Voos Literários

Lélia Almeida: Precisamos ler mulheres

Flávia Cunha
16 de maio de 2020

Por que devemos valorizar a literatura escrita por mulheres? Os motivos são inúmeros, mas podemos citar o simples fato de que livros de autoria masculina são consumidos por ambos os gêneros, enquanto as obras criadas por mulheres acabam sendo lidas apenas pelo sexo feminino. Uma espécie de misoginia literária, como se as mulheres não tivessem a capacidade de criar um conteúdo profundo e interessante o suficiente para agradar a exigência masculina. Outra razão, essa muito mais cruel e assustadora, é o fato da violência contra a mulher ter crescido muito, em nível mundial, nesse período de pandemia e isolamento social. Muitos homens seguem vendo suas parceiras como sua propriedade e não como seres humanos autônomos, independentes e protagonistas de suas histórias.

ENTREVISTADA QUE FOI ALÉM

Todas essas reflexões passaram pela minha cabeça enquanto entrevistava a pesquisadora e escritora Lélia Almeida na semana passada. Enquanto eu me limitava a fazer perguntas diretas a respeito da personagem Maria Valéria, de O Tempo e o Vento, Lélia ia além. A escritora fez reflexões sobre o quanto uma personagem feminina tem limitações ao ser escrita por um homem, por mais talentoso que Erico Verissimo fosse. E incluiu em suas respostas muitas informações relevantes sobre a literatura feita por mulheres e pontuou o fato de manter, há anos, um grupo permanente de estudos de literatura de mulheres. O resultado vocês conferem abaixo, na segunda parte da entrevista com a escritora.

VOOS LITERÁRIOS ENTREVISTA LÉLIA ALMEIDA

Escritoras mulheres como foco de interesse

“Faço há cerca de 30 anos um trabalho de leitura de mulheres e acabei sendo ‘alfabetizada’ nesse sentido. De ler obras sem o ponto de vista dos homens. Com o passar do tempo, fui me distanciando da pesquisa que fiz sobre O Tempo e o Vento, a ponto de chegar a recusar uma oficina que faria usando como ponto de partida as personagens femininas do livro de Erico Verissimo. Acabei indo por outros caminhos, então esse trabalho não me diz mais respeito.”

Crítica feminista

“Os primeiros estudos da crítica feminista trabalham com dois caminhos: um deles é analisar como as personagens femininas são representadas pelos homens. O outro caminho é a escrita das mulheres. Nesse sentido, acredito que exista uma limitação quando se lê personagens como a Maria Valéria, por ser uma figura feminina escrita por um homem. Apesar de que Erico Verissimo, talvez de forma até inconsciente, tenha conseguido captar algo diferente nessa personagem e colocado nela elementos fora do convencional, ao apresentar uma mulher que não casou mas tem autoridade dentro do enredo.” 

Mulher só, mulher maldita

“No grupo permanente de estudo de literatura de mulheres que mantenho, já estudamos a figura da solteirona. Essa personagem meio maldita, socialmente amaldiçoada, que não tem a proteção do pai e nem de um marido, como é o caso das heroínas góticas. São grandes personagens, cheios de pulsões, sentimentos e contradições. A figura da mulher só é interessante, pois ela se nega a cumprir determinações sociais, como ser esposa e mãe.”

O mito do amor romântico

“Toda a cultura feminina tradicional está baseada no mito do amor romântico. Essa ilusão provoca prejuízos às mulheres até hoje. A gente vê casos de mulheres muito empoderadas que se deixam abalar por uma rejeição masculina. Acredito que substituímos algumas armadilhas por outras. Antes havia a obrigação da virgindade, de casar de branco, de ter determinado número de filhos. Hoje, existe a obrigatoriedade do parto natural, da doula, da amamentação. As mulheres sempre acabam envolvidas por regras que ditam como elas devem viver e se comportar.”

Sexualidade feminina 

“Outro erro atual, na minha visão, é reduzir a sexualidade feminina à questão da violência. Enfrento muitas críticas quando falo isso, mas seguirei defendendo essa ideia. A minha geração [a escritora nasceu em 1962] brigou pela expressão da sexualidade tanto na literatura quanto na vida, pelo direito da mulher sentir prazer na experiência da sensualidade. A sexualidade é muito maior e mais abrangente do que apenas a violência, a vitimização e a cultura do estupro.”

Relações virtuais

“As relações por aplicativos e pela Internet também afetam as mulheres de uma forma que me surpreende. Vejo alunas minhas, na faixa dos 40 anos, fazendo confidências que vi em mulheres da geração anterior à minha. Todas com muitas dúvidas e inseguranças, temos muito o que avançar nesse sentido.”

Pelo direito de não ser mãe

“Uma das vertentes na literatura escrita por mulheres são obras que buscam garantir a possibilidade das mulheres não serem mães. Uma dessas autoras é a chilena Lina Meruane [autora da obra Contra os Filhos, um ensaio que questiona os modelos de maternidade e família]. Nessa obra, Lina cita diversas escritoras que foram contra a maternidade, como Virginia Woolf.

Cuidar dos outros ou de si?

“Para além da questão da maternidade, o que está impregnado nas mulheres é a cultura do cuidar do outro contra o cuidar de si mesma. O cuidar é sempre feminino. O problema é que em geral as mulheres esquecem de olhar para suas vontades ao se dedicarem aos cuidados e vontades de outras pessoas.”

Meninas más

“As mulheres não são sempre boazinhas na vida real. Por isso, admiro escritoras que saem desse padrão estereotipado. A espanhola Carmen Martín Gaite aborda no artigo La Chica Rara, no livro Desde La Ventana, as meninas más. Já a argentina Silvina Ocampo usa o termo “menina terrível” na antologia Cuentos de la nena terrible.

Preconceito literário

“Temos casos clássicos de mulheres transgressoras na literatura que acabam morrendo no final do enredo ou sofrendo grandes punições. Uma delas é Madame Bovary. Assim como a representação da loucura. Nos homens, é algo genial. Nas mulheres, sempre é apresentada de forma negativa. Tudo isso é estudado fartamente pela crítica feminista. Por isso, precisamos ler mulheres. Mas devemos ficar atentos, pesquisar e dar preferência para escritoras que não sejam machistas, que pactuam e reproduzem o discurso vigente. Outra barreira a ser rompida é a dos leitores homens. Por mais inteligentes e evoluídos que pareçam, dificilmente são leitores de obras escritas por mulheres.”

Livros de Lélia Almeida

Numa Estrada Sem Fim que Carrego Aqui Dentro

Antonia

Senhora Sant’Ana

As mulheres de Bangkok

50 ml de Cabochard

A sombra e a chama: (uma interpretação da personagem feminina n’O tempo e o vento, de Erico Verissimo)

Querido Arthur

As gregas do Mangue

As meninas más na literatura de autoria feminina

O amante alemão (Prêmio Açorianos de Literatura, 2013)

Este outro mundo que esquecemos todos os dias.

 

Voos Literários

Maria Valéria, mãe fora do padrão

Flávia Cunha
8 de maio de 2020

Com a chegada do Dia das Mães, a idealização da figura materna proposta nos noticiários e na publicidade pode magoar quem não tem a mãe presente em sua vida por qualquer motivo. Essa ausência em geral é suprida por figuras femininas substitutas, que muitas vezes exercem a maternagem de forma afetuosa e dedicada. Pode ser uma avó, uma tia, uma tia-avó, uma amiga da família. O parentesco não importa. O que interessa mesmo é a importância que essa mulher exerce na vida dos órfãos (de amor ou de fato). 

MÃE É QUEM CRIA

Ao buscar uma personagem literária que representasse essas mães fora do padrão, acabei lembrando de um dos clássicos da literatura brasileira, O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Uma das mulheres mais representativas no enredo e a única que aparece nos sete volumes da série literária é Maria Valéria, uma solteirona aparentemente nada afetuosa, mas que é a grande referência materna dos sobrinhos e sobrinhos-netos. Sua irmã, Alice, morre na primeira parte da trilogia, O Continente. Os dois sobrinhos eram crianças e a Dinda, como é chamada, acolhe Rodrigo e Toríbio.

O AMOR NAS ENTRELINHAS

No trecho a seguir do segundo livro, O Retrato, Rodrigo, já adulto, retorna ao sobrado e se emociona ao rever Maria Valéria, que disfarça seu afeto pelo sobrinho:

“Ergueu os olhos e viu lá em cima no vestíbulo, ao pé do último degrau, o vulto da tia. Precipitou-se escada acima e caiu nos braços de Maria Valéria, beijando-lhe as faces, a testa, as mãos, enquanto ela lhe retribuía esses carinhos apenas com seus beijos secos e rápidos.

— Então não está contente com a minha chegada, Dinda? — perguntou ele, quando sentiu que podia falar sem o perigo de romper o choro.

— Quem foi que disse que não estou? — Com as mãos ossudas tomou-lhe do queixo, olhou-o nos olhos demoradamente e perguntou: — Que é isso na vista?

— Decerto foi a poeira da estrada…”

Quando chegamos em O Arquipélago, percebemos a importância estrutural da personagem dentro da narrativa, ao ser ela a responsável por fornecer material para o romance que o sobrinho-neto Floriano escreverá sobre os 200 anos de história do Rio Grande do Sul. A Dinda naquele momento é vista como um farol:

Quando a velha Maria Valéria anda pela casa nas suas rondas noturnas, com uma vela acesa na mão, vejo nela um farol. Estou certo de que a luz dessa vela poderá me alumiar alguns dos caminhos que ficaram pra trás no tempo. “

LINHAGEM DA PERSONAGEM

Dentro da genealogia da trilogia, Maria Valéria é sobrinha-neta de Bibiana e torna-se a última matriarca da família Terra Cambará. Apesar disso, seu nome não é tão conhecido do grande público como sua tia-avó ou Ana Terra, a primeira mãe do enredo.

VOOS LITERÁRIOS ENTREVISTA

Pensando nas razões que levaram à invisibilidade dessa personagem que é uma mãe fora do padrão, conversamos com a escritora e pesquisadora Lélia Almeida, que em 1992 elaborou uma dissertação de mestrado sobre Maria Valéria para a pós-graduação da Letras da UFRGS.

 VL:  Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa a respeito da personagem Maria Valéria?

LÉLIA: Foi durante uma disciplina sobre as personagens femininas de Machado de Assis, ministrada pelo professor Flávio Loureiro Chaves, um dos especialistas na obra de Erico Verissimo. Ele tornou-se o orientador do meu trabalho, no qual observei a importância de Maria Valéria, que fugia da representação tradicional das personagens femininas: as mães, que são boas, e as putas, que são más. A solteirona criada por Erico Verissimo está mais ligada às Deusas Virgens, que são figuras mitológicas que não se submetem ao poder do patriarcado e não se casam. Na minha pesquisa, associo Maria Valéria ao arquétipo de Héstia, que cuida do fogo da casa. Lembrando que na época não existiam pesquisas publicadas sobre as personagens femininas de O Tempo e o Vento e muito menos estudos de gênero. Mesmo sendo uma personagem escrita por um homem e tendo o hábito de mimar muito os personagens masculinos, considero que Maria Valéria demonstra um grande senso de realidade sobre as dificuldades femininas enfrentadas na época em que se passa a história.

VL: A personagem Maria Valéria, de O Tempo e o Vento, pode ser classificada como uma mãe fora das padrões, apesar de não ser chamada de mãe pelos sobrinhos e sobrinhos-netos?

LÉLIA: A personagem, é de certa forma, uma espécie de mãe de todos na história, mesmo não tendo características estereotipadas ligadas ao feminino, como a docilidade e o afeto. Maria Valéria tem atributos mais associados ao masculino: austeridade, autoridade, ausência de vaidade ao vestir-se, etc. Admiro o humor sarcástico da personagem e seu hábito de citar ditos populares.

VL: Qual a importância da personagem Maria Valéria dentro da narrativa da trilogia?

LÉLIA: Além de aparecer em todos os volumes da trilogia, considero a personagem importante por romper a forma tradicional das mulheres se comportarem dentro do enredo de O Tempo e o Vento. Mesmo nos dias atuais, a feminilidade está associada à maternidade e Maria Valéria demonstra ter valor mesmo não sendo mãe.  

(A entrevista com a escritora Lélia Almeida continua na próxima coluna, abordando feminismo e a importância da leitura de obras escritas por mulheres)

 A ideia desse texto surgiu para homenagear minha tia-avó Marina, uma espécie de mãe fora dos padrões, que encheu de afeto e doçura minha infância, adolescência e início da vida adulta. Ela partiu há quase duas décadas, com 90 anos dedicados a dar amor a muitos sobrinhos e sobrinhos-netos.

Imagem: Abertura da série O Tempo e o Vento/Reprodução Internet