Voos Literários

Paulo Guedes e o ódio aos pobres

Flávia Cunha
2 de maio de 2021

Esta semana foi marcada por falas polêmicas do ministro da Economia, Paulo Guedes, em uma reunião do Conselho de Saúde Suplementar. No momento em que a pandemia se aproximava da marca oficial de 400 mil mortos no Brasil, o ministro julgou adequado falar que:

“Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 (anos). Não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar.”

Dias depois da reunião, que teve o conteúdo divulgado nas redes sociais, nova fala controversa de Paulo Guedes vinha à tona, dessa vez atacando o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). O ministro relatou, em tom de piada, que o filho do porteiro do seu prédio tirou zero em todas as provas e ainda assim conseguiu o financiamento. Mais adiante, durante o encontro, fez novas criticas:

“Deram bolsa para quem não tinha nenhuma capacidade. Botaram todo mundo… Exageraram.”

Como de costume, os argumentos de Paulo Guedes são carregados de preconceito, como na famosa fala sobre as empregadas domésticas irem à Disney. Esta declaração foi proferida antes mesmo da pandemia e da situação econômica do Brasil estar tão complicada como agora. Considero importante identificar as origens do pensamento de Paulo Guedes, que é seguido fervorosamente por Jair Bolsonaro, que briga com todos os ministros, menos com o “posto Ipiranga”.

Preconceito etário?

Em relação à fala de Guedes sobre o envelhecimento da população brasileira, poderíamos pensar ser esse um preconceito em relação à velhice, o etarismo. Indo por essa linha de raciocínio, a idade do próprio ministro tornaria o comentário dele um contrassenso. Já que, do alto dos seus 71 anos, ele faz parte da chamada terceira idade. 

De qualquer forma, para contrariar Paulo Guedes e sermos um povo cada vez mais longevo – desde que com saúde e renda suficiente para a sobrevivência – sugiro a leitura de Os segredos da longevidade Com o autoexplicativo subítulo “um verdadeiro manual para ser saudável e viver mais por meio da alimentação, da medicina preventiva e do equilíbrio do seu organismo”, a obra é de autoria do médico Edmond Saab.

Preconceito com a nova classe média?

Prosseguindo na investigação da origem do discurso preconceituoso de Guedes, podemos pensar em preconceito com a mobilidade social. Um das formas de se alcançar a ascensão social é através do ingresso dos trabalhadores no meio universitário. Para aprofundar esse tema, um livro interessante é A nova classe média brasileira – necessidades, anseios e valores, de Guilherme Caldas de Castro. 

Ódio aos mais pobres?

Mas as raízes do discurso de ódio de Paulo Guedes e de todo o governo Bolsonaro parecem ir além disso. Seria uma espécie de raiva dos pobres, por existirem e “darem trabalho” ao Estado, que precisa lidar com sua presença incômoda. Nesse sentido, a obra Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia me parece bastante adequada para entender este conceito e procurar fazer conexões com o pensamento bolsonarista. 

Em entrevista ao El País, a autora deste livro, a filósofa espanhola Adela Cortina, explica: 

Em sociedades como as nossas, organizadas em torno da ideia de contrato em qualquer das esferas sociais, o pobre […] não tem nada de interessante para oferecer em troca, e, portanto, não tem capacidade de contratar.”
 Aversão aos mais pobres

O termo aporofobia, que seria o medo ou aversão aos pobres, foi criada pela própria filósofa e  escolhido como a palavra do ano em 2017, pela Fundación del Español Urgente. Também foi incorporado, na mesma época, ao Diccionario de la lengua española. No meu ponto de vista, a aporofobia poderia ser um dos motivos da elite econômica brasileira ainda apoiar o governo Bolsonaro, mesmo com a escassez de vacinas contra a covid-19, por exemplo.

Manifestações da extrema direita

Não seria à toa, portanto, que neste feriado de 1º de maio manifestantes em possantes SUVs foram às ruas de diversas cidades brasileiras. Suas pautas, porém, eram diferentes das habituais reivindicações por mais emprego e renda, como seria o esperado no Dia do Trabalhador.  Esses protestos preferiram ser uma manifestação aberta de apoio a Bolsonaro. Além disso, defendiam o voto impresso nas eleições de 2022 e a volta da ditadura militar, entre outras pautas sem o menor sentido.

Apropriação dos protestos

Para além das manifestações em si, esse grupo parece estar satisfeito pela apropriação das manifestações do dia 1º de maio, que historicamente têm um protagonismo da esquerda brasileira e das centrais sindicais. Porém, é sempre bom lembrar que apoderar-se do Dia do Trabalhador e inverter a lógica das pautas de reivindicações não é novidade no Brasil.   O primeiro a fazer isso foi Getúlio Vargas, que trocou o nome do feriado para Dia do Trabalho. Também usou a simbolismo da data a favor de seu governo, criando o Ministério do Trabalho justamente neste dia, em 1930.

Até quando os mais pobres apoiarão Bolsonaro

Nesse sentido, a apropriação parece semelhante. Getúlio, no entanto, sempre buscou dar algo em troca do esvaziamento da luta dos trabalhadores. Como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943. Já o governo Bolsonaro dá pouca contrapartida aos mais pobres. Mesmo o auxílio emergencial, criado em função da pandemia, passou de R$ 600,00 para uma média de R$ 150,00. Dessa forma, resta saber até quando os eleitores das camadas mais empobrecidas da população ainda vão dar sustentação a Bolsonaro. A elite, pelo jeito, seguirá dando apoio, haja vista as patéticas manifestações deste final de semana.

Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebon / Agência Brasil

Voos Literários

Caio Fernando Abreu: Alteridade e Identidade

Flávia Cunha
25 de abril de 2021

Fãs de Caio Fernando Abreu (como eu) podem comemorar uma boa novidade. Trata-se de um novo livro com uma análise sobre contos do autor gaúcho. A obra, lançada recentemente, é Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade, de Mírian Gomes de Freitas. O livro é baseado em tese de doutorado da professora e escritora mineira, defendida no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.

O que esperar da publicação, um lançamento da Editora CRV

O conteúdo do livro de Mírian Gomes de Freitas enriquece, sem dúvida, a chamada fortuna crítica  – o estudo acadêmico – sobre Caio Fernando Abreu. Falecido em 1996, a obra de Caio segue com popularidade no mercado editorial, nas redes sociais e também no meio universitário. Os registros das primeiras pesquisas acadêmicas relacionadas ao escritor gaúcho datam ainda da década de 1990. É, portanto, evidente tratar-se de um legado amplo e de qualidade literária, além de abordar temáticas extremamente atuais. Os textos de Caio Fernando Abreu são presença frequente na coluna Voos Literários por esse motivo, como vocês podem ler (ou reler) aqui e aqui.

Fotos que dão leveza à leitura

Em primeiro lugar, gostaria de destacar a forma como a autora aborda duas das grandes inspirações literárias de Caio: Clarice Lispector e Hilda Hilst. Apesar da relação do autor gaúcho com essas duas grandes escritoras já ter sido objeto de estudo por parte de outros pesquisadores, Mírian consegue lançar questionamentos e observações interessantes para os leitores.

Além disso, a obra conta com diversas fotos do escritor, o que torna a edição prazerosa para os fãs, ao resgatar imagens de diferentes épocas de sua trajetória. Apesar de tratar-se de uma obra com cunho acadêmico, as fotografias dão uma certa leveza à leitura, tornando a análise mais interessante para um público não acostumado com teorias literárias.

Alteridade e Identidade

Na introdução de Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade, a pesquisadora explica como foi realizada a análise dos dois conceitos: 

“[…] o assunto da alteridade e da identidade é complexo e suscita questões que nos indagam como escapar do essencialismo e dos estereótipos para pensar o Outro. Então questionamos: de que forma podemos, hoje, compreender questões como a perda e a absorção de uma identidade pelos momentos de militância política, terror, torturas, prisões, exílio, trip contracultural, liberação e repressão sexual, AIDS, frequentemente evocados no contexto da literatura caioferdiana?”

Desenvolvimento do livro

Ao longo do texto, a autora analisa a influência da ditadura militar em narrativas do autor. O objeto são contos dos livros Inventário do ir-remediável e O ovo apunhalado. Também é abordada a desilusão de uma geração perante anos de autoritarismo em Morangos Mofados. Esta é, sem dúvida, a publicação de Caio F. mais conhecida do grande público. A pesquisadora também percorre as identidades fragmentadas presentes em Os dragões não conhecem o paraíso. O viés escolhido é a aparente contradição entre a busca do amor e a presença da Aids. Outro tema que merece destaque é as identidades queer no livro Ovelhas Negras. Uma das pertinentes referências bibliográficas utilizadas no estudo é Judith Butler, autora de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade e Relatar a si mesmo.

Judith Butler no Brasil

Aqui cabe um pequeno parêntese para quem não se lembra dos ataques à filósofa norte-americana, quando foi noticiada sua vinda ao Brasil em 2017.  Por ser uma das maiores referências em teoria queer, ela sofreu perseguições de conservadores. Uma petição chegou a conseguir 350 mil assinaturas em repúdio à presença de Butler em território brasileiro. O motivo, de acordo com essa visão distorcida, seria o fato de a filósofa ser propagadora da “ideologia de gênero”. O termo inventado por preconceituosos que não aceitam a diversidade sexual é uma mentira propagada até hoje pelo governo Bolsonaro e seus seguidores.

Por isso, no Brasil pandêmico e bolsonarista de 2021, é urgente falar-se sobre questões identitárias e fazer-se reflexões a respeito das consequências do autoritarismo a partir do golpe militar de 1964. Até nisso a obra de Caio Fernando Abreu mostra-se tristemente atual. Mas dar visibilidade para livros como esse é uma forma de resistência. Seguimos!  

Imagem: Arte sobre foto de Bob Wolfenson/ Editora CRV

 

Voos Literários

CPI da Pandemia: o fim do mito?

Flávia Cunha
18 de abril de 2021

A CPI da Pandemia pode desgastar ainda mais a imagem do presidente Jair Bolsonaro ao longo dos próximos meses. A investigação sobre omissões e erros do governo federal no combate à disseminação do coronavírus parece ser um trabalho bastante fácil para os parlamentares. Pois apesar de irritado com a instalação da CPI, Bolsonaro segue querendo “mitar” nas redes sociais e em declarações públicas. Sua crença, ainda inabalável, é de que sairá impune e com popularidade da crise sanitária e econômica gerada pela pandemia.

Nem é preciso investigar

De cara, percebemos que as provas da má conduta do presidente e de seu governo são evidentes. Aposta reiterada no anticientífico tratamento preventivo da covid. Falta de planejamento compra de vacinas em 2020.  Testagem baixíssima da população brasileira. Além disso, Bolsonaro desdenhou das mortes. Minimizou os riscos da doença.  Promoveu constantes aglomerações e questiona o uso de máscaras.

Para seus seguidores, todos esses atos são justificáveis e o capitão Messias segue sendo o mito. Porém, até quando terá essa força política e apoio popular?

Mito?

A origem do apelido de Bolsonaro vem mais da Internet do que do sentido original do termo. Nas redes sociais, “mitar” significa fazer comentários polêmicos e que chamam a atenção. É o que constantemente o presidente faz com a imprensa, por exemplo. Afinal, o mito não gosta de perguntas que considera inconvenientes. Porque, obviamente, um mito quer ser apenas idolatrado.

E para muitos de seus apoiadores, Bolsonaro é uma espécie de herói antissistema. Ao colocar como inimigos o STF, a mídia, a esquerda, os artistas, os professores e o Congresso Nacional, se transforma em mártir. Ao mesmo tempo, se blinda das críticas desses setores, pois é um perseguido por não aceitar o jogo de seus opositores. Mas o que transforma alguém em um herói? 

Coragem e falta de rancor

Para Joseph Campbell, mitologista e escritor norte-americano, o herói é “aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.” Na obra  O Poder dos Mitos, o especialista descreve em diferentes trechos a figura heróica, presente nas mitologias e no dia a dia contemporâneo:

“Há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.”

Por mais boa vontade que eu pudesse tentar ter com um líder incompetente como Bolsonaro, não consigo enxergar em sua atuação nada que o faça um herói ou “mito”. Sendo assim, minha esperança é que a CPI da Pandemia se encarregue de expor seus erros de forma eficiente, ao ponto de fazê-lo perder sua base fiel de seguidores. Contudo, como acontece com ídolos de diferentes segmentos, a emoção vai além da razão. E, caso não seja punido devidamente, ainda corremos o risco de uma reeleição.

#forabolsonaro

Imagem: Isac Nóbrega / Site Fotos Públicas 

Voos Literários

Profecia maldita: apenas ricos serem leitores

Flávia Cunha
11 de abril de 2021

“O consumo de livros não-didáticos é dividido em 50% entre as famílias com renda acima e abaixo de dez salários mínimos. Mas a tese da receita [federal] confirma a profecia autorrealizável, de que o livro no Brasil é para os ricos.”

A análise é de Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. As informações usadas têm como base a Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE), entre 2017 e 2018. A declaração ocorre após vir à tona, novamente, a possibilidade de os livros serem taxados no Brasil. É bom lembrar que, desde 1946, os livros são isentos de impostos. Essa decisão, que levou em conta o aspecto de incentivo à leitura, foi mantida em sucessivos governos e mesmo com mudanças constitucionais.

Profecia autorrealizável

O termo usado pelo presidente do SNEL é um conceito que surgiu na Sociologia, criado por Robert K. Merton. Conforme explica no livro Sociologia, teoria e estrutura:

“A profecia que se cumpre por si mesma é, inicialmente, uma definição falsa da situação que provoca uma nova conduta a qual, por sua vez, converte em verdadeiro o conceito originalmente falso. A validade especiosa da profecia que se cumpre por si mesma perpetua o reinado do erro, pois o ‘profeta’ mencionará o curso real dos acontecimentos como prova de que tinha razão desde o princípio.[…] Tais são as perversidades da lógica social.” 

Justificativa canalha

Ao argumentar que pobres não leem e, ao mesmo tempo nada fazer para mudar esse cenário, o governo contribui para que isso realmente ocorra.  Afinal, taxar os livros, o que acarretaria em um consequente reajuste de preços para os consumidores, certamente não é uma boa solução para a educação brasileira.

Além disso, já passou da hora de algo concreto ser feito pelo poder público para atenuar os baixos índices de leitura no país associados ao aumento da miséria e da fome.

Se houvesse real interesse, o governo federal poderia enfrentar essas questões de outras formas. Em termos tributários, uma possibilidade seria taxar grandes fortunas ou itens de luxo, como iates e helicópteros. Em relação à falta de hábito de leitura, um fato presente entre diferentes classes sociais, é necessário investimento em educação. No caso específico de pessoas em situação de vulnerabilidade, há opções viáveis, como programas de mediação de leitura e bibliotecas comunitárias. 

Um projeto político

Sendo assim, me parece evidente que a decisão de insistir na proposta de taxação de livros é política e simbólica. A destruição de um Brasil com mais leitores no futuro é de interesse de quem despreza a Cultura e valoriza a incapacidade de interpretação de texto.

Defenda o livro

A coluna Voos Literários já abordou esse assunto em agosto de 2020, quando a proposta de taxação de livros dos começou a ser ventilada pelo governo federal.

Imagem: Free Photos/Pixabay

Voos Literários

A morte de Jesus e o Brasil de 2021

Flávia Cunha
4 de abril de 2021
O que o que o conto de Eça de Queirós tem a ver com o Brasil de 2021.
A morte de Jesus, Eça de Queirós

“– Ide! – disse-lhes ele então – vós fazeis da casa da oração uma caverna de ladrões. E com a mão violenta empurrou-os largamente, para além das colunas. Eles iam, tomados de temor. […] Eu olhava, admirado. – Quem é este? – perguntei a João, um galileu, que estava junto dele. […]  – Não o conheces tu? É Jesus de Nazaré, profeta de Galileia!”

O trecho acima é uma releitura da famosa passagem do Novo Testamento sobre os vendilhões do templo. Escrito em 1870 pelo português Eça de Queirós, o conto foi posteriormente incluído na coletânea Prosas Bárbaras. Com uma narrativa em primeira pessoa, A Morte de Jesus nos é contada pelo ponto de vista de um capitão da polícia do templo de Jerusalém. Apesar de ser o responsável por manter a ordem, Eliziel se mostra favorável à expulsão, em um domingo de Páscoa, dos que queriam transformar um local de fé em mero espaço de comércio.

Jesus contra o dízimo?

Nesse sentido, o personagem da prosa de Eça de Queirós admira aquela figura que tomou uma atitude drástica. Apesar disso, permanece com um senso crítico apurado:

“Jesus de Nazaré era-me já simpático e íntimo, pelo sentimento e pela razão. Mas o que era aquele homem? Era um simples visionário? […] Vinha ele pregar contra o imposto e contra o dízimo? 

Um rebelde antissistema

De qualquer forma, a figura de Jesus, seja ela a partir da Bíblia ou de releituras literárias, nos revela uma trajetória repleta de atos de rebeldia e críticas ao sistema. Por isso, me parece até um contrassenso que seu nome seja usado por líderes religiosos que nem disfarçam seus interesses econômicos. Dos primórdios do Cristianismo até agora, pregações repletas de ódio e intolerância foram feitas, supostamente em nome da Cristo. No contexto do Brasil da pandemia, o que observamos é uma resistência religiosa à ideia do distanciamento social para evitar a propagação do coronavírus. 

Cultos em meio à pandemia

Desde março de 2020, há uma pressão para a retomada dos cultos religiosos no país. E nesse sábado de Aleluia, os vendilhões dos templos do século 21 ganharam este presente do ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques. A decisão, em caráter liminar, libera missas e cultos em território brasileiro, mesmo com a triste marca de 330 mil vítimas da covid-19. O ministro, indicado ao cargo por Jair Bolsonaro, atendeu pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. A Anajure contestava decretos estaduais e municipais com restrições à realização de celebrações religiosas. 

Aglomeração religiosa é essencial?

Conforme Kassio Nunes Marques, “ o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual.”

A fé que fortalece interesses

O que me parece evidente é que Jesus, o revolucionário, jamais estaria alinhado aos que preferem colocar seus fiéis em risco com o objetivo de manter engrenagens religiosas em funcionamento. Quem dera houvesse bom senso dos seguidores da Bíblia para enxergar que ser cristão vai muito além de frequentar templos ou igrejas.  

Imagem: Gerd Alttman/Pixabay

Voos Literários

E se a geração de 1968 for às ruas protestar contra Bolsonaro?

Flávia Cunha
28 de março de 2021

“Os jovens terão que ficar em casa e torcer pelos avós. Assim o jornalista José Trajano define a ideia, surgida nas redes sociais, de que a geração de 1968 vá às ruas protestar contra o governo Bolsonaro. A referência etária se deve ao fato de que as possíveis manifestações ocorreriam após a vacinação em massa dos idosos no Brasil. Confira a entrevista completa aqui

Protesto contra os desmandos bolsonaristas

A possibilidade de protestos promovidos por quem lutou contra a ditadura militar me parece um sopro de esperança. Além disso, seria muito simbólico que os atos contra a condução irresponsável e criminosa da pandemia pelo governo federal fossem promovidos pela faixa etária acima de 60 anos.

Valorização dos idosos

Primeiro, por demonstrar o quanto o preconceito etário precisa ser combatido. Muitos jovens, mesmo sendo progressistas, esquecem ou desvalorizam as lutas promovidas pela geração de 1968. Não apenas pelo que fizeram no passado, mas também por isso, os idosos de hoje devem ser tratados com dignidade.  E essa deve ser uma pauta prioritária da esquerda brasileira, hoje e sempre.

Eliminação dos “menos aptos”

Segundo, porque há um discurso eugenista em relação à velhice desde que a pandemia começou no Brasil. Um dos argumentos escrotos é de que os idosos deveriam estar fora do grupo prioritário de vacinação. O motivo? Não serem mais produtivos do ponto de vista econômico. Para agravar essa situação, diante do colapso do sistema de saúde brasileiro, há uma nova perseguição aos mais velhos. Existem lideranças políticas da extrema-direita defendendo que idosos não recebam tratamento médico. Por esse entendimento insano, a prioridade de atendimento seria apenas a vida dos mais jovens e “aptos”. A justificativa velada é, novamente, de que aposentados seriam um fardo para a sociedade. O que, sabemos, está longe de ser verdade. Na atualidade, muitas famílias estão sendo sustentadas por pensões e aposentadorias, após a escalada do desemprego e a precarização das relações de trabalho dos últimos anos.

Protestos observando protocolos

Sendo assim, há motivos de sobra para que a combativa geração de 1968 retorne ao seu papel de protagonismo político. Claro, desde que haja toda a segurança para evitar novas contaminações pelo coronavírus. A ressalva já foi feita pelo próprio Trajano, em suas redes sociais

“Quanto a ideia de sair às ruas depois de 20 dias após ter recebido a segunda dose, usando máscaras e tentando observar o máximo de distanciamento social possível, só o faremos se cientistas derem sinal verde. Caso contrário, esperaremos para por o bloco na rua e gritar GENOCIDA!”

Desinformação e preconceito etário

Após a divulgação da notícia sobre uma possível manifestação promovida pela geração de 1968, uma onda de desinformação começou a circular. Houve o entendimento, equivocado, que a referência seria às pessoas nascidas naquele ano, que estariam sendo chamadas de “velhas” (Novamente, observamos o preconceito etário, mesmo entre esquerdistas). 

Por isso, considero necessário recomendar algumas leituras para a compreensão de um ano tão importante historicamente. 1968 pode, inclusive, servir de inspiração para o sombrio momento atual.  

1968: O ano que não acabou, de Zuenir Ventura

 A obra é uma referência no Brasil sobre o assunto e teve uma edição especial em 2018. No prefácio dessa nova edição, o autor comenta:

“Apesar da resistência do atraso, o Brasil é, inegavelmente, melhor do que era em 1968. As mudanças de costumes e comportamentos foram tantas — e produzidas ao mesmo tempo — que estão sendo responsabilizadas pela atual onda de conservadorismo que grassa aqui e no mundo, ou seja, tenta-se culpar o avanço dos anos 1960 pelo retrocesso dos anos 2000.”

Zuenir Ventura também destaca o quanto a falta de vivência e conhecimento contribui para que a o regime militar brasileiro seja exaltado na atualidade:

“[…] há entre os que não viveram os tempos de ditadura militar a falsa impressão de que, graças à ordem armada, não existia corrupção como a que se verifica atualmente no país. Um episódio apenas para desfazer esse engano: em 1968, o governo chegou a instalar uma Comissão de Investigações para confiscar os bens adquiridos de maneira ilícita por militares e agregados. Como se não fosse suficiente, em 1970 o Coordenador da Oban (braço clandestino da repressão) propôs ao Comando do II Exército uma Oban específica contra a corrupção, que não era percebida pela sociedade porque uma implacável censura impedia que a imprensa noticiasse.” 

1968: Quando a Terra Tremeu, de Roberto Sander

Sinopse: 1968 é um ano-chave para a história mundial e brasileira, repleto de episódios emblemáticos, como o Maio Francês e a Primavera de Praga, na Europa, e a Passeata dos Cem Mil e a imposição do temido AI-5, num Brasil subjugado pelo regime militar. A abordagem do jornalista Roberto Sander neste livro, contudo, não se limita aos acontecimentos políticos que tão profundamente marcaram o período. […] m 1968 – Quando a Terra tremeu, Roberto Sander explora histórias saborosas e surpreendentes sobre ciência, moda, comportamento, esporte e cultura em geral, daquele que foi um ano ainda mais complexo, assombroso e sedutor do que se sabe.

1968: Eles só queriam mudar o mundo, de Regina Zappa e Ernesto Soto

Sinopse: Um verdadeiro almanaque ilustrado da geração que disse não ao conformismo Do movimento estudantil às trincheiras do Vietnã, das comunidades hippies às passeatas pelos direitos civis, esse livro narra os principais eventos políticos e culturais e as mudanças de comportamento da época, no Brasil e no mundo. Organizado mês a mês, traz histórias saborosas, personagens emblemáticos, as músicas mais tocadas, os filmes que deram o que falar naquele ano, além de depoimentos e entrevistas com personalidades que viveram intensamente o momento. E mais: moda, Beatles, feminismo, astrologia, arte, teatro, política, entre outros temas, em textos assinados por especialistas. 

Imagem:  Twitter/Reprodução

 

Voos Literários

Uma carta às vítimas da pandemia

Flávia Cunha
21 de março de 2021

Alerta de gatilho:

Se você está com dificuldades de lidar com a perda de uma pessoa querida em função da pandemia, procure o auxílio de um especialista. Existem muitos profissionais e entidades atendendo, de forma gratuita e online, desde março de 2020, em diferentes cidades brasileiras. A pandemia e suas consequências também são grandes desafios para a saúde mental.  Não fique só. Busque ajuda.

Um recado para quem partiu

Vocês, que até agora somam quase 300 mil vítimas da pandemia no Brasil, não cairão no esquecimento. Tenho certeza que as pessoas sensíveis que aqui ficaram não deixarão isso acontecer. Para que vocês sejam para sempre lembrados, foram criados memoriais virtuais. São realizadas homenagens. Pois quem ainda tem humanidade dentro de si não consegue deixar de fazer parte de um luto coletivo ainda sem prazo para acabar.

Homenagens

Confesso ser difícil escrever para quase 300 mil pessoas diferentes. Mas acho que um recado importante é garantir que todos, independente de suas trajetórias em vida, deixaram saudade. A cada dia, nós, os sobreviventes, lemos, com lágrimas nos olhos, os relatos comoventes de histórias de vidas interrompidas pela mesma doença. Por isso, choramos pelos nossos mortos e pelos mortos que não conhecemos em vida.

Empatia e solidariedade

Lamento dizer aos que não estão entre nós, que vivemos em um Brasil cada vez mais triste e desamparado. Assistimos, com ódio e impotência, um presidente irresponsável que debocha do sofrimento do povo. Um governante que não demonstra pesar por vocês, as vítimas dessa grande incompetência e falta de articulação por parte do Executivo federal. 

Um recado final

Mas a questão, sabemos, vai além da política. Precisamos dar apoio aos mais fragilizados pelo luto. Pois tantas perdas resultam em uma dor difícil de lidar. Essa carta é uma pequena homenagem a  vocês, que não já estão neste plano. E uma tentativa de consolo a quem sofre com isso. 

Com amor e respeito,

Flávia

PS: Deixo, abaixo, duas sugestões de leitura aos enlutados. Espero que sejam úteis.”

 

Escrever pode ser terapêutico

Para quem sofre com uma perda recente, uma forma de extravasar a dor é escrevendo. Uma inspiração literária para refletir sobre essa forma de lidar com o luto é a obra Cartas de amor aos mortos,  de Ava Dellaira. Laurel, a protagonista desta narrativa, é motivada, por uma professora, a criar textos para alguém que já se foi. A partir desta tarefa escolar, a personagem escreve para personalidades como Amy Winehouse e Kurt Cobain. Até entender que precisa expressar a dor pela perda de alguém muito mais próximo.

Luto infantil

Se o luto já é difícil para adultos, o processo é ainda mais sensível para crianças, que têm dificuldade para entender a finitude da vida. Muitas vezes, na tentativa de preservar a inocência dos pequenos, há um silenciamento sobre o assunto. Porém, ao não explicar o conceito de morte e não abordar a perda de um familiar, a reação infantil pode ser de medo, insegurança ou culpa. Para ajudar a falar sobre o assunto, sugiro o livro O vovô não vai voltar?, de Carmem Beatriz Neufeld e Aline Henriques Reis. Também abordamos o delicado tema do luto infantil no podcast Cantinho da Leitura, do Vós.

Imagem: Debby Hudson/Unsplash

 

Voos Literários

O STF e a guerra bolsonarista

Flávia Cunha
13 de março de 2021

O STF decidiu que ao governo federal coube basicamente envio de recursos e meios para a Saúde. Não se justifica esta crítica do ex-presidente Lula, que agora inicia uma campanha.”

Assim Jair Bolsonaro reagiu ao pronunciamento de Lula, nessa semana. O discurso ocorreu depois de decisão do ministro do STF, Edson Fachin, que anulou todas as condenações do ex-presidente pela Justiça Federal do Paraná relacionadas à operação Lava Jato. Durante sua fala, Lula fez duras críticas ao descaso do governo federal com a condução da pandemia no Brasil. Após o posicionamento do adversário político, Bolsonaro usou dois recursos para tentar se defender. Mentir e atacar o Supremo Tribunal Federal.  

Falácias repetidas

O argumento de “não poder fazer nada” porque foi impedido pelo STF é tão requentado que já teve nota oficial do Supremo publicada há quase dois meses. No texto, há o desmentido em relação a falas semelhantes do presidente da República e à viralização dessa alegação falsa nas redes sociais.

Mas Bolsonaro não parece se constranger em repetir o discurso baseado em uma inverdade, Afinal, o Supremo é um de seus alvos preferidos de ataques desde a campanha eleitoral de 2018. Ele parecia adivinhar que, ao chegar ao poder, tomaria decisões que seriam contestadas pelo Judiciário. Afinal, a função do Supremo é justamente a de fazer com que a Constituição brasileira seja cumprida. Saiba todas as funções detalhadas do STF aqui

Guerra sem fim com o Judiciário

Considero um fato curioso que Bolsonaro siga atacando o STF, ainda que indiretamente decisões do Supremo tenham o beneficiado. Um desses exemplos foi a rejeição do pedido de habeas corpus da defesa de Lula, em abril de 2018. A prisão do ex-presidente poderia ter sido adiada ou mesmo evitada, naquela época, se a decisão dos ministros do STF tivesse sido diferente. Mesmo assim, a lógica bolsonarista é a de manter um clima de guerra com o Judiciário como nenhum presidente fez desde o início da chamada Nova República, em 1985.

Ataques históricos ao Supremo

Porém, não é a primeira vez que a instância máxima do Judiciário brasileiro sofre perseguições desde a sua criação, em 1891. As ameaças ao STF ocorreram sempre que a democracia esteve ameaçada de alguma maneira, conforme alerta o jornalista Felipe Recondo no livro Tanques e Togas. A publicação é fruto de uma extensa pesquisa sobre o papel do Supremo durante a ditadura militar, conforme comenta o autor na introdução da obra:

“Os tanques estavam nas ruas. Os militares comandavam o Brasil em um clima típico de guerra fria. O ‘Comando da Revolução’ depusera um presidente legítimo. Garantias fundamentais foram suspensas. Prisões políticas, efetuadas. Cassações, tortura, censura, desaparecimentos e mortes marcaram a ditadura. A Constituição foi substituída por atos de exceção. Em meio a tudo isso encontrava-se o Supremo Tribunal Federal (stf). Um tribunal desconhecido da população. Fechado para a imprensa. Discreto. Uma corte que viu seu presidente, o ministro Ribeiro da Costa, legitimar e apoiar o golpe de Estado em 1964. Uma corte ameaçada, diluída e, cinco anos depois […] violada pela cassação de três de seus integrantes.”

Ameaças desde o início da República

Fazendo uma retrospectiva do histórico do STF, Felipe Recondo explica que as primeiras perseguições ocorreram ainda no século 19, no governo de Floriano Peixoto. Esse período histórico é marcado por uma grande instabilidade política após a renúncia de Deodoro da Fonseca, general que proclamou a República e que saiu do cargo ao tentar, sem êxito, fechar o Congresso Nacional.

O episódio relatado no trecho abaixo se refere a um pedido de habeas corpus feito pelo jurista Rui Barbosa. A medida visava tirar da prisão generais que se rebelaram contra a deposição de governadores leais a Deodoro da Fonseca.

“Naqueles primeiros anos da República, o tribunal sofreu as primeiras ameaças de sua história. Dias antes do julgamento do novo habeas corpus impetrado por Rui Barbosa, correu como verdadeira a notícia de que o presidente da República, Floriano Peixoto, teria se antecipado a uma improvável derrota e vaticinado: ‘Se os juízes do tribunal concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão’. O governo venceu com folga, e é muito provável que assim teria sido com ou sem ameaça.”

Um aparte necessário

Claro que não estou aqui atribuindo a mais completa perfeição ao Supremo Tribunal Federal e aos ministros que integram ou integraram a corte. Mas é preciso ficar muito claro que eventuais alterações nas competências do STF seriam possíveis apenas por meio de uma reforma constitucional. E, vale lembrar, esse pedido de mudança na Constituição relativo ao Judiciário não parece estar entre as prioridades de reformas de Bolsonaro, que prioriza pautas econômicas. 

Atitudes antidemocráticas

Sendo assim, a retórica bolsonarista beira mesmo a defesa do fim da democracia. Quem não se lembra das faixas criticando o STF e pedindo a volta da ditadura, em um protesto, em Brasília, em 2020? O reiterado e constante direcionamento de crítica e ódio ao Judiciário por parte da extrema-direita é, no mínimo, um motivo de alerta.  Não é à toa que depois da decisão favorável a Lula, maior adversário político do presidente da República, o ministro Edson Fachin foi alvo de ameaças. tendo sua segurança reforçada como medida preventiva. 

Um lembrete histórico

Como destaca Felipe Recondo:

“O caminho do Supremo Tribunal Federal brasileiro, desde os primeiros dias, foi vacilante, ao sabor de golpes e mudanças de regime, de ameaças e violências institucionais.”

Em tempo

Muito antes do bolsonarismo, eu pessoalmente tinha algumas críticas ao STF. Uma delas é ao rebuscado linguajar jurídico, que acaba fazendo com que a maioria da população tenha dificuldades em compreender as decisões e até as atribuições do Supremo. Por isso, indico aos interessados o livro O Judiciário ao Alcance de Todos – Noções Básicas de Juridiquês. Ele é disponibilizado gratuitamente pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pode ser acessado aqui.

Imagem: Felipe Sampaio/STF

Voos Literários

Por um feminismo sem preconceito etário

Flávia Cunha
7 de março de 2021

O preconceito etário ainda é uma realidade em pleno século 21 relacionado, principalmente, às mulheres.  A cantora Madonna, de 62 anos, é  um desses alvos, O motivo das criticas? Querer seguir com o mesmo comportamento,  associado à sensualidade, que teve desde o início de sua bem-sucedida carreira.

Mas já foi bem pior.  Vejamos esse texto do século 19:

 

“Uma jovem tem ilusões demais, é inexperiente demais e o sexo é cúmplice demais de seu amor, para que um rapaz possa sentir-se lisonjeado; ao passo que uma mulher conhece toda a extensão dos sacrifícios a serem feitos. Enquanto uma é arrastada pela curiosidade, por seduções estranhas às do amor, a outra obedece a um sentimento consciencioso. Uma cede, a outra escolhe.”

O trecho acima é do clássico A Mulher de Trinta de 30 Anos, de Honoré Balzac, escrito entre 1829 e 1842.  Nesta época, não era comum haver heroínas românticas com a idade mencionada no título da obra. Sendo assim, o escritor francês prestou uma homenagem ao elogiar a “maturidade” feminina. Ao longo dos tempos, seu nome ficou associado ao termo balzaquiana, para referir-se a mulheres com mais de três décadas de vida.

Visão datada

Se no século 19 Balzac foi considerado lisonjeiro por valorizar a beleza e qualidades das mulheres após ultrapassarem a casa dos 20 anos, nos dias atuais os argumentos do autor soam descabidos. Primeiro, por fazer comparações diminuindo as jovens para enaltecer as maduras. Também é curioso que o rapaz mencionado no texto como muito jovem tem ele mesmo… 30 anos! A partir disso, podemos perceber que a passagem do tempo é avaliada de forma diferente, de acordo com o gênero.

Velhice como defeito

Evidente que nos dias atuais o conceito de velhice mudou, até porque a expectativa de vida é maior. Porém, muitas mulheres jovens, e em desconstrução para temas como luta antirracista e a causa LGBTQUIA+, ainda falham no que diz respeito ao preconceito etário. Não é incomum ouvirmos entre grupos femininos com faixa etária entre 20 e 30 anos comentários depreciativos sobre os próprios corpos e comportamentos, associando-os a uma suposta velhice precoce.

Feminismo x Velhice

Além disso, há uma lacuna na luta feminista nos direitos das mulheres idosas e um silenciamento sobre a liberdade dos corpos na maturidade. Dentre as causas para esse mau comportamento feminino e feminista, estaria a de que jovens  acabam cedendo aos padrões sociais. O discurso da indústria da beleza associa juventude aos ideais de perfeição e consequente empoderamento corpóreo, relegando as mulheres mais velhas às sombras. Saiba mais a respeito dessa visão aqui.

Sabedoria que distancia da luta

No artigo Feminismo e Velhice, a professora de Antropologia Guita Grin Debert apresenta um argumento diferente. A especialista destaca que, ao longo dos últimos anos, houve uma mudança na percepção da velhice, buscando associá-la a fatores positivos. Sendo assim, poderia haver um entendimento entre as feministas de que as mulheres mais velhas deveriam ser sábias e, portanto, mais dóceis:

“A raiva e a fúria necessárias à luta ficam barradas quando o distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade próprias da sabedoria passam a ser uma característica da boa velhice, porque se impede aos velhos galvanizarem essas emoções e sentimentos na luta por mudanças sociais.”

Para saber mais sobre envelhecimento, sugiro a leitura do livro A Reinvenção da Velhice, da antropóloga Guita Grin Debert.

Reforçando a visão da antropóloga, considero que a raiva em mulheres mais velhas é julgada como uma atitude ranzinza. Já mulheres mais jovens seriam consideradas rebeldes, libertárias. Dessa forma, ainda é necessário que haja a conscientização das feministas para bandeiras associadas à maturidade e envelhecimento. A necessidade aumenta em um país como o Brasil, onde reformas como a da Previdência nos indicam um futuro muito preocupante para todos, incluindo as mulheres.

Avós da Razão

Além disso, em um feminismo realmente libertador e inclusivo, é preciso lutar pelo fim do preconceito etário. O ageismo, como também é chamado, é completamente descabido nos dias atuais. As Avós da Razão, youtubers idosas que alcançaram grande sucesso e visibilidade, respondem, neste vídeo, sobre o questionamento de uma fã sobre se aos 40 anos já pode considerar-se velha.

Imagens Site oficial Madonna/Reprodução

Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender a série Cidade Invisível (Parte 2)

Flávia Cunha
1 de março de 2021

Atenção: O texto contém spoilers do enredo da série Cidade Invisível

O apagamento dos povos indígenas da primeira temporada de Cidade Invisível foi abordado por aqui, na semana passada. Nessa segunda parte do texto, pretendo demonstrar o quanto a produção poderia ter sido ainda melhor se tivesse dado destaque à questão indígena. Para entendermos a importância dos povos originários para o folclore brasileiro, a Literatura pode ser um bom caminho. Afinal, as lendas e mitos, que são o principal destaque da série da Netflix, são muito presentes na cultura indígena. 

Preservação ambiental

Em primeiro lugar, é importante enfatizar como os relatos orais indígenas têm uma conexão evidente com a trama apresentada na série, por valorizarem a preservação da Natureza. Claro que, apesar de não haver ênfase à questão indígena, os personagens de Cidade Invisível acabam cumprindo a função de defensores da floresta. Mesmo o Boto, personagem folclórico mais conhecido por seduzir mulheres, aparece, no enredo, defendendo a permanência dos moradores na Vila Toré, localizada próxima à cidade do Rio de Janeiro, e alvo de especulação imobiliária.

Realidade mais ameaçadora

Porém, me parece que os roteiristas perderam uma boa chance de falar sobre as ameaças reais aos povos originários. Como sabemos, os indígenas são vítimas de evidente perseguição desde o início do governo Bolsonaro. Para fazer essa conexão, bastaria ter como centro de ação da série a Amazônia ou o Pantanal, onde a extração ilegal de madeira e o garimpo geram grandes conflitos. Essa contextualização à realidade brasileira poderia trazer ainda mais interesse internacional, já que muitos países estão atentos à preservação de aldeias e da cultura indígena. Imaginem o Curupira, por exemplo, interagindo com uma tribo indígena? 

Sugestões literárias

Enquanto seguimos no aguardo da segunda temporada de Cidade Invisível e na esperança de que haja mais protagonismo indígena, selecionamos algumas obras para melhor compreensão do folclore dos povos originários do Brasil.

Nós – Uma Antologia de Literatura Indígena

Dez autores de diferentes nações indígenas participam desta antologia. As histórias narradas nesta publicação vão da origem do mundo ao amor impossível. Os relatos demonstram a profundidade e diversidade de temas envolvidos na literatura de autoria indígena. Os autores são das nações Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Vozes Ancestrais – Dez Contos Indígenas 

A obra é de autoria do professor e escritor premiado Daniel Munduruku, pertencente à etnia indígena Munduruku. Nesta publicação, o autor coletou e transcreveu contos tradicionais de dez povos originários. O resultado é um apanhado de tradições e crenças, em histórias que falam sobre elementos da Natureza.

Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros

O livro foi escrito e ilustrado por Walde-mar de Andrade e Silva, a partir da vivência de 8 anos com indígenas da região do Xingu, no norte do Mato Grosso. No total, são 24 histórias, entre elas a que narra a lenda da Iara, uma das personagens presentes na série Cidade Invisível

Sehaypóri – O livro sagrado do povo saterê-mawé

A publicação é uma homenagem aos pajés dos saterê-mawê, povo indígena que habita a região do Rio Amazonas. O autor da obra, Yaguarê Yamã, é  professor, formado em Geografia em uma universidade de São Paulo, e atuante do movimento indígena no Amazonas. Sehaypóri foi selecionado pelo catálogo White Ravens para a Biblioteca de Munique e a Feira de Bolonha, um dos eventos de literatura infantojuvenil mais reconhecidos mundialmente.

Para conhecer outros títulos de literatura de autoria indígena, clique aqui. 

Imagens: Netflix/Divulgação