Pedro Henrique Gomes

Crítica – Uma Questão Pessoal

Pedro Henrique Gomes
12 de outubro de 2018

Já é guerra quando irrompe na tela a primeira imagem de Uma Questão Pessoal (2017), que Paolo Taviani assina como diretor, sozinho, após a morte do irmão Vittorio pouco depois da conclusão do filme. Sua causa formal, no entanto, guarda coerência com a sintaxe geral da obra dos Taviani.

Como Rossellini (e como Fassbinder), os Taviani demonstram interesse em depurar formalmente a imagem, em erguê-la sem empurrões forçados, isto é, sem recorrer ao caminho mais curto do filme militante ou “engajado”. Percebe-se, aqui, uma atração documental (como em César Deve Morrer, 2012, só que pelo inverso: ficção-doc aqui; doc-ficção lá) que não está restrita apenas ao fato de que sua trama tem como pano de fundo um acontecimento histórico (a Segunda Guerra Mundial, a resistência antifascista), mas ao próprio modelo perseguido por sua narrativa, que comporta duas ações temporais corrigindo uma a outra, sensibilizando-se mutuamente, preenchendo seus sentidos.

Baseado no livro Beppe Fenoglio, a trama se passa em 1943. O fascismo é ainda uma ameaça. Milton (Luca Marinelli) é membro da resistência armada estabelecida nas colinas do Piemonte. Anos antes, viveu rodeado pelo amigo Giorgio (Lorenzo Richelmy) e pela namorada Fulvia (Valentina Bellè), cuja imagem ainda vive em seus pensamentos. É uma memória viva, em fato, como a fotografia que acentua suas cores, seu calor – e também sua música, seus sorrisos.

Durante a resistência, no entanto, perdeu o amigo para os fascistas, o que é também marcado pela fotografia do filme. E não havia outra forma de dizê-lo, ou melhor, de mostrá-lo: de todo modo, o fascismo não tem cor. Ao mesmo tempo, ao regressar a um casarão onde bons tempos passaram os três, Milton descobre que talvez Giorgio teria, ele também, tido uma história de amor com Fulvia. Milton passa a perseguir este mistério passado e a tentar resolver, pelas armas (e pelo pensamento), o imbricado drama de guerra do presente. No fascismo, no entanto, só existe o agora. A ideia de história é corrigida, as diferenças são eliminadas e o pensamento desviante, quando notado, é sumariamente incendiado. É contra isso que o amargurado protagonista luta.

É rigorosamente simples a trama do filme dos Taviani, mas complexos são os dramas que ela mobiliza. Milton deve resgatar o amigo das mãos do fascismo para resolver, num só golpe, dois artifícios do mal-estar que lhe move. A violência da luta antifascista, no filme, está expressa em sua capacidade de internalização dos conflitos e não do contexto político em si, escondido sob o corpo de Milton, que vive dividido entre duas missões. A partir daí, o terreno é fértil para os Taviani explorarem as contradições do protagonista, o colocando em crise – e, ao fim e ao cabo, em lançar luz sobre como são constituídas e sustentadas as paixões dos sujeitos.

A atmosfera da luta de Milton contra os dois “sistemas” (o político e o emocional; o sistema do ódio e o sistema do amor), confere ao filme um tom que pode parecer despreocupado, mas que anseia evidenciar, justamente, esses mistérios algo insondáveis contra os quais lutamos insistentemente ao longo da vida. Para os Taviani parece que ao cinema não deve restar a tarefa pesada de restituir a ordem das coisas ou tampouco de “reescrever” a história,  mas de oferecer uma leitura que instigue o enfrentamento de nossos próprios medos.

Una questione privatta, de Paolo Taviani (Itália, 2017). Com Luca Marinelli, Lorenzo Richelmy, Valentina Bellè.

Pedro Henrique Gomes

Três filmes e o VAR

Pedro Henrique Gomes
14 de julho de 2018
Willem Dafoe and Brooklynn Prince in 'The Florida Project" from EPK.tv

Deixe a luz do sol entrar, de Claire Denis, França, 2017

A expressão mais clara de uma cineasta que detém o controle absoluto do material de sua criação e, a um só tempo, é capaz de estar aberta ao imprevisto de uma cena, ao improviso. Deixe a luz do sol entrar é o filme mais estranho de Claire Denis, no sentido de que é tão elíptico, tão claro na abordagem e direto ação. Como é corrente em seus filmes, a câmera privilegia uma relação próxima de seus personagens, flutuando de corpo a corpo, mas que não mostra tudo pois prefere construir uma espécie de campo sensível (e sensual) e permitir que se formem partes inacessíveis, pedaços de planos que tateamos sem ver. Suas imagens são formas de discurso do corpo mais do que da fala. Além disso, apenas um comentário sobre o trabalho de Juliette Binoche no filme: uma atriz como essa não merece nada menos do que a eternidade.

Projeto Flórida, Sean Baker, EUA, 2017

O filme de Sean Baker consegue registrar, a partir de personagens infantis, a crueza do mundo os cerca. O mundo dos adultos é tão ou mais esquisito do que o das crianças que bagunçam o hotel onde moram em Orlando. Pertinho da Disney (que também é um universo adulto e infantil ao mesmo tempo), o hotel comporta uma variedade de personagens, entre eles o de Willem Defoe, que faz Bobby, o manager do local, personagem permeado por conflitos na relação com os moradores e hóspedes. Em especial com mãe de Moonne, Halley, que tem vários problemas para se manter hospedada. O eixo central do filme gira em torno destes três personagens e é através deles que expõe, na simplicidade de sua estratégia narrativa, a história dramática que a fantasia e o glamour do sonho americano muitas vezes não conseguem captar.

Como falar com garotas em festas, de John Cameron Mitchell, Reino Unido, 2017

O filme reforça a minha crença de que John Cameron Mitchell não possui a mais vaga ideia do que significa encenação no cinema. Adaptando Neil Gaiman, não consegue sair do círculo vicioso de suas soluções visuais e narrativas e propor um desafio ao espectador que não seja o de interpelar imagens fugidias em um filme “diferentão”, radical na publicidade de si mesmo e muito duro na articulação de toda essa liberdade aparente. Dito de outro modo, é preciso decifrar – e ter noção disso – a consciência de sua criação, os seus mecanismos. Como falar com garotas em festas parece um filme contente apenas com sua coragem conteudística, mas que resulta confuso diante da fragilidade de sua trama.

VAR: “Mas você não viu no vídeo, seu juiz?”

Agora que já se sabe que o VAR não encerra a discussão sobre um lance disputado no calor do jogo, já podemos abandonar o seu constrangedor uso no futebol para fins de definição, por exemplo, de um pênalti. No tênis ou no vôlei, ou a bola está dentro ou está fora da linha. Um sensor e um vídeo “provam” as reivindicações, quando feitas e necessárias. No futebol, acrescenta-se que a disputa física entre atletas embaralha a interpretação: a certeza do que os nossos olhos nos mostram é suspensa, subjetiva (dada a interpretação do sujeito-juiz). Simplesmente ela não existe – é possível que o vídeo venha a reforçar essa confusão, tornar mais acirrados os ânimos quando a decisão do árbitro não concordar com a emoção dos atletas em campo. A intensidade com que os corpos se tocam não é acessada pela imagem. O corpo encena, a câmera mente.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – As Boas Maneiras

Pedro Henrique Gomes
22 de junho de 2018

As Boas Maneiras, nova parceria de Juliana Rojas e Marco Dutra, assume a roupagem do filme de fantasia dark, repleto de motivos visuais fabulares, de imaginações que se tornam carne e sangue, de sonhos que são também outra coisa, de clara aposta estética em uma estrutura de resgate a partir de várias referências matriciais que percorrem e marcam a história das imagens (da pintura, do cinema: da luz). É precisamente, paradoxal que seja, por se movimentar entre gêneros que o filme corrige sua postura narrativa com o contrapeso que um exige do outro, deslocando as sensibilidades do espectador para o interior de seu tecido narrativo.

O filme é envolvido, em essência, pela atmosfera do horror, por seus elementos universais, mas é embebido pelo musical, pelo drama social, assim como vários trabalhos anteriores tanto de Juliana (Sinfonia da Necrópole) quanto de Marco (Quando Eu Era Vivo) também são. O puxão de orelha sacana do musical, que acompanha o horror com frequência, por exemplo, nos cinemas americano e italiano, lança aqui os seus momentos de torpor: é para ser visualmente belo e sensivelmente repugnante o desenrolar de toda narrativa.

A percepção do espectador, no entanto, aprecia sofrer e agonizar a partir do jogo que a hibridez de gêneros propõe, onde sua conjugação visual transita entre o prazer e a emoção mediadas pelo medo. Sofrer é sentir a confusão entre o realismo e a fantasia, entre uma São Paulo de formas e conteúdos enigmáticos e fantasmagóricos (mas que ainda é a São Paulo que abriga muitas diferenças e insiste em não corrigir suas distâncias de classe), que aparecem não somente como necessidade de “comentário social”, mas como geografia de um mundo por um lado raro (de quem não precisa se preocupar com a crueldade desse mundo) e, por outro, muito constante (de quem articula sua existência na urgência das coisas). Sabemos onde estamos, mas nem sempre sabemos onde fincamos nossos pés (como em Jacques Tourneur ou em Dario Argento).

O tecido do filme, que se desdobra em dois tempos, tem Clara (Isabél Zuaa) como personagem central. Clara fez um curso de enfermagem que não concluiu, mas mesmo assim conseguiu o emprego na casa da gestante Ana (Marjorie Estiano), quando lá foi para uma entrevista. Com o tempo, ela percebe algo estranho no sonambulismo de Ana, passando a observar seu sono. Mesmo quando dá o salto divisório, é muito retilínea a trama do filme, que “acontece” rapidamente até criar o chão e os contornos dramáticos para sua metarreflexão ter início nas duas partes que o conectam.

Isso pois os elementos narrativos e visuais de As Boas Maneiras são cativantes por seus aspectos ilusórios, que solicitam um olhar atento e persistente a recepcionar e refletir o que vê. Não pela vontade de atrair o olhar do espectador para um alçapão, mas para envolvê-lo por inteiro em seu próprio desejo inconsequente, como são os desejos maternos e o amor sobre os quais o filme também versa. O deslocamento entre gêneros que o filme propõe é recorrente em certo cinema de horror onde a encenação (o Giallo, por exemplo) tem grande explicitude e evidência gráfica. Jamais esqueceremos do rosto que reflete no instante de um segundo num espelho em Prelúdio para Matar ou da aparição fantasmagórica de Madeleine no Hotel Vertigo em Um Corpo que Cai. De certa maneira, quando Clara estende a mão, na cena final, tomada por medo e confiança, também este plano permanecerá com toda sua força. Entranhados nas imagens, sucumbimos aos seus movimentos, mas os desejamos frontalmente.

As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, Brasil, 2018. Com Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira, Gilda Nomacce, Hugo Villavicenzio, Andrea Marquee.

Pedro Henrique Gomes

Licínio Azevedo: viver para narrar

Pedro Henrique Gomes
2 de junho de 2018

A violência colonial nunca coube somente nos livros de História. Antes da independência, os países africanos só viam a si mesmos através do olhar do colonizador, isto é, não produziam imagens sobre si. Em última instância, não viam a si mesmos nas imagens que eram feitas “sobre a África e os africanos”. Em cada país aos seus modos, a experiência de descolonização propiciou, com todas as dificuldades imagináveis, por um lado, o fato de se começar do zero a construir um pensamento sobre a produção de imagens (uma questão estética e cultural) e, por outro, a própria inexistência dos meios para tal (uma questão econômica e política).

Independente de Portugal em 1975, assim como as outras ex-colônias portuguesas na África (como a exceção da Guiné-Bissau, que conquistou a independência um ano antes), Moçambique logo criou o Instituto Nacional de Cinema e, com ele, o Kuxa Kanema (O Nascimento do Cinema), cinejornal de atualidades (e documentário de mesmo nome dirigido pela cineasta Margarida Cardoso) cujo objetivo central consistia em “criar a imagem do povo e devolvê-la ao povo”. Foi comum, aliás, aos vários projetos socialistas que vigoraram na segunda metade do século passado o ímpeto de constituir (ou de reconstituir), pela via da cultura, suas feições nacionais após a libertação do jugo colonialista ou de ditaduras. Era preciso participar, em fato, da “batalha da informação”.

Convidado por Ruy Guerra, depois de rodar a América Latina como jornalista, passar por Portugal e Guiné-Bissau, Licínio Azevedo (nascido em Porto Alegre) chegou a Moçambique em 1977 para trabalhar no Instituto. E lá ficou, tornando-se um dos principais realizadores do país em uma época em que, inflamado pelo projeto de transformação socialista guiado pelo então presidente Samora Machel (que via o cinema como ferramenta fundamental desse processo), havia notável interesse popular no cinema. Um incêndio e, claro, antes dele, a guerra civil (que seguiria até 1992), deixaram a sede do Instituto em ruínas, minando a infraestrutura de produção de filmes que o país havia criado.

O fato é que, do jornalismo de narrativa muito próxima da ficção (inspirada pelo New Jornalism), Licínio Azevedo foi da escrita jornalística à literatura, e desta para o cinema, sem nunca ter os abandonado para se refugiar em um só meio de expressão. Antes de uma “transição”, Licínio realizou (e realiza), uma obra de confluência, de atravessamentos e interesses que não cabem somente no cinema, nem na literatura e tampouco apenas no jornalismo.

Licínio sempre parte de algo colhido do mundo, um acontecimento que virou notícia, um fato. Parte de algo “real” antes por seu espírito de resistência e de participação democrática através do texto e da imagem. Resistir é: conservar, fazer durar, permanecer. No seu caso, contar histórias. Seu filme Desobiência, por exemplo, torna imagem aquilo que não pode ser outra coisa, numa verdadeira aula de como fazer documentário e ficção a um só tempo, se apropriando dos elementos narrativos e visuais dos dois formatos e os incorporando ao seu estilo. O Grande Bazar, Hóspedes da Noite, A Árvore dos Antepassados, A Virgem Margarida e, agora, o Comboio de Sal e Açúcar, como outros, são todos cúmplices desse seu interesse narrativo, seja via escrita ou via cinema, seja na ficção ou no documentário.

Mas eu paro por aqui: a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, exibirá o Comboio de Sal e Açúcar, seu mais recente filme, segunda-feira, 19h30, com a presença do Licínio em debate após a sessão – do qual este colunista também participará, embora certamente, antes de tudo, pronto para ouvi-lo.

Detalhes sobre a sessão (e sobre outras que também serão apresentadas pelo diretor no Rio de Janeiro): aqui.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Processo

Pedro Henrique Gomes
19 de maio de 2018

O plano de abertura de O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos, sobrevoa a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para mostrar que há uma disputa política dada, encravada na polarização dos vermelhos, à esquerda, e dos verde-amarelos, à direita. A disputa pelos espaços midiáticos, narrativos, conceituais, encobre o tal processo do título, tempera os conflitos políticos, incendeia a já muito confusa discussão rodeada de “certezas históricas” e prerrogativas morais que corroem a esfera pública nacional. A batalha campal que é filmada de cima, dividindo dois focos de luta, amor e ódio, ao menos no plano simbólico, remete ao aspecto falsamente dual de nosso contexto político. Apesar de não romper com o dualismo, O Processo retira, na medida da possível, a política da esfera do espetacular, do televisivo, e a coloca em um espaço de observação e de crítica.

Consumado em agosto de 2016, após longo circo político-midiático, o impechment de Dilma Rousseff interrompeu seu segundo mandato presidencial, encerrando prematuramente o ano 14 de sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores.

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O Processo é feito de imagens de arquivo e captadas pela diretora em sessões do congresso, comissões, votações e debates da bancada governista no senado planejando os próximos movimentos da defesa de Dilma.

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O entendimento geral, no entanto, era de que o processo já possuía suas jogadas marcadas, seu xeque-mate programado. Resistir por todos os meios e fins era, pois, um ato político derradeiro.

Há uma coleção de imagens muito interessantes e bem articuladas, especialmente as captadas por Maria Augusta Ramos durante o “rito” jurídico, que respeita o tempo do drama e da fala, percebe a encenação que se apresenta para a câmera nas filmagens internas, de gabinete, nos corredores, as ligações telefônicas e entrevistas para imprensa. Ela respeita isso e seu filme ganha força e densidade dramática. Mas ao filmar o absurdo da política partidária institucional, o absurdo olha para você em reação. Momentos involuntariamente cômicos se embaralham com momentos de crise.

O filme quer tornar claro que houve um golpe parlamentar contra o PT e Dilma ao mesmo tempo em que, como documentário sobre o processo do impechment, quer também compreender os acontecimentos que basearam o golpe. No filme, está claro: não houve crime de responsabilidade fiscal, diz a defesa e a bancada governista representadas, entre outros, como personagens num thriller político, por José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin e Lindbergh Farias. A acusação teve em Janaína Paschoal, advogada e professora de Direito Penal, sua mais proeminente figura atendida pela câmera paciente e dedicada da cineasta. Mas se há uma coisa que o filme não faz é duvidar de si mesmo, explorar mais vivamente as tensões fora da máquina polarizadora para, aí então, buscar compreender algo. A narrativa é muito justa, retilínea e segura de sua ordem para que se possa compreender muito além da narrativa do golpe, como decerto era intenção do filme. Antes, já tinha as respostas: aqui está o golpe e foi assim. Os vermelhos, lá fora, choram a derrota e anunciam a volta por cima; os verde-amarelos, pujantes e satisfeitos, gozam não se sabe muito bem o que. O filme militante, muito justo, escorrega em suas virtudes.

Não se pode cobrar, claro, imparcialidade do documentário – embora, caso se queira, é plenamente possível ser imparcial. A história narrada por suas imagens tem um fio condutor, causalidade e uma sucessão de eventos em meio ao trâmite político cujo desenlace é o golpe, o impechment. É possível dizer que se tentou dar espaço para o outro lado, mas a construção da câmera é voltada para destruir a retórica da acusação, para isolar seus personagens ou para dimensioná-los, vez ou outra, pela caricatura. Isso é legítimo, embora fragilize a ideia de um filme feito “para que as pessoas possam refletir”. É verdade que, mesmo sem função, há imagens muito raras para não participarem do filme, como quando Janaína Paschoal bebe um achocolatado de canudinho no intervalo de alguma sessão ou o presidente da comissão que interrompe um debate para pedir a troca de uma campainha que não estava à altura do local. Esses momentos de precisão estética (fruto de atenção documental, atenção com o espaço ao redor) casam bem com o fato de alguns personagens aparecerem pouco, como Aécio Neves, Lula, Gilberto Carvalho e a própria Dilma.

Gilberto Carvalho é quem, aliás, marca um momento de reflexão tardia, já com a assunção da queda. Essa cena, crucial para o discurso do filme, é retrato também dos limites dessa reflexão que a militância petista difundiu pensando estar fazendo autocrítica.

O golpe parlamentar encerra um acordo político nacional com o pemedebismo, que foi rompido – e o lado do PT perdeu. Os golpeados não foram os políticos.

O Processo, de Maria Augusta Ramos, Brasil, 2018. Com José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin, Lindbergh Farias, Janaína Paschoal, Dilma Rousseff, Aécio Neves, Antonio Anastasia, Eduardo Cunha.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Imagens do Estado Novo 1937-45

Pedro Henrique Gomes
28 de abril de 2018

Imagens do Estado Novo 1937-1945 entra deliberadamente num vespeiro ao vasculhar materiais históricos, tais como imagens, canções populares, discursos radiofônicos, matérias em jornais, livros, filmes e, em essência, o diário mantido pelo próprio presidente Getúlio Vargas no intuito de oferecer sua narração sobre tudo isso.

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As imagens são mesmo abundantes e preenchem todo o filme.  E o off, narrado pelo próprio diretor Eduardo Escorel, acompanha, dando-lhes contexto e, claro, uma leitura particular (a do narrador) responsável por organizar, sistematicamente, todo o período do Estado Novo nas quatro horas de duração do filme.

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Getúlio Vargas, claro, é o personagem central, por onde se embaralham e percorrem todas as intrigas palacianas, tramas políticas, influências familiares, ameaças comunistas, comícios populares, oposições oligárquicas e toda sorte de relações que o seu governo produzia com o estrangeiro.

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Escorel começa, em fato, antes do Estado Novo (1937-45). Começa quando o movimento de 1930 (aka Revolução de 30) depôs Washington Luís da Presidência, dando fim a Primeira República. Ainda que breve, a narrativa inicia, nem que seja para fins contextuais, quando da chegada de Getúlio à presidência, em 1930, e vai terminar, após longos 34 anos, com o golpe de 1964 que depôs o então presidente João Goulart. A narração permite, no entanto, que a história se demonstre invariavelmente interconectada, comportando avanços e recuos no tempo da ação para indagar seja uma formação política, um gesto ou uma reviravolta na trama que conduz o filme. Os fatos não estão dados de antemão para o documentarista e pesquisador que é Escorel, ele irá percorrê-los, questioná-los, desconfiar das imagens que ele próprio mostra. Imagens do Estado Novo é resultado de uma pesquisa de muitos anos e que se traduz, como vemos, num panorama histórico ao qual podemos voltar várias e várias vezes, a depender das instâncias do nosso interesse.

De modo a não perder o movimento dos eventos, Escorel prefere o estilo clássico do documentário, como quem assume que a distinção de seus temas e não permite incorreções derivadas de leituras “emancipadas” da materialidade da história que narra. Apesar do eloquente racionalismo da narração, que busca se esquivar de subjetividades interpretativas, o filme propõe vários caminhos para nos aproximarmos do Brasil varguista e de todas as suas variadas formas e contradições. Seu objetivo, mais do que fazer memória com o processo histórico brasileiro que convulsionou a primeira metade século XX, consistiu precisamente em dar relevo a fragilização institucional do país, sua regular instabilidade política e seu baixo teor de participação democrática, tendo como nervo da ação o presidente Getúlio Vargas.

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Para contar essa história tendo Vargas como eixo é preciso ir longe sem sair do lugar

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As elites oligárquicas nacionais, saudosas do nacionalismo, estão aí desde a gênese do Brasil, maculadas nos sorrisos que desfilam nos banquetes palacianos, nas marchas autoritárias destituidoras e que provocam constantes abalos sísmicos na estrutura das instituições brasileiras. Ora, legitimidade para governar nunca foi permitida por muito tempo neste país que tanta vezes golpeou a si próprio e aos seus. Tomar o risco de buscar capturar as variações e dimensões da trama política nacional é, por si só, um desafio notável. Escorel acredita na força do documento. A natureza imponente da pesquisa contribui para que sua narrativa não disperse o interesse do espectador. A trama é complexa e recheada de contradições.

A simpatia de Vargas pelo nazi-fascismo é motivo de escrutínio por Escorel. A legislação trabalhista inaugurada pelo presidente e cujas fontes de inspiração são conhecidas ganham significativo destaque: tanto o malgrado populismo varguista quanto as suas reformas nos direitos sociais compõem diferentes faces de uma mesma moeda, basta vermos como a progressiva expansão dos direitos sociais não foi acompanhada pela expansão dos direitos políticos, antes pelo contrário. O nacionalismo econômico que sustentou o Estado Novo e rendeu ao governo o apoio dos integralistas liderados por Plínio Salgado – o anticomunismo os unia; da Alemanha hitlerista e de uma população majoritariamente católica, que decerto não podia ouvir falar em comunismo, Mao e União Soviética – foi possível através de uma bem difundida rede de censura da imprensa e das atividades políticas da oposição.

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O caráter autoritário do Estado Novo era evidente no modo paternalista com que tratava o povo (a ideia de povo, pelo menos).

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Filho do positivismo, não interessava ao governo do “pai dos pobres” ter o povo nas ruas senão como figurantes de seus desfiles e eventos propagandísticos. Ele queria a conciliação do patrão e do empregado. Mas como a política não comporta sentimentalismos, Vargas seria eleito pelo voto em 1950, mesmo após ter sido golpeado e apeado do poder pelos militares em 1945, quando se encerrava, tradicionalmente pela força, o Estado Novo.

Imagens do  Estado Novo conecta várias pontas dessa trama, deixa pontos de fuga e desafios reflexivos para o espectador realizar. Afora sua grandiosa empreitada intelectual, de estudo e pesquisa, há um caráter de exegese de certa sensação de democracia que o Brasil poucas vezes teve ou teve com baixa intensidade. A experiência de um golpe militar, tão recorrente na história brasileira, é ainda muito viva. Escorel faz jorrar a sangria para explorar, nos detalhes, as tensões do Estado Novo e o quanto ele ainda pode ser representativo para pensarmos os desdobramentos da política atual pela via da construção de discursos, tal como o seu próprio.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Arábia

Pedro Henrique Gomes
13 de abril de 2018

Só existe “tiro e matação”, não há milagre no mundo. A constatação é de um menino, uma criança, personagem de Arábia. Seu irmão mais velho, André (Murilo Caliari), é quem participa do diálogo. Cena aparentemente lateral em Arábia, o filme de Affonso Uchoa e João Dumans organiza com precisão o seu desenvolvimento. Ela indica também um dos temas do filme, que é a violência e suas variadas formas de expressão. O mais substantivo em Arábia é a recusa do sociologismo e sua pretensão retórica baseada no senso comum, vide outros exemplares do cinema brasileiro recente (Que Horas Ela Volta?, Aquarius) que não o quiseram evitar. Seu compromisso (político que seja) é com a dramatização interna, com os motivos de seu protagonista, com a rede de relações que ele cria e vivencia. Há (pelo menos) um modo de mostrar isso e o filme o percebe.

O Brasil de hoje é um país no qual persistem os traços do autoritarismo fundador, que não é um traço ontológico “do povo”, mas cultivado por cima e que tornou hegemônico o grupo político-econômico que o agencia. Há um obsceno rombo entre as classes em disputa. A classe trabalhadora, que Cristiano (Aristides de Sousa) é expressão rigorosa, está em desvantagem dada a assimetria das forças em luta. O que Arábia propõe, no entanto, não é um inventário da luta de classes brasileira, ao modo de um Sérgio Bianchi, por exemplo. Não há o binarismo centro-periferia como estratégia de representação, tampouco como “noção” ou “conceito”. É mais sutil e, de certo modo, revigorante a história dessa desigualdade que a voz e o corpo ferido e esperançoso de Cristiano verbaliza e torna imagem. Imagem que a inversão valorativa da televisão e da publicidade (e também do cinema, da literatura…) já vulgarizou, tornou natural, incapaz de demonstrar.

O jovem André lê um diário deixado por Cristiano após este sofrer um acidente na fábrica de alumínio em que trabalha, em Ouro Preto, Minas Gerais. Cristiano relata boa parte de sua vida neste caderno pós-prisão, sua voz narrando desde o dia em que saiu do cárcere até dias antes do acidente. A leitura de suas notas de vida pelo jovem André acena para o narrador que interpreta aquilo que lê, como nós, espectadores, o fazemos com o filme. É dupla a narração pois Arábia assume a ambiguidade daquele universo, suas contradições e conflitos, as camadas do esquema de produção simbólica do que é o Brasil e o brasileiro trabalhador neste século. Cristiano, apesar de sua voz cansada, tem a auto-estima que esperam (esperamos?) que ele tenha. Ele crê, como sempre, na possibilidade de vencer a assimetria que o criou.

Ao sair da prisão, sua condição o faz saltar de trabalho em trabalho em busca do seu sustento, em busca, é claro, de uma vida melhor. Dar a volta por cima e recomeçar após perder a liberdade com o tempo mantido encarcerado, como diz a música dos Racionais que ele canta, não será sem suor e sangue. Com ele, temos a representação secular do trabalhador-operário no cinema brasileiro: no campo, na cidade, na estrada, na fábrica, seja onde for o precariado brasileiro é cena, é personagem, é modo de ver e de construir (e destruir) imagens e narração. É Cristiano quem narra, ainda que em segunda instância (é uma carta sua que é lida por André), é ele quem define o ponto de partida da leitura e escolhe um lugar para começar. Esse início é instável e conduz o espectador a abraçar essa instabilidade da narração, tal e qual a própria trajetória errante do personagem precipita.

Até alcançar a “maturidade” do entendimento de sua real condição e, modestamente, num grito não vocalizado, se imaginar conclamando todos os operários a interromperem os trabalhos e deixar incendiar a fábrica, Cristiano terá passado por muita coisa tentando preencher sua vida de sentido, terá conhecido, amado e perdido a mulher da sua vida, rodado Minas Gerais em busca de trabalho, se encantado e se desiludido com a perspectiva de sua existência.

Arábia é resultado de um esforço notável em considerar as circunstâncias sofridas que compõem a realidade nacional, que atravessa o Brasil inteiro e que o filme denuncia, esteticamente, com rigor e coerência formal. Ele parte, pois, do princípio não meritocrático de uma sociedade desigual para compreender a subjetividade a partir do trabalho objetivo, do material. No processo, encaminha finalmente (com um plano muito duro) o abalo mental e a resignação desse personagem não como alguém que desiste de tentar superar e vencer a instabilidade da vida, mas como quem simplesmente não deseja mais jogar seu jogo.

Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, Brasil, 2017. Com Aristides de Sousa, Murilo Caliari, Renata Cabral, Renan Rovida.

Pedro Henrique Gomes

15h17 – Trem para Paris

Pedro Henrique Gomes
30 de março de 2018

Uma sensação de estranhamento percorre o filme, contorna grande parte de suas cenas. 15h17 – Trem para Paris tem lá sua radicalidade, que não é, para evitar desentendimentos, uma radicalidade narrativa. Clint Eastwood entende a psique americana com precisão e coloca, tanto neste filme como em Sniper Americano, o militarismo, o valor das armas como símbolos de autonomia, liberdade e segurança contra ameaças externas, a constituição da fé e o cristianismo obstinado que se conecta a isso tudo de maneira natural e autoevidente.

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Ele está seguro de que, se há uma maneira de filmar histórias de vidas comuns que presenciam e atuam em grandes acontecimentos, é imperativo que se abrace seus personagens sem tantas certezas morais. Se ele as mantêm, o filme as coloca em conflito.

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O exemplo é, novamente (assim como em Sniper Americano), o papel do narrador na condução das possibilidades de leitura que o filme faz abrir. Os filmes de Clint, como a sociedade americana, só parecem simples. O espectador é convocado a partilhar o mundo e toda a sujeira que o sustenta a partir da convocação de estereótipos e clichês. É uma posição paradoxal e instigante esta que sua obra evidencia: Clint não faz um cinema político puro padrão, conciliador de boas intenções e de seguranças intelectuais. A vitória dos bons e a punição dos maus, lógica do faroeste de herança fordiana, comporta também alguma contradição (inclusive emocional), pois o justiçamento nem sempre determina moralmente seus filmes (ao contrário de John Ford), deixando que a consciência espectatorial elabora seus sentidos.

O republicanismo de Clint se costuma somar ao argumento na esperança de resolver a moral formal que circunda seu cinema: ele é um reacionário, até um fascista, disseram por ocasião de alguns de seus filmes, mais recentemente (de novo) sobre Sniper Americano. Se por um lado isso não parece ser algo relevante para o entendimento do filme ou para a discussão crítica, todavia chama atenção para algo que é, no ponto de vista que articulo aqui, a ambiguidade sedutora da obra recente Eastwood. É notável inclusive como o cineasta percebe que a construção do imaginário do herói, materializado na figura de Spencer Stone, é um processo que passa também por aqueles que criam imagens: a televisão e o cinema, claramente. Clint tem culpa no cartório e explicita isso, pois entre os cartazes de filmes que Stone guarda em seu quarto quando jovem há um de Cartas de Iwo Jima.

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Assim como Sniper Americano, Trem para Paris não é um filme preocupado em contextualizar “o outro lado da história”. Ao contrário, o terrorismo aparece apenas como ameaça e como ponte para a jornada de salvação da qual os três jovens americanos serão protagonistas.

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Ao filme interessa os procedimentos internos, a consagração moral de seus três personagens centrais. Por outro lado, desde a infância o aparato bélico-religioso se manifesta exigente na educação dos meninos, moldando suas personalidades, motivando-os a buscar em certos mitos de origem (o exército e Deus, nas armas e na fé cristã) o combustível para negarem certas regras comuns, seja na escola, seja em casa, seja na rua. O filme sublinha essa ambiguidade – até com certa redundância, com certo exagero visual e textual.

Ambiguidade que está carregada na própria fotografia. Pois é curioso como os elementos documentais se misturam ao jogo da ficção proposto por Clint, não apenas pelo uso de imagens de arquivo do então presidente francês François Hollande congratulando os três, mas pela própria materialidade de suas imagens encenadas. O fato dos três interpretarem eles mesmos, não sendo atores profissionais, contribui para a sensação de estranhamento geral que o filme transmite, pois é também a ideia de representação que o filme quer colocar em crise. 

Com o tempo, no contexto da filmografia de Clint Eastwood, Trem para Paris ficará condicionado ao reconhecimento de filme menor. Não sem razão, pois apesar de continuar a tradição da autocrítica recente que o cineasta vem fazendo sobre a representação do heroi clássico americano o filme já não tem a mesma força.

The 15:17 to Paris, de Clint Eastwood, EUA, 2017. Com Spencer Stone, Anthony Sadler, Alek Skarlatos, Jenna Fischer.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Trama Fantasma

Pedro Henrique Gomes
10 de março de 2018

É melhor dizer logo de cara que Trama Fantasma é o filme de melhor execução que Paul Thomas Anderson já realizou. A confusão de valores narrativos e temáticos que antes lhe afetavam, neste filme o enriquecem. Em primeiro lugar, Trama Fantasma assume os monstros de sua ficção ao abraçar de vez o realismo em um sentido muito evidente, qual seja, o de capturar e sublinhar certas características do tempo e do espaço sem as decorações narrativas que estavam lá em Magnólia, Embriagado de Amor, Sangue Negro e outros de seus filmes. Pois o realismo é justamente essa clareza com que as formas se apresentam, construindo e destruindo as emoções do espectador conforme avançam. Suas razões não são simplesmente técnicas (como em Boogie Nights), mas possuem agora um senso de proporção temporal e uma franja emocional muito sutil.

A epifania egocêntrica dá lugar a um olhar paciente e autocontido sem perder seu caráter sistemático de grande melodrama que o filme quer ser. É necessário encarar a imagem de maneira frontal e isto quer dizer limitar as interrupções visuais que sua câmera sempre pareceu desrespeitar em nome de virtuosismos.

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O próprio espaço constitui um entrave positivo, pois o filme se passa praticamente todo em locação interna – o que aumenta a pressão sob suas personagens, quase que exigindo delas nada menos que a vida em sacrifício, em troca da liberdade

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Em Trama Fantasma tudo é essencial para a partitura do filme, para seu desenvolvimento e fruição: o ritmo condensado de sua ação, a longa introdução ao cenário central do filme, sua atmosfera de ambientação tipicamente aristocrática (estamos na Inglaterra da metade do século XX), a mansão gigante que é tanto local de trabalho quanto morada do estilista Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e de sua irmã e gestora imperial Cyril (Lesley Manville). Mr. Woodcock constura para a realeza britânica e para nomes fortes da alta sociedade inglesa. O filme é a história de obsessões: do estilista por sua modelo e métodos de rotina intocáveis, da irmã pelo controle e pelo poder, da jovem Alma (Vicky Krieps) por Woodcock, de Paul Thomas Anderson pela depuração perfeccionista de seus motivos visuais que, neste filme como em nenhum outro, estão plenamente justificados.

Alma, trabalhando então como garçonete, recebe Woodcock e o serve no estabelecimento de beira de estrada. O flerte rapidamente se traduz num convite para que o estilista tire as medidas da moça. Ela vira sua modelo, sendo seu corpo o corpo ideal, figura que dá forma a sua criação artística. O tema da obsessão pela forma (forma do corpo, forma das formas) inicia. Alma logo está trabalhando para Woodcock, isto é, vendendo a mercadoria mais valiosa que há, sua força de trabalho. Na casa, o trabalho e o descanso se misturam até que as diferenças se apaguem (é a isto, afinal, que o título do filme alude; a linha fantasma), para depois voltarem marcantes e venenosas, salientando os aspectos do suspense que o filme também instaura.

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O ganha pão e o tesão acentuam o melodrama, embaralham a relação não só de Alma com Woodcock, mas dele com Cyril. Anderson acertou de vez a mão

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A trilha sonora é precisa ao criar a pressão atmosférica desejada e as músicas se repetem para reforçar o próprio looping da vida que se organiza dentro da mansão. Há, claro que há, um corte de classe subsumido na ação coordenada do filme. As senhoras que trabalham silenciosas e competentes e todas as outras personagens do filme, mulheres ou homens, cujo roteiro não deu mais que meia dúzia de frases, quando muito, demonstram isso. A obsessão do cineasta está muito bem focada naquela paixão pela forma e pelo contorno que se traduz em seus personagens, em especial na relação do Mr. Woodcock com Alma.

Obsessões são coisas naturais dos cineastas: Griffith, Eisenstein, Hitchcock, Preminger, Bergman, Tarkovski, Almodóvar, entre muitos outros. Falamos, isto parece claro, de um cineasta que se move calculadamente entre o rigorismo extremo (kubrickiano) e o ceticismo moderado (que ele herda, muito já se disse, de Robert Altman). A trama fantasma é resultado também dessa correlação de referências e estilos narrativos.

Há uma dificuldade (crítica e essencialmente dos críticos que escrevem sobre seus filmes), na nossa crítica bem como na estrangeira, em estabelecer os elementos formais que compõem sua obra sem cair em pedantismos ou divagações aleatórias sobre o “apuro formal”, a “elegância da montagem”, “a sagacidade do roteiro”, enfim, todo um repertório de afirmações que podem ser aplicadas a qualquer cineasta com traços mais ou menos recorrentes. Uma espécie de pesadelo descritivo ronda nossa escrita. Ademais insuficiente, essa confusão, se ela existe e não é somente coisa da minha cabeça, mantém inexplorada a relação controversa entre suas obsessões temáticas e suas obsessões estéticas. Há um paradoxal mal estar na leitura dos filmes de PTA e que Trama Fantasma ajuda a dissipar, pois trata-se, agora podemos dizer, de um filme de afirmação.

Talvez de fato ainda exista espaço para um pensamento conceitual sobre cinema nos próprios filmes. Da parte de Paul Thomas Anderson, este é sem dúvida o exemplar mais completo. Um filme realista que livra o cineasta da zona de sombras.

Phantom Thread, de Paul Thomas Anderson, EUA, 2017. Com Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville.

Pedro Henrique Gomes

Idrissa Ouedraogo: história e memória

Pedro Henrique Gomes
2 de março de 2018

É de uma precisão cortante a obra que nos legou o cineasta Idrissa Ouedraogo, morto em 18 de fevereiro. Nascido em Burkina Faso, Ouedraogo reinventou um cinema que ainda inventava a si próprio. Apesar de Burkina Faso ter iniciado uma política nacional voltada ao desenvolvimento das artes locais que permitiu bom desenvolvimento do cinema em comparação com os demais cinemas africanos, Idrissa Ouedraogo é um dos poucos cineastas do país que conseguiu fazer mais do que um ou dois filmes.

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Nesse cenário, ele teve sólida e reconhecida obra, nacional e internacionalmente, a partir dos anos 1980, quando começa a filmar

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Seus filmes tiveram penetração mundial e, mais importante, visibilidade nos países africanos. Ele instruiu, isto é, filmou a África para os africanos e nela encontrou também as suas obsessões temáticas e estéticas. São as tradições e as transições que a vida coloca diante dos indivíduos as questões que mais lhe interessavam filmar.

Eis um cineasta que vislumbrou uma linguagem particularmente africana (um debate frequente), diante de todas as dificuldades que atravessavam e persistem nas periferias cinematográficas no mundo. A África ocidental francófona subsaariana é, como foi sempre, um território em disputa pelos imaginários, pelas identidades nacionais, os processos de descolonização que explodiram nos anos 1960 e, finalmente, o neocolonialismo. Uma vez livres da invasão colonialista formal, era preciso reconstruir a memória, traçar uma história da memória.

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Idrissa as filmou (suas memórias pessoais) ao mesmo tempo em que fornecia as bases para a consolidação de outras, engendrou uma experiência visual que não se acomodou em ser simplesmente política como muitas vezes se exigiu dos cineastas e demais artistas africanos

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Ele reconheceu, eu diria até de forma pioneira, que a luta pela restituição das identidades nacionais, para além dos esforços de independência econômica, política e cultural, é travada também por imagens e por palavras, pois é preciso discutir a questão das línguas africanas por meio do cinema. Estas questões são muito bem colocadas pelo escritor queniano Ngugi Wa Thiong’o, em artigo publicado no livro Cinemas no Mundo – África: indústria, política e mercado, organizado pela Alessandro Meleiro (Ed. Escrituras).

Ouedraogo foi um cinéfilo e seus filmes mais conhecidos, Yaaba e Tilaï, são expoentes da coerência de seu estilo: um gosto profundo e um interesse claro por preencher o silêncio com a alma dos indivíduos que filmava. É uma relação espiritual e material, uma conexão entre a terra e os céus, os vivos e os mortos. E que não se acaba.

Neste sábado, 03, a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, programou uma homenagem ao cineasta, às 19h30, onde eu comentarei o legado de Ouedraogo após a exibição de Yaaba (1989), um de seus grandes filmes. Será uma sessão especial!