destaque nos noticiários a respeito dos idosos como está acontecendo nesse momento de pandemia. O motivo não é positivo. Uma das razões – a mais grave – é o fato de pessoas acima de 60 anos estarem dentro do grupo considerado de risco entre os pacientes do coronavírus. Mas o fato de supostamente o vírus ser mortal apenas para idosos e pacientes com doenças preexistentes fez com que o presidente Jair Bolsonaro e parte dos grandes empresários minimizassem a importância do isolamento social horizontal e defendessem o chamado isolamento vertical (que colocaria novamente os mais velhos na  berlinda, sendo eles que deveriam ser apartados do convívio com os jovens, que teriam menos risco ao se infectar). Os fatos vem contrariando a hipótese defendida por bolsonaristas. Informações divulgadas pela imprensa apontam que a proporção de mortos com menos de 60 anos era de 11% em 27 março e subiu para 25% nos últimos dias. 

IDOSOS ALVO DE MEMES

Além disso, logo que começou a recomendação de isolamento social, supostamente os idosos seriam os mais resistentes ao fato de não poderem sair de casa. O estereótipo do velho infantilizado e sem capacidade intelectual para compreender a gravidade da situação generalizou-se como regra, inclusive em memes na Internet. 

Mas será que somente idosos estão entre os negacionistas? As imagens dos noticiários e redes sociais mostrando pessoas nas ruas revelam diferentes faixas etárias, incluindo jovens famílias com filhos pequenos. Parece que o grave problema de saúde pública que estamos vivendo gerou, mais uma vez, o preconceito com os mais velhos.

TODAS AS VIDAS IMPORTAM

Simone de Beauvoir já alertava para o “silêncio” relacionado aos idosos no livro A Velhice publicado em 1970, como se eles estivessem fora da humanidade. Cinquenta anos depois, no Brasil, podemos observar a relativização da importância das mortes dos mais velhos devido ao coronavírus, como se algumas vidas valessem menos do que outras. Simone observa uma tendência a enxergar os idosos como um refugo, principalmente quando não são mais economicamente ativos:

“Os velhos que não constituem nenhuma potência econômica não dispõem de recursos para fazer valer seus direitos: os empresários têm todo interesse em destruir a solidariedade entre trabalhadores e inativos de modo que estes não sejam defendidos por ninguém.”

A reforma da Previdência e a tendência a considerarmos os aposentados um fardo a ser carregado pelos trabalhadores é outra falácia a ser combatida no Brasil do século 21. Simone de Beauvoir já alertava para esse fato lá na década de 1970. Agora, em um 2020 transformado por uma pandemia, é necessário revisarmos os valores vigentes. E o amor, a compaixão e o respeito aos mais velhos precisam ser colocados em prática, em uma visão mais humanista que precisamos desenvolver em um momento tão difícil.

Imagem: Free-Photos/Pixabay

 

Voos Literários

#coronavírus – Em defesa do SUS e de seus profissionais

Flávia Cunha
10 de abril de 2020

A epidemia do coronavírus no Brasil expõe diversos problemas existentes no país há décadas. Um deles é a dificuldade encontrada pelos profissionais que atuam em hospitais ligados ao Sistema Único de Saúde. Em um momento tão grave da saúde pública, já há inúmeros relatos de falta de itens essenciais para evitar a contaminação desses profissionais, como máscaras cirúrgicas, luvas e aventais.   

CRÍTICAS À SAÚDE PÚBLICA

Até bem pouco tempo, antes da pandemia do Covid-19,  o SUS recebia constantes críticas por seu mau funcionamento e demora no atendimento. Os motivos seriam uso inadequado de recursos públicos e corrupção. Seus detratores, pessoas com recursos financeiros para serem atendidas na rede privada de saúde, defendem o desmonte do sistema e que a saúde pública seja destinada apenas para os “mais pobres”. De fato, a redução do repasse de recursos para o SUS já vem ocorrendo há alguns anos, em especial durante o governo Temer e durante a gestão de Jair Bolsonaro. O resultado agora é que muito antes do pico de contágio do coronavírus, a realidade já é preocupante em muitas unidades públicas de saúde. O argumento de que o Sistema Único de Saúde não funciona me levou a pesquisar sobre como era a saúde pública no Brasil antes de sua criação. 

O QUE É O SUS

Durante essas pesquisas, encontrei um livro confiável (e gratuito) a respeito do assunto. A versão digital da obra O que é o SUS, escrita por Jairnilson Silva Paim, foi lançada em 2015 pela Editora Fiocruz, da Fundação Oswaldo Cruz. O autor da obra é médico e professor universitário, sendo considerado uma das maiores autoridades brasileiras a respeito do assunto. Já a Fundação Oswaldo Cruz é a responsável por coordenar no Brasil uma pesquisa mundial a respeito do tratamento para o Covid-19, entre outros inegáveis méritos.

SUS: ACESSO UNIVERSAL À SAÚDE

O Sistema Único Saúde nasceu em 1988, na esteira da Constituição de 1988, que pregava em seu artigo de número 196:  

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Portanto, o acesso universal, uma das características atualmente criticadas no SUS é um princípio constitucional. 

LUTAS PARA A CRIAÇÃO DO SUS

O Sistema Único de Saúde nasceu após muitas lutas que começaram ainda na época da ditadura militar no Brasil, época em que iniciou-se uma crescente redução no sistema público de saúde. Engana-se quem pensa que a corrupção e o desvio de recursos é uma “invenção” recente ou reflexo da democracia. De acordo com Jairnilson Silva Paim,  no livro O que é O SUS, a censura que houve a uma análise mais aprofundada da saúde pública no Brasil na década de 1970: 

“Um estudo censurado pelo governo militar durante a V Conferência Nacional de Saúde, em 1975, […] descrevia o sistema de saúde brasileiro daquela época com seis características insuficiente, mal distribuído, descoordenado, inadequado, ineficiente, ineficaz. E certamente encontrou, dificuldade de explicitar mais quatro adjetivos que caracterizariam aquele não-sistema: autoritário, centralizado, corrupto e injusto.”

Na obra, o autor reconhece que existem falhas no SUS, porém é importante ressaltar que é um dos maiores sistemas públicos de saúde no mundo em atuação e é impensável no atual momento imaginarmos o Brasil apenas com serviços privados. Exemplos disso são as pesquisas, essenciais na atual crise, capitaneadas por fundações e universidades públicas, além da inegável vantagem no acesso universal à saúde em meio a uma pandemia.   

Por isso, é necessário reivindicar mais recursos para o combate ao coronavírus e exigir a anulação imediata da Emenda Constitucional 95, que tirou recursos do SUS.

Saúde é um direito!

Saiba mais – Alguns dados históricos sobre a saúde pública no Brasil (Fonte: Livro O que é o SUS

Brasil Colônia 

  • Os doentes sem recursos financeiros eram amparados pela caridade cristã,. já que os primeiros hospitais brasileiros foram santas casas, antes mesmo de haver legislação existentes no país.
  • A Santa Casa de Santos foi criada em 1543, a primeira constituição imperial data de 1824. 

Império

  • Em 1828, houve o entendimento que a saúde pública seria uma responsabilidade das municipalidades.
  • Na época imperial, foram criados órgãos públicos como a Inspetoria-Geral de Higiene e o Conselho Superior de Saúde Pública. 

República Velha (1889 – 1930)

  • Saúde pública passo a ser uma responsabilidade das unidades da federação. 
  • Prevalência de uma visão liberal, de que o Estado deveria intervir minimamente, apenas quando as pessoas ou a iniciativa privada não pudesse atuar. 
  • Havia desconfiança na descentralização do sistema de saúde e desarticulação na atuação.
  • Epidemias de febre amarela, peste e varíola obrigaram o governo a impor medidas de saneamento e a vacinação obrigatória. Ainda não havia um Ministério da Saúde.
  • Nascimento do sistema público de saúde ocorreu, a partir de três vias: saúde pública, medicina previdenciária e medicina do trabalho. 

Anos 1930 até o golpe militar

  • No fim da década de 1940, 80% dos recursos federais eram gastos com saúde pública e 20% com assistência médica individual.
  • Permanência de campanhas contra doenças como malária, tuberculose e varíola.
  • Ministério da Saúde é criado em 1953. 

Ditadura Militar e Reabertura Política

  • Governos militares reduziram o investimento em saúde pública.
  • Criada a modalidade de medicina de grupo.
  • Empresários que optassem por essa modalidade não precisavam pagar parte das contribuições previdenciárias de seus funcionários.
  • Motivo: evitavam que os trabalhadores procurassem assistência médica na previdência social.
  • Nessa época, somente somente os  brasileiros que estivessem no mercado formal de trabalho  tinha direito à assistência médica da previdência social.
  • Quem não tivesse carteira assinada, podia pagar pelo atendimento médico, recorrer a instituições filantrópicos ou postos de saúde e hospitais dos estados e municípios.
  • 1977 – Criação do Instituto Nacional de de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) 
  • 1986 – Realização da VIII Conferência Nacional de saúde, com quase cinco mil participantes. 
  • 1988 – Promulgação da Constituição Cidadã, que tem o capítulo Saúde inspirado no relatório final da conferência nacional realizada dois anos antes. Criação do SUS.

 

 

Voos Literários

#coronavírus – Como explicar o momento atual para as crianças

Flávia Cunha
3 de abril de 2020

Dois de abril é o Dia Internacional do Livro Infantil e, por isso, a coluna Voos Literários volta a abordar a literatura feita para crianças, que pode e deve ser incentivada durante a quarentena em razão do coronavírus. A mudança de rotina promovida pelo isolamento social trouxe impactos para todos, inclundo os pequenos. Ansiedade e nervosismo infantis são relatos comuns devido à pandemia. A forma com que os adultos explicam a atual situação pode auxiliar a tornar esse momento de recolhimento menos estressante para a criançada. Selecionei três livros infantis para tratar não só sobre o coronavírus mas sobre outros assuntos que podem ser colocados no debate familiar: incentivar a solidariedade mostrando as diferenças sociais no Brasil e explicar os aspectos políticos por trás de tantos panelaços. 

CORONAVÍRUS

A psicóloga argentina Guadalupe Del Canto lançou um livro infantil ilustrado gratuito com o objetivo de ajudar os pais a explicarem a pandemia para as crianças. O Escudo protetor contra o rei vírus tem versão original em espanhol. A obra já foi traduzida para português, inglês, alemão e sueco. Aqui tem a obra na língua portuguesa e também um vídeo com a narração do livro feita por uma contadora de histórias. O enredo explica a doença e como se prevenir dela, utilizando uma linguagem acessível e adequada para as crianças, ressaltando os cuidados preventivos para evitar a disseminação do Covid-19.

DIFERENÇAS SOCIAIS

A mobilização para ajudar pessoas com dificuldades financeiras, periféricas ou em situação de rua durante a quarentena pode chamar a atenção dos pequenos e trazer questionamentos que muitas vezes são difíceis de serem esclarecidos. O livro O que são classes sociais? aborda temas como desigualdade, riqueza, pobreza e injustiça social. A obra da editora Boitempo faz parte de uma coleção chamada Livros para o Amanhã, que também conta com os títulos A democracia pode ser assim, A ditadura é assim e As mulheres e os homens.

POLÍTICA

A pandemia do coronavírus chegou ao Brasil em um momento de polarização política e críticas ao presidente Jair Bolsonaro. Os panelaços na quarentena têm contado com a participação de crianças. Há diversos vídeos postados nas redes sociais mostrando a empolgação infantil com a barulheira. Então, que tal ensinar os motivos que levam aos ruidosos protestos nas janelas e ainda aproveitar para debater a respeito do processo político na democracia, aproveitando que esse é um ano eleitoral? Para ajudar nessa conversa, o livro Eleição dos Bichos, da Companhia das Letrinhas, é muito útil, sem deixar de lado o aspecto lúdico de uma boa obra de literatura infantil. Na história, o reinado do Leão é questionado pelos demais animais, insatisfeitos pelo fato dele ter desviado a água do rio para fazer uma piscina particular. Assim, começa uma campanha eleitoral entre a bicharada, com direito a candidatos, propostas políticas, debate e votação. Um glossário no final do livro facilita as explicações para os pequenos. O PDF do livro é disponibilizado gratuitamente.

LEITURAS E BRINCADEIRAS

Além das sugestões apresentadas, sugiro aproveitar o tempo de confinamento para estreitar os laços em família. Além da leitura de livros que já tenham em casa, os adultos podem aproveitar para propor brincadeiras e jogos educativos. Ficar em casa no atual momento é um ato de cidadania e de amor ao próximo.

Se puder, fica em casa! 

Imagem: capa do livro O Escudo protetor contra o rei vírus/ Divulgação

 

Voos Literários

#coronavírus – Feminismo Para Quê? (ou a luta de classes em meio à pandemia)

Flávia Cunha
27 de março de 2020

No início de março, decidi abordar a importância do feminismo a partir de algumas leituras. O principal motivo era o fato deste ser o mês em que a luta das mulheres ganha mais visibilidade. Ao contrário de anos anteriores, esse 2020 caracteriza-se por uma pandemia de proporções assustadoras. Como não podia deixar de ser, o teor dos textos da série “Feminismo Para Quê”, que começaram leves, falando sobre divisão de tarefas domésticas, passaram pelo questionamento de quem mandou matar Marielle Franco, acabaram também tratando sobre o avanço do coronavírus no Brasil e seus desdobramentos sociopolíticos. No texto anterior, falei um pouco sobre a sororidade e desigualdade social em meio à quarentena imposta para evitar a disseminação do coronavírus no Brasil.

Enquanto escrevo o último post desta série sobre feminismo, ouço um buzinaço provocado por uma carreata que passa pelo meu bairro em Porto Alegre (RS), pedindo que empresas de serviços não-essenciais sejam reabertas para evitar prejuízos econômicos, ignorando orientações da Organização Mundial da Saúde. É nesse cenário vergonhoso onde o dinheiro vale mais do que vidas, que proponho pensarmos sobre a luta de classes e a sua relação com o feminismo.

Antes disso, considero importante pontuar que como as mulheres são diferentes entre si, existem muitos feminismos. Para fundamentar os aspectos teóricos desse texto, usei como  base o livro Feminismo e Consciência de Classe no Brasil, de Mirla Cisne. A autora comenta sobre três correntes do feminismo: feminismo radical, socialista e liberal:

“A oposição politicamente mais frontal, […] ‘recai sobre as feministas liberais, de um lado, e feministas radicais e socialistas, de outro’. O feminismo liberal consiste nos movimentos voltados à promoção dos valores individuais, buscam reduzir as desigualdades entre homens e mulheres por meio das políticas de ação positiva, e, por isso, podemos falar de um “feminismo reformista”. […] O feminismo socialista ou tendência da luta de classe, como se denomina na França, afirma que ‘a verdadeira liberação das mulheres só poderá advir de um contexto de transformação global’, enquanto as feministas radicais ‘sublinham que as lutas são conduzidas, antes de tudo, contra o sistema patriarcal e as formas diretas e indiretas do poder falocrático’.

Pois é a partir da visão do feminismo socialista que considero interessante pensarmos no que vivenciamos atualmente no Brasil. Enquanto parte dos empresários se organiza em ações solidárias, o governo federal, principalmente nas figuras do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes, alia-se ao empresariado que defende um discurso que minimiza a gravidade do Covid-19. De acordo com essa visão, “algumas” mortes são o preço a se pegar para manter a economia aquecida.

Para evitar uma recessão, a ideia é de que empresas voltem a operar normalmente, ignorando que lotar o transporte público para que os funcionários retomem seus trabalhos fará com que a proliferação do coronavírus possa atingir grandes proporções. Para não agravar a crise, os trabalhadores que hoje encontram-se em quarentena devem expor-se ao risco, sem ter certeza se estão ou não contaminados, já que os poucos testes gratuitos disponíveis no país atualmente são reservados para quem apresentar sintomas graves ou trabalhar em áreas como da saúde. Enquanto isso, os grandes empresários seguirão resguardados e, caso tenham dúvidas sobre estarem infectados, poderão tranquilamente ir em um hospital particular e pagar por todo o atendimento. Isso é a luta de classes, por mais que insistam em dizer que o termo está obsoleto ou é apenas uma invenção comunista. 

Nesse sentido, destaco um trecho do livro  Feminismo e Consciência de Classe no Brasil com o depoimento de uma integrante da Marcha Mundial das Mulheres que aponta as estreitas ligações entre o feminismo e o combate à pobreza e à desigualdade social:

“É importante lutar não só pela igualdade entre homens e mulheres, mas igualdade entre as pessoas e os povos […] há que ter igualdade entre homens e mulheres, mas há também que acabar com a pobreza, com a miséria… é muito imbricado essa coisa da luta de classe com o feminismo.”

Como sabemos, a pobreza e a miséria existem no Brasil muito antes do surgimento da pandemia. Mas o abismo existente entre os milionários e os favelados escancara-se ainda mais em meio a um gravíssimo problema de saúde pública. Caberia ao governo federal cuidar de todos os brasileiros, independente de gênero, renda, raça, orientação sexual ou idade. Na segunda-feira (30), o Senado votará um projeto com a concessão de uma renda básica de no mínimo R$ 600,00 para desempregados, trabalhadores informais e microempreendedores durante o período de enfrentamento do coronavírus no Brasil. Para mulheres chefes de família, o valor sobe para R$ 1.200. A iniciativa é louvável e espero que seja aprovada pelos senadores. Porém, pelo governo federal o benefício não ultrapassaria R$ 200,00, um valor muito abaixo do aceitável para uma família sustentar-se. 

Precisamos seguir na luta feminista, que inclui nesse momento o direito de ficar em quarentena, para não sermos contaminados por uma doença que já matou milhares de pessoas no mundo. Assim, também evitaremos  colapso nos atendimentos feitos através do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Se puder, fique em casa!

Imagem: Marcha Mundial das Mulheres/ Reprodução: Facebook (

Imagem meramente ilustrativa, agora o momento é de ficar em casa e não de ir para as ruas.)

Voos Literários

Feminismo para quê? (Ou a sororidade em tempos de coronavírus)

Flávia Cunha
20 de março de 2020

“A situação de penúria, principalmente das pessoas mais pobres, era gravíssima. Muitas famílias gripadas passaram a não ter nenhuma renda, visto que estavam impossibilitadas de trabalhar. Sem nenhuma lei que protegesse os operários, estes se viram à mercê da caridade pública para suprirem suas necessidades mais básicas.”

1918 – A Gripe Espanhola: Os Dias Malditos, João Paulo Martino

A situação enfrentada por operários no Brasil com a pandemia de gripe espanhola guarda paralelos com o momento atual. No início do século 20, não havia direitos para garantir o sustento dos trabalhadores. Em 2020, o cenário brasileiro já assustador na mescla de crise financeira, desemprego, informalidade e precarização das relações de trabalho está claramente agravado com a pandemia do coronavírus. 

Em um panorama tão desolador, as desigualdades sociais escancaram-se de forma explícita. Ainda vivemos em uma sociedade que as mulheres ganham menos que os homens, apesar das conquistas adquiridas nos últimos anos. Pesquisa recente revela que apesar de trabalharem mais horas e terem um grau de escolaridade maior, as trabalhadoras recebem menos. A média de rendimento feminino é de 76,5% do que um homem ganha. (Veja mais dados da pesquisa aqui.)

Para tentar reduzir essas desigualdades já existentes e agravadas pela recomendação de quarentena, foram criadas iniciativas para ajudar mulheres desempregadas, autônomas ou que atuam no mercado informal. Uma delas é o grupo público Boleto + 1, criado nessa semana no Facebook, e que já conta com cerca de 10 mil membros. A ideia é auxiliar mulheres que precisem de apoio para pagar contas, oferecer serviços ou dar sugestões de como conseguir manter os pequenos negócios em meio ao risco de contaminação pelo Covid-19. Homens podem participar do grupo, desde que a postura seja de ajuda às necessitadas, como uma forma de compensar a histórica desigualdade salarial entre os sexos.

VIOLÊNCIA

Não bastasse o efeito colateral do desamparo financeiro agravado pela pandemia, muitas ativistas feministas têm alertado para o aumento da violência doméstica devido à quarentena recomendada para evitar o contágio pela doença. Um levantamento divulgado há poucos dias pela ONU revela que, em dados globais, 28% dos entrevistados consideram justificado que maridos cometam agressões físicas contra as próprias esposas. Mas no Brasil, esse percentual chega a assustadores 77,95%. Fiquemos atentos: mulheres que vivem relacionamentos abusivos agora podem estar isoladas sofrendo agressões físicas ou psicológicas. Se ouvir, uma briga de vizinhos da sua casa, chame a polícia. A solidariedade também reside em não sermos indiferentes nesse momento.    

POPULAÇÃO DE RUA

O feminismo também busca a redução das desigualdades sociais. Se puder ajude as pessoas em situação de rua, com mantimentos, itens de higiene pessoal ou doando recursos para projetos já existentes que atendem essa população.

SAÚDE MENTAL

Por fim, apesar desse texto começar com a citação de um livro sobre a gripe espanhola, recomendo leituras mais leves. A gigante Amazon, por exemplo, disponibilizou centenas de e-books gratuitos. Cuidar do próprio equilíbrio emocional e da saúde mental nesse momento ansiogênico é fundamental. Se puderem façam o isolamento social, além de seguir as já conhecidas recomendações de lavar as mãos e usar álcool gel. Cuidem-se!

Imagem: Juraj Varga/Pixabay

 

Voos Literários

Feminismo para quê? (Quem mandou matar Marielle?)

Flávia Cunha
13 de março de 2020
“Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectativas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso institucional e hegemônico ainda profundamente conservador e reacionário. Registra-se que tal movimento ganha força no momento atual; basta olhar, por exemplo, para o resultado das eleições nos EUA e no plebiscito do Reino Unido, entre outros exemplos possíveis. Em escala internacional, guerras, interdições, perseguições, separações voltam a aparecer e se marcam como impedimentos e controles cada vez maiores do outro, da outra, do corpo que não compõe o grupo social de poder, que tende a ser “colocado para fora”, ou “impedidos”, pelas classes dominantes de conviver com suas “diferenças” na cidade. Com a falácia da narrativa de ‘crise econômica’, busca-se derrubar os direitos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, moradoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da formação social brasileira.”
Marielle Franco, no livro Tem Saída? Ensaios Críticos Sobre o Brasil, lançado em 2017, no capítulo A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada.

Muitas pessoas consideram que Marielle foi vítima de um feminicídio político. Foi brutalmente assassinada pela condição de mulher negra favelada, como se auto intitulava. Além disso, sua atuação na política primava pela luta a favor das mulheres, dos negros, da comunidade LGBT, além de atuar fortemente contra as milícias.

Quem mandou executar Marielle naquele 14 de março de 2018 provavelmente não imaginava que, dois anos depois, ela estaria mais presente do que nunca. As investigações de seu brutal assassinato e o do motorista Anderson Gomes seguem nos noticiários. Foi homenageada aqui e no Exterior. Um documentário foi lançado na plataforma de streaming da Globo, sendo que o primeiro episódio foi exibido em rede nacional. O nome de Marielle também segue ecoando em manifestações pelo Brasil.

Mas tentam macular sua memória. Inventaram mentiras a seu respeito, tentaram fazer ligações de sua trajetória ao tráfico de drogas e seguem relativizando com argumentos desconexos a importância dada à seu assassinato. A violência contra essa mulher segue, mesmo após sua morte. Nessa semana, denunciei um comentário de uma postagem no Facebook em que aparecia o rosto Marielle como se estivesse no cartaz de um filme, com a grotesca legenda: “Fácil de matar”. Tamanha falta de humanidade não deveria ser habitual no jogo político brasileiro. 

MULHERES NA POLÍTICA

Enquanto ocupou seu espaço como vereadora pelo PSOL do Rio de Janeiro, Marielle destoava da maioria de seus pares, homens brancos héteros. Isso porque a política brasileira é mais um terreno desigual para as mulheres no Brasil. De acordo com levantamento de 2016, 87% do total de vereadores no país eram homens. Um dos motivos apontados para essa desigualdade é a divisão sexual do trabalho, que faz com que mulheres tenham menos tempo para a militância política. 

Como ela escreveu no capítulo do livro Tem Saída?, os conservadores têm estereótipos sobre o que é ser mulher e expectativas sobre o comportamento feminino. Porém, a vereadora Marielle Franco não se comportava de forma submissa e dócil como esperavam seus pares masculinos. Não tolerava ser desrespeitada. 

Seguir lutando pelo feminismo, como ela, é uma forma de manter seu legado.

E enquanto o crime não for esclarecida, seguiremos perguntando:

Quem mandou matar Marielle?

Imagem: Renan Olez/ Câmara de Vereadores do Rio

Voos Literários

Feminismo para quê? (Ou quem lava louça em casa)

Flávia Cunha
6 de março de 2020

Esse é o primeiro de quatro textos com sugestões de leituras e provocações a respeito da necessidade do feminismo nos dias atuais. Na estreia dessa série, sera abordada a divisão de tarefas domésticas entre homens e mulheres.

Com o avanço do conservadorismo nos últimos anos no Brasil, cada vez mais se menospreza a importância do movimento feminista para que as mulheres tenham adquirido mais direitos enquanto cidadãs, além de terem obtido independência e autonomia nas relações sociais e também no ambiente doméstico. Ao ler cada vez mais comentários femininos dizendo que “não precisam de feminismo para nada”, “feministas são mal-amadas” ou “feminazis com sovacos peludos”, considero necessário fazer um rápido resgate do quanto comportamentos hoje vistos como naturais foram conquistas adquiridas por meio da luta de mulheres que foram, no seu tempo, chamadas de radicais ou loucas.

Direito ao voto. Usar calças compridas. Andar de bicicleta. Viajar desacompanhada.
Morar sozinha. Ter autonomia sobre o próprio corpo, mesmo dentro do casamento.
Direito ao divórcio. 

Todos esses exemplos já foram, em algum momento, considerados inadequados ou proibidos para mulheres ocidentais. Uma das precursoras da segunda onda do movimento feminista, Betty Friedan, lançou em 1963 o livro A Mística Feminina. A ativista entrevistou norte-americanas que seguiam os preceitos sociais vigentes nos anos 1940 e 1950, sendo em sua esmagadora maioria donas-de-casa, atormentadas por não terem uma vida própria e dedicarem-se apenas a suas famílias. 

No final da obra, Betty Friedan questiona:

“Quem sabe o que será a mulher quando finalmente livre para ser ela mesma? Quem sabe qual a contribuição da sua inteligência quando esta puder ser alimentada sem sacrifício do amor? Quem sabe das possibilidades do amor quando o homem e a mulher compartilharem não só dos filhos, do lar, de um jardim, da concretização de seu papel biológico, mas também das  responsabilidades e paixões do trabalho que constrói o futuro humano e traz o pleno conhecimento da personalidade? Mal foi iniciada a busca da mulher pela própria identidade. Mas está próximo o tempo em que as vozes da mística feminina não poderão abafar a voz íntima que a impele ao seu pleno desabrochar.”

O leitor mais cético pode argumentar que o livro de Betty Friedan está ultrapassado, que em pleno século 21 não precisamos de feminismo para nada, já que agora as mulheres estão em pé de igualdade com os homens. Mas será mesmo? Se pegarmos o singelo item divisão de tarefas domésticas, poucas mulheres estão livres da sobrecarga de tomar para si essa atividade (não remunerada e invisível) e precisar conciliar esse trabalho com seus empregos.

Em O homem infelizmente tem que acabar, da escritora gaúcha Clara Corleone, lançado no final de 2019, ela cita como as mulheres – mesmo as mais “fodonas”- seguem em geral sendo as cuidadoras das relações, da casa e da família:

“Não há fator biológico que justifique as mulheres estarem sempre pensando na administração da casa e os homens, não. É completamente cultural. A mulher é educada para cuidar – cuidar do lar, cuidar do corpo, cuidar do marido, cuidar dos filhos, cuidar dos relacionamentos. Por isso a mulher normalmente tem a saúde melhor que o homem, por exemplo, e por isso a mulher tende a ser mais delicada nas relações. […] Mulheres trabalham muito com esse conceito de cuidado, por mais agressivas/ da pá virada, esse negócio de cuidado gruda na gente. Normalmente somos nós que deixamos o emprego quando alguém da família fica doente. Isso diz muito sobre a forma como somos educadas.”

Por isso, espero que a mulherada ativista siga protestando por esse e outros motivos (fim violência contra a mulher e feminicídios, direito ao aborto, igualdade salarial…). Mudanças só acontecem quando pessoas saem de suas zonas de conforto e questionam os padrões vigentes. E isso não tem a ver com esquerda ou direita. Os famosos esquerdomachos estão aí para provar isso. Eles querem que os proletários de todo mundo se unam por melhores condições de trabalho, desde que, em casa, a esposa siga lavando a louça, cuidando de suas roupas e sendo a responsável pela faxina. Aos meus leitores de esquerda do sexo masculino, alerto que repensar pequenas atitudes é a verdadeira revolução.

Às mulheres cis e trans, desejo um 8 de março de muita luta e de conscientização da importância do feminismo na nossa sociedade.

“Ser feminista continua sendo defender a maioria silenciosa das mulheres, ajudá-las a libertarem-se e adquirir seus direitos.” – Isabel Allende, escritora chilena

Imagem: Achim Thiemermann/Pixabay