Voos Literários

Maria Valéria, mãe fora do padrão

Flávia Cunha
8 de maio de 2020

Com a chegada do Dia das Mães, a idealização da figura materna proposta nos noticiários e na publicidade pode magoar quem não tem a mãe presente em sua vida por qualquer motivo. Essa ausência em geral é suprida por figuras femininas substitutas, que muitas vezes exercem a maternagem de forma afetuosa e dedicada. Pode ser uma avó, uma tia, uma tia-avó, uma amiga da família. O parentesco não importa. O que interessa mesmo é a importância que essa mulher exerce na vida dos órfãos (de amor ou de fato). 

MÃE É QUEM CRIA

Ao buscar uma personagem literária que representasse essas mães fora do padrão, acabei lembrando de um dos clássicos da literatura brasileira, O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Uma das mulheres mais representativas no enredo e a única que aparece nos sete volumes da série literária é Maria Valéria, uma solteirona aparentemente nada afetuosa, mas que é a grande referência materna dos sobrinhos e sobrinhos-netos. Sua irmã, Alice, morre na primeira parte da trilogia, O Continente. Os dois sobrinhos eram crianças e a Dinda, como é chamada, acolhe Rodrigo e Toríbio.

O AMOR NAS ENTRELINHAS

No trecho a seguir do segundo livro, O Retrato, Rodrigo, já adulto, retorna ao sobrado e se emociona ao rever Maria Valéria, que disfarça seu afeto pelo sobrinho:

“Ergueu os olhos e viu lá em cima no vestíbulo, ao pé do último degrau, o vulto da tia. Precipitou-se escada acima e caiu nos braços de Maria Valéria, beijando-lhe as faces, a testa, as mãos, enquanto ela lhe retribuía esses carinhos apenas com seus beijos secos e rápidos.

— Então não está contente com a minha chegada, Dinda? — perguntou ele, quando sentiu que podia falar sem o perigo de romper o choro.

— Quem foi que disse que não estou? — Com as mãos ossudas tomou-lhe do queixo, olhou-o nos olhos demoradamente e perguntou: — Que é isso na vista?

— Decerto foi a poeira da estrada…”

Quando chegamos em O Arquipélago, percebemos a importância estrutural da personagem dentro da narrativa, ao ser ela a responsável por fornecer material para o romance que o sobrinho-neto Floriano escreverá sobre os 200 anos de história do Rio Grande do Sul. A Dinda naquele momento é vista como um farol:

Quando a velha Maria Valéria anda pela casa nas suas rondas noturnas, com uma vela acesa na mão, vejo nela um farol. Estou certo de que a luz dessa vela poderá me alumiar alguns dos caminhos que ficaram pra trás no tempo. “

LINHAGEM DA PERSONAGEM

Dentro da genealogia da trilogia, Maria Valéria é sobrinha-neta de Bibiana e torna-se a última matriarca da família Terra Cambará. Apesar disso, seu nome não é tão conhecido do grande público como sua tia-avó ou Ana Terra, a primeira mãe do enredo.

VOOS LITERÁRIOS ENTREVISTA

Pensando nas razões que levaram à invisibilidade dessa personagem que é uma mãe fora do padrão, conversamos com a escritora e pesquisadora Lélia Almeida, que em 1992 elaborou uma dissertação de mestrado sobre Maria Valéria para a pós-graduação da Letras da UFRGS.

 VL:  Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa a respeito da personagem Maria Valéria?

LÉLIA: Foi durante uma disciplina sobre as personagens femininas de Machado de Assis, ministrada pelo professor Flávio Loureiro Chaves, um dos especialistas na obra de Erico Verissimo. Ele tornou-se o orientador do meu trabalho, no qual observei a importância de Maria Valéria, que fugia da representação tradicional das personagens femininas: as mães, que são boas, e as putas, que são más. A solteirona criada por Erico Verissimo está mais ligada às Deusas Virgens, que são figuras mitológicas que não se submetem ao poder do patriarcado e não se casam. Na minha pesquisa, associo Maria Valéria ao arquétipo de Héstia, que cuida do fogo da casa. Lembrando que na época não existiam pesquisas publicadas sobre as personagens femininas de O Tempo e o Vento e muito menos estudos de gênero. Mesmo sendo uma personagem escrita por um homem e tendo o hábito de mimar muito os personagens masculinos, considero que Maria Valéria demonstra um grande senso de realidade sobre as dificuldades femininas enfrentadas na época em que se passa a história.

VL: A personagem Maria Valéria, de O Tempo e o Vento, pode ser classificada como uma mãe fora das padrões, apesar de não ser chamada de mãe pelos sobrinhos e sobrinhos-netos?

LÉLIA: A personagem, é de certa forma, uma espécie de mãe de todos na história, mesmo não tendo características estereotipadas ligadas ao feminino, como a docilidade e o afeto. Maria Valéria tem atributos mais associados ao masculino: austeridade, autoridade, ausência de vaidade ao vestir-se, etc. Admiro o humor sarcástico da personagem e seu hábito de citar ditos populares.

VL: Qual a importância da personagem Maria Valéria dentro da narrativa da trilogia?

LÉLIA: Além de aparecer em todos os volumes da trilogia, considero a personagem importante por romper a forma tradicional das mulheres se comportarem dentro do enredo de O Tempo e o Vento. Mesmo nos dias atuais, a feminilidade está associada à maternidade e Maria Valéria demonstra ter valor mesmo não sendo mãe.  

(A entrevista com a escritora Lélia Almeida continua na próxima coluna, abordando feminismo e a importância da leitura de obras escritas por mulheres)

 A ideia desse texto surgiu para homenagear minha tia-avó Marina, uma espécie de mãe fora dos padrões, que encheu de afeto e doçura minha infância, adolescência e início da vida adulta. Ela partiu há quase duas décadas, com 90 anos dedicados a dar amor a muitos sobrinhos e sobrinhos-netos.

Imagem: Abertura da série O Tempo e o Vento/Reprodução Internet

Voos Literários

A Literatura Mudou A Minha Vida (Várias Vezes)

Flávia Cunha
28 de março de 2017

Nas reflexões necessárias para criar os textos para esse espaço, comecei a fazer divagações do quanto ela, a Literatura, assim mesmo, com a letra L maiúscula, esteve presente em grande parte dos meus quase 40 anos de vida.

Tentando sistematizar em períodos, percebo que, mesmo antes de ser alfabetizada, eu já flertava com os textos literários, em uma paixão quase irracional.

O flagrante dessa foto foi feito por volta dos meus 3, 4 anos de idade. Eu ainda não entendia nada das histórias do Asterix e suas aventuras divertidíssimas na aldeia gaulesa resistente ao Império Romano. Mas achava a coisa mais linda do mundo sentar, muito quieta, e ficar ali olhando para aquelas páginas.

Vim de uma família de leitores compulsivos e os livros acumulavam-se pelos apartamentos em que moramos ao longo da minha infância. Eu era uma criança tímida e retraída e o único prêmio que ganhei na escola foi um diploma de primeiro lugar em leitura na biblioteca da escola estadual onde estudei.

Livro que marcou essa época: A Bolsa Amarela, Lygia Bojunga Nunes

Já pré-adolescente, passei pela minha primeira perda familiar. Meu avô materno se foi, deixando uma saudade gigante da sua presença bondosa, de seus longos bigodes brancos e cativantes olhos verdes. Acabamos indo morar no apartamento que havia sido dele e a biblioteca da casa virou meu quarto. Recordo perfeitamente das leituras de livros para adultos, escondida da supervisão de meus pais. Muitos deles eu não entendia direito, mas já percebia a predileção do meu avô por autores franceses e obras de escritores gaúchos com enredos urbanos.

Livros que marcaram essa época: Contos, de Guy de Maupassant e Noite, de Erico Verissimo. (um retrato sombrio e meio surreal de Porto Alegre, ainda é meu preferido do Erico.)

Na adolescência, a rebeldia tomou conta de mim, com a separação dos meus pais. Mas ela, a Literatura, estava lá. Meu refúgio. Segui lendo muito, porque era uma fuga saudável das agruras da vida. Sem contraindicações.

Livros que marcaram essa época: É Tarde Para Saber, de Josué Guimarães e O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger.

O tempo passou, me formei como jornalista e os livros seguiam na minha preferência na lista de compras, normalmente antes de roupas ou outros itens de consumo. Em 2004, entrei numa grande emissora de rádio. Muitos acharam sensacional aquela conquista. Eu dava de ombros. Estava naquela corporação tão desejada pelos profissionais da área apenas por necessidade financeira. A Cultura e a Literatura não eram a prioridade da programação da rádio e eu sofria com isso. Por não ter afinidade com o meu trabalho. Por ter que esconder essa predileção e muitas vezes ter que fingir que amava as tais hardnews, as notícias do dia a dia.

Na falta de uma nova opção profissional, me refugiei na Literatura. Primeiro, foram oficinas literárias. Depois, comecei a estudar Letras na UFRGS. Primeiro a graduação. Depois, a decisão por interromper a graduação e fazer o Mestrado em Literatura.

Livros que marcaram essa época: O Dia Em Que O Papa foi A Melo, Aldyr Garcia Schlee, Quincas Borba, de Machado de Assis.

Lá por 2011, 2012, completamente arrasada depois de anos trabalhando com algo que não gostava, pedi demissão. Os motivos de ter ficado tanto tempo na mesma empresa, suponho que vocês possam imaginar: a ilusória estabilidade da carteira assinada. Plano de saúde. Férias remuneradas. Mas a frustração era maior do que o medo e parti em busca dos meus sonhos. Depois de um tempo trabalhando por conta própria, em 2015 surgiu a chance em uma editora de livros, voltada para o público infantojuvenil. Produção editorial e produção de eventos culturais é no que trabalho atualmente. Nem sempre compensa financeiramente, mas tenho certeza que a minha musa, a Literatura, ainda vai me recompensar, depois de tanta devoção.

Voos Literários

Leitura para crianças – Investimento Certo Para O Futuro

Flávia Cunha
21 de março de 2017

Vivemos tempos estranhos no cenário sociopolítico brasileiro e mundial, mas sigo firme na convicção que se tem algo que vai mudar o mundo e garantir seres humanos melhores e mais íntegros, é o incentivo à leitura na infância. Eu já falei um pouco sobre o assunto aqui, mas resolvi fazer outro texto com sugestões de obras literárias para os pequenos escritas e publicadas no Brasil. Um pouco para tentar estimular a procura por livros nacionais, em tempos de exaustiva exposição das crianças a produtos derivados de franquias vindas de filmes hollywoodianos (entre eles, livros). Mas também porque as reminiscências me remetem a momentos muito únicos lendo livros brazucas. 

Clássicos infantis (Mas Que Seguem Atuais)

Monteiro Lobato: Tenho ressalvas na questão racial à obra do escritor, considerado o pai da Literatura Infantil Brasileira. (No aniversário de Lobato, 18 de abril, é comemorado o DIa Nacional do Livro Infantil). A figura da Tia Nastácia certamente é marcada pelo preconceito racial, ainda mais gritante do que hoje em dia lá em 1931, quando foi lançado o primeiro livro da turma do Sìtio do Pica-Pau Amarelo. Apesar disso, Reinações de Narizinho ainda merece meu respeito pela forma libertária de apresentar as personagens femininas: Dona Benta, a avó sábia e independente, Narizinho, a menina que sobe em árvores e desvenda o mundo de igual para igual com o primo Pedrinho, e, claro, a atrevida e desbocada Emília. Provavelmente foi depois de conhecer as aventuras dessa boneca de pano atrevida que comecei a questionar a autoridade dos adultos.

Bônus: Menino Maluquinho, do Ziraldo, Marcelo Marmelo Martelo, da Ruth Rocha, e Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado.

Autores Para Adultos Que Também Têm Obras Para Crianças

Érico Verissimo: No total, o escritor consagrado por obras como O Tempo e O Vento e Olhai Os Lírios no Campo, escreveu seis livros para o público infantil. Meu preferido é O Urso com Música na Barriga, uma história encantadora de como tratar com as diferenças. Um dos livros virou filme: As Aventuras do Avião Vermelho.

Bônus: O Mistério do Coelho Pensante e A Mulher Que Matou os Peixes, de Clarice Lispector, As Gêmeas de Moscou, de Luis Fernando Verissimo.

Para Crianças Moderninhas (Com Famílias Que Querem Estimular Esse Lado Libertário)

Por Meio da Música: A coleção Rock Para Pequenos, foi idealizada pelos donos da editora independente brasileira Ideal. O casal Felipe Gasnier e Maria Maier convidaram a escritora Laura D. Macoriello para selecionar os “personagens” dos três volumes e o designer Lucas Dutra para ilustrar os três livros. De Chuck Berry a Rita Lee, as obras buscam agradar roqueirinhos e roqueirões.

Pela igualdade de gênero: A escritora e ilustradora Pri Ferrari criou o livro Coisa de Menina, onde questiona os padrões de comportamentos impostos às crianças de ambos os sexos.  “Por que ainda dizem por aí que certas coisas não são apropriadas para as mulheres”, questiona a autora na apresentação da obra.