Voos Literários

Uma carta às vítimas da pandemia

Flávia Cunha
21 de março de 2021

Alerta de gatilho:

Se você está com dificuldades de lidar com a perda de uma pessoa querida em função da pandemia, procure o auxílio de um especialista. Existem muitos profissionais e entidades atendendo, de forma gratuita e online, desde março de 2020, em diferentes cidades brasileiras. A pandemia e suas consequências também são grandes desafios para a saúde mental.  Não fique só. Busque ajuda.

Um recado para quem partiu

Vocês, que até agora somam quase 300 mil vítimas da pandemia no Brasil, não cairão no esquecimento. Tenho certeza que as pessoas sensíveis que aqui ficaram não deixarão isso acontecer. Para que vocês sejam para sempre lembrados, foram criados memoriais virtuais. São realizadas homenagens. Pois quem ainda tem humanidade dentro de si não consegue deixar de fazer parte de um luto coletivo ainda sem prazo para acabar.

Homenagens

Confesso ser difícil escrever para quase 300 mil pessoas diferentes. Mas acho que um recado importante é garantir que todos, independente de suas trajetórias em vida, deixaram saudade. A cada dia, nós, os sobreviventes, lemos, com lágrimas nos olhos, os relatos comoventes de histórias de vidas interrompidas pela mesma doença. Por isso, choramos pelos nossos mortos e pelos mortos que não conhecemos em vida.

Empatia e solidariedade

Lamento dizer aos que não estão entre nós, que vivemos em um Brasil cada vez mais triste e desamparado. Assistimos, com ódio e impotência, um presidente irresponsável que debocha do sofrimento do povo. Um governante que não demonstra pesar por vocês, as vítimas dessa grande incompetência e falta de articulação por parte do Executivo federal. 

Um recado final

Mas a questão, sabemos, vai além da política. Precisamos dar apoio aos mais fragilizados pelo luto. Pois tantas perdas resultam em uma dor difícil de lidar. Essa carta é uma pequena homenagem a  vocês, que não já estão neste plano. E uma tentativa de consolo a quem sofre com isso. 

Com amor e respeito,

Flávia

PS: Deixo, abaixo, duas sugestões de leitura aos enlutados. Espero que sejam úteis.”

 

Escrever pode ser terapêutico

Para quem sofre com uma perda recente, uma forma de extravasar a dor é escrevendo. Uma inspiração literária para refletir sobre essa forma de lidar com o luto é a obra Cartas de amor aos mortos,  de Ava Dellaira. Laurel, a protagonista desta narrativa, é motivada, por uma professora, a criar textos para alguém que já se foi. A partir desta tarefa escolar, a personagem escreve para personalidades como Amy Winehouse e Kurt Cobain. Até entender que precisa expressar a dor pela perda de alguém muito mais próximo.

Luto infantil

Se o luto já é difícil para adultos, o processo é ainda mais sensível para crianças, que têm dificuldade para entender a finitude da vida. Muitas vezes, na tentativa de preservar a inocência dos pequenos, há um silenciamento sobre o assunto. Porém, ao não explicar o conceito de morte e não abordar a perda de um familiar, a reação infantil pode ser de medo, insegurança ou culpa. Para ajudar a falar sobre o assunto, sugiro o livro O vovô não vai voltar?, de Carmem Beatriz Neufeld e Aline Henriques Reis. Também abordamos o delicado tema do luto infantil no podcast Cantinho da Leitura, do Vós.

Imagem: Debby Hudson/Unsplash

 

Raquel Grabauska

Morte e vida

Raquel Grabauska
7 de setembro de 2018

Meu filho maior (sete anos) começou a sentir medo da morte. Da própria morte. Ouviu algo no noticiário do rádio do carro e ficou impressionado. Foi uma das poucas vezes em que me senti tão incapacitada para orientá-lo. Só consigui abraçar e dizer que é assim, mesmo.

As mortes precoces sempre rondaram minha família. Eu cresci com esse medo. Minha mãe era refugiada de guerra. Família dissipada, um tio morto em terras distantes, outro ficou por lá enquanto a família fugiu para sobreviver. Um outro tipo de morte.

Hoje, sete de setembro, é a data de nascimento da minha mãe. Antes de ter filho, meu maior medo era o da morte dela. Perdi o meu pai aos 17 anos – ele tinha 47. Quase a minha idade agora. É assustador pensar que daqui três anos terei vivido mais que meu pai. Já tenho mais tempo de vida sem pai do que com ele. Haja terapia. E nem com terapia.

Aniversário da minha mãe sem ela. Pelo quinto ano. O pai nos dava a sensação de estrutura. Quando ele se foi, a casa se desorganizou. Tivemos que reaprender tudo.

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Quando a mãe se foi, o coração se desorganizou
E de um jeito…
Não tem mais aquela sopinha no dia de gripe. Não tem mais aquele abraço nos dias em que se está pequeno demais pro tamanho do mundo. Não tem não mais aquele olhar dizendo que tudo vai dar certo

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Então meu filho, hoje não consigo conversar contigo sobre a morte. Vou tentar te falar do amor que fica. Da panqueca que aprendi a fazer. Das risadas e brincadeiras que minha mãe me ensinou. Da força para viver em dias não tão bons. A morte vai vir. Não quero pensar nisso. (Haja terapia). Quero ser tua mãe o maior tempo que eu puder. Quero que tua vida seja boa, pra te fazer tu sorrir ao lembrar quando não estiver mais aqui.

* Sobre a ilustração, pedi ao Benjamin que desenhasse sobre o medo que tem sentido. Ele não quis. Insisti um pouco, dizendo que se ele desenhasse, poderíamos olhar pro medo juntos. Ele não quis. Disse que queria desenhar uma coisa feliz. Que assim seja.

Raquel Grabauska

A dor de perder um filho

Raquel Grabauska
20 de outubro de 2017

Eu não gosto de me expor. Minhas redes sociais dizem muito pouco de mim. Uso bastante para o trabalho. Acho que fui a última pessoa a entrar no facebook. Sim, entrei até depois que tua vó!

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Mas hoje fiquei com vontade de contar uma história minha

Bem pessoal mesmo

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Eu nunca quis ter filhos. Acho que já contei um pouco disso aqui. Achava que perderia minha vida, que seria infeliz, que me sentiria roubada. Realmente, era a pior ideia do mundo. Não conseguia entender como as pessoas procriavam sem parar! Assustador.

Engravidei sem planejar, sem querer.  Continuei não querendo. Marido que dizia que também não queria, festejou como nunca. Ele, sim, queria muito. Mas com três meses de gravidez, perdemos o bebê, teve anencefalia. Aborto, sofrimento, desgaste emocional. E aí, tudo mudou. Quando o bebê foi, passei a querer a maternidade mais que qualquer coisa no mundo. Instinto, me sentia um bicho. Só pensava nisso. Só sentia essa vontade.

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Ao perder o bebê, me dei conta que o meu medo de ter um filho era justo esse: o de perder um filho

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Minha família tem esse histórico. Minhas duas avós perderam duas filhas muito jovens. Minha mãe também perdeu um filho. Meu irmão mais velho faleceu aos 43 anos, um a menos do que tenho hoje. Muito cedo. Não sei como minha mãe ainda viveu alguns anos. Ou melhor, sei sim, por amor a nós, seus outros dois filhos, e aos netos. Uma linda a minha mãe. Com toda a dor que sentia,  ainda distribuía amor pra nós.

Essa semana uma amiga do meu marido perdeu um filho. Quase da idade do nosso mais velho. Uma criança. Não sei o que houve. Meu marido me contou e ficamos chorando juntos. Não tem dor maior. Não tem.

Que façam todas as manhas. Que chamem mãe mil vezes. Que esparramem os brinquedos pela casa. Que estejam conosco.

Raquel Grabauska

A morte do lobo, da mãe e da Ofélia

Raquel Grabauska
22 de setembro de 2017

Li um post de uma pessoa querida no facebook. Ela falava sobre como tava sendo difícil para a filha de dois anos assimilar que o lenhador matava o lobo. Disse que a menininha passou o dia repetindo: o lenhador matou o lobo. Nossa, esse post me fez ter reflexões profundas!

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Lembrei que eu nunca conseguia ler a história da Branca de Neve pro meu filho mais velho pq a mãe dela morria

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Eu dava uma volta e não contava. Quando ele tinha dois anos e meio minha mãe morreu. Foi muito rápido, ela se foi em duas horas. Ele dormiu com vó e acordou sem ela. A partir desse dia eu busquei todos os livros que podia sobre o tema da morte para lermos juntos. Ele me fez amadurecer muito. Me fez encarar o meu medo. Dali em diante não tive muitos rodeios nas histórias e nas situações. Vou falando como as coisas são. Sobre a violência, por exemplo. Amparando sempre, dando carinho e amor. Mas falando…

Nessa época lemos um livro lindo, que aborda a morte de um jeito suave, O teatro de sombras da Ofélia. Nunca é assunto bom de falar, mas há formas mais suaves que nos ajudam a passar por isso…