Voos Literários

Precisamos de Elite da Tropa 3

Flávia Cunha
28 de fevereiro de 2020

Há muito se fala das ligações escusas de Jair Bolsonaro e de sua família com as milícias, mas agora o tema atingiu proporções difíceis de disfarçar, depois da morte do chefe miliciano Adriano da Nóbrega durante operação policial na Bahia, em circunstâncias ainda a serem esclarecidas. Adriano – ex-policial acusado de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro – tinha uma proximidade inegável com a família Bolsonaro. Familiares trabalharam para o então deputado estadual Flávio Bolsonaro, além de o filho 01 de Jair ter condecorado Adriano quando este ainda era policial. Depois, até fez visitas para ele na cadeia. 

Para completar esse mês de fevereiro com policiais fora da lei, explodiu um motim de PMs encapuzados no Ceará, levando a uma escalada de violência nas cidades cearenses. Até o momento da publicação desse texto, esses policiam seguiam paralisados, exigindo melhorias salariais. A questão é que quem atua na área da segurança pública é proibido por lei de fazer greve. Muitos especialistas consideram que essa onda de insurgência policial no Ceará foi promovida por PMs milicianos e adeptos do bolsonarismo. Policiais favoráveis ao uso da intimidação e de uma greve ilegal, em uma inversão do que se espera da corporação: a manutenção da ordem pública. Enquanto isso, o Exército e a Força Nacional foram chamados às pressas para dar conta da segurança da população, assustada diante de ações policiais que promoveram toques de recolher e ameaças para exigir o fechamento de lojas. Isso sem esquecer o episódio do senador licenciado Cid Gomes, baleado pelos policiais amotinados ao tentar entrar em um quartel com uma retroescavadeira. 

Essas notícias reais poderiam fazer parte do enredo de um livro semelhante a Elite da Tropa 2, focado na “banda podre” da polícia. A obra escrita pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, em coautoria com Rodrigo Pimentel, André Batista e Cláudio Ferraz, foi lançada em novembro de 2010, junto com a continuação de Tropa de Elite nos cinemas. No trecho a seguir, o personagem principal (um policial civil honesto) explica, através de uma conta no twitter, as relações entre milícias e política no Rio de Janeiro (e no Brasil):

“Estamos na merda porque policiais malpagos sobrevivem graças à insegurança. A degradação começa no bico e evolui até a milícia. about 16 minutes ago via web 

Havia, e ainda há, grupos de extermínio. Policiais tiravam graninha por fora matando quem atrapalhasse comerciantes e o sossego do bairro. about 15 minutes ago via web

Havia, e há, segurança privada informal. O bico. Policiais recebem pagamento de clientes voluntários. É ilegal, mas o serviço é decente. about 15 minutes ago via web 

Você jogaria a primeira pedra? PF e autoridades fingem que não veem por escrúpulo de reprimir ações decentes que compensam salários ruins. about 15 minutes ago via web 

Tem mais. Os governos toleram o bico porque, sem essa complementação, a demanda salarial levaria os policiais às ruas e o orçamento ao ralo. about 14 minutes ago via web

Entenderam? A segurança privada (informal e ilegal) financia o orçamento público da segurança. Maravilha! É o gato-orçamentário. Budget-cat. about 13 minutes ago via web

Sensacional: Brasil, paraíso da malandragem e do jeitinho. Você não olha o que faço e eu fecho os olhos pro que você faz. E está tudo certo. about 12 minutes ago via web 

Claro que sempre há os parasitas que recebem uma grana fixa ou um percentual do tráfico, das maquininhas caça-níqueis, do jogo do bicho. about 12 minutes ago via web 

Agora vem a melhor parte. O mar estava pra peixe, e os mais espertos avaliaram que era hora de virar tubarão e passar do varejo pro atacado. about 11 minutes ago via web 

Pronto, chegamos à máfia. Às milícias. Os espertos conclamaram os comparsas a organizar a bagunça e ganhar dinheiro feito gente grande. about 11 minutes ago via web 

Por que só os políticos ganham propina de empreiteiras, em licitações? Por que não cobrar taxa de tudo que tem valor, é útil ou gera renda? about 9 minutes ago via web 

Se o cara é policial, tem arma e sabe o caminho das pedras, por que não cobrar pelo direito de morar, vender, transportar, ter luz, gás, TV? about 8 minutes ago via web 

O Estado não usa força para cobrar impostos? Por que não fazer o mesmo com menos burocracia? Até ‘segurança’ os milicianos dariam em troca. about 7 minutes ago via web 

Começaram expulsando traficantes e os substituindo no domínio territorial e político das favelas e dos bairros pobres. Rico repele extorsão. about 7 minutes ago via web 

Os caras enriqueceram, se elegeram vereadores e deputados, absorveram parte da mão de obra do tráfico, explodiram delegacias e estão por aí. about 6 minutes ago via web 

Estão em toda parte: Zona Oeste e Sul, Baixada, São Gonçalo. Violentos e audaciosos. Matam, extorquem, torturam, humilham, sequestram. about 6 minutes ago via web 

Nas eleições, além de elegerem-se, diretamente, aliam-se a políticos corruptos e vendem acesso exclusivo a comunidades inteiras. about 4 minutes ago via web 

Com mandatos e aliados no coração do poder, ganharam relativa imunidade. […] about 2 minutes ago via web 

Pior é ver uns cretinos defendendo milícias. Não sei se são idiotas ou cúmplices, ou ambos. Hoje, andam meio envergonhados, os canalhas. about 1 minutes ago via web”

Certamente, um terceiro volume de Elite da Tropa nos ajudaria a entender melhor a conjuntura atual. Quem sabe, diante de todos esses episódios milicianos, os quatro autores, que têm muito conhecimento sobre corrupção policial e suas ligações com a política, não se animam a escrever um novo livro?

Confira uma cena de Tropa de Elite 2:

Imagem: Tropa de Elite 2/Divulgação

Voos Literários

Quatro destinos para “viajar” na literatura

Flávia Cunha
21 de fevereiro de 2020

Viajei nesse verão para os Estados Unidos, Espanha, Polônia e Coréia do Sul. Não pense o leitor que sou tão rica a ponto de estar indiferente à escalada da cotação do dólar. Estou inclusive mais próxima financeiramente do grupo econômico que o ministro da Economia, Paulo Guedes, recomendou que viajasse dentro do Brasil ao invés de ir para Exterior. (O Igor Natusch já discorreu sobre todo o preconceito de Guedes nesse texto.) O que me restou – ao menos por enquanto – foi conhecer um pouco sobre esses países a partir da leitura de quatro livros. Compartilho com vocês minhas impressões sobre as obras e detalhes que remetem aos espaços em que se passam as histórias, para vocês “viajarem” na literatura durante esse feriadão de Carnaval.

Destino 1: Barcelona, Espanha
Livro: O Verão das Bonecas mortas

Autor: Toni Hill (autor também de “Os Bons Suicidas” e “Os Amantes de Hiroshima”, volume 2 e 3 dessa trilogia policial)

Resumo comentado: Se a grana está curta para visitar a Espanha na vida real, aconselho a leitura desse livro, o primeiro de uma trilogia protagonizada pelo inspetor Héctor Salgado. Barcelona, suas ruas, restaurantes e alguns pontos turísticos ganham destaque nas páginas de O Verão das Bonecas Mortas. Apesar de ser um romance policial considerado convencional por críticos literários, o enredo conseguiu me surpreender. São duas investigações policiais apresentadas na obra: a morte de um adolescente em circunstâncias suspeitas e o desaparecimento da ex-mulher de Héctor. O primeiro caso é resolvido nesse livro. O paradeiro de Ruth só é revelado apenas no final da trilogia. (E envolve questões políticas da época da ditadura espanhola). 

Trecho selecionado: “Enquanto corria pela calçada da praia, ele contemplava o mar. A essas horas ficavam na praia apenas alguns retardatários, pequenos grupos que queriam usufruir o verão ao máximo e um ou outro banhista que tinha o mar quase só para si. As praias urbanas tinham alguma coisa diferente […] não eram de forma alguma paradisíacas nem relaxantes, mas uma passarela com música de discoteca na qual modelos esportistas exibiam um bronzeado intenso, seios salientes e abdome trabalhado nas academias. Às vezes dava a impressão de que elas eram selecionadas por um diretor de casting antes que pudessem aparecer na praia. Ou talvez fosse mais uma questão de autoexclusão: aquelas que não estavam de acordo com o estereótipo procuravam outro cenário mais afastado para expor o corpo flácido. Mas se ao entardecer a praia estava meio vazia, não se podia dizer o mesmo da calçada: casais com crianças, rapazes e garotas de bicicleta, corredores como ele, que saíam quando o sol permitia.”

Bônus de viagem: Héctor Salgado é argentino radicado na Espanha. Há diversas menções no texto a Buenos Aires e ao sotaque diferente do inspetor, considerado charmoso pelas mulheres.

Destino 2: Vermont, Nova Inglaterra (EUA)
Livro: A História Secreta

Autora: Donna Tartt (premiada posteriormente com o Pulitzer de Literatura)

Resumo Comentado: Bem-vindos a uma cidadezinha bucólica que abriga um tradicional campus universitário e seus alunos endinheirados. Por trás das aparências, escondem-se histórias de sexo e drogas dos personagens secundários. O núcleo central da narrativa é o mais interessante: Cinco alunos de uma pequena turma da disciplina de Grego Antigo e seu excêntrico professor resolvem admitir um sexto elemento nesse grupo fora do comum: Richard Tarten, que vem da ensolarada Califórnia para estudar na fictícia universidade Hampden. Mal sabe ele que acabará envolvido em um complicado caso de assassinato e relatos de orgias dionísicas, em meio ao aprendizado de grego arcaico e debates sobre filosofia. O enredo é uma espécie de romance policial às avessas, pois nas primeira páginas já sabemos qual dos colegas da turma será assassinado e por quem. Além disso, é um romance bem visual, com descrições sobre a região aonde se passa a história, sem excessos que possam comprometer o ritmo de leitura. O livro foi lançado na década de 90, antes da autora ter se consagrado mundialmente com o romance O Pintassilgo, que pretendo abordar aqui na coluna em breve.

Trecho selecionado:  “Os primeiros dias antes do início das aulas passei sozinho, em meu quarto branco, nos prados brilhantes de Hampden. E fui feliz naqueles primeiros dias, sério mesmo, como nunca havia sido antes, perambulando como um sonâmbulo, tonto e embriagado com tanta beleza. Um grupo de moças de faces coradas jogando futebol, os rabos-de-cavalo esvoaçantes, os gritos e risadas cruzando débeis os campos aveludados, crepusculares. As árvores carregadas de maçãs, ramos pensos, maçãs caídas, vermelhas na grama do chão, e o cheiro doce e forte que exalavam enquanto apodreciam, atraindo enxames de vespas a zumbir em torno delas. A torre do relógio, em Commons: tijolos cobertos de hera, torre branca, fascinante na distância nevoenta. O choque de ver pela primeira vez uma bétula à noite, erguendo-se nas trevas fria e esguia como um espectro. E as noites, maiores do que imaginava: negras e tempestuosas e enormes, desordenadas e turbulentas de estrelas.”

Bônus de viagem: O livro também traz um relato sobre a viagem de dois personagens a Itália, além de comentários do protagonista sobre a Califórnia.

Destino 3: Seul, Coréia do Sul
Livro: A Vegetariana

Autora: Han Kang (vencedora em 2016 do importante prêmio internacional Man Booker) 

Resumo comentado: Aviso aos leitores que a viagem a Coréia do Sul a partir do livro A Vegetariana não é feliz. O livro é curto, pode ser lido em poucos dias, mas nem por isso a leitura é menos intensa e triste. O enredo é feito a partir de três pontos de vista, tendo como centro a personagem Yeonghye, que decide parar de comer carne depois de ter sonhos perturbadores. A narração é feita a partir dos relatos do marido, do cunhado e da irmã da protagonista, mostrando como a mudança de hábitos alimentares dela interfere de uma forma inimaginável em sua própria vida e na trajetória de seus familiares. É uma obra sobre os limites da sanidade mental e reflexões a respeito de violência doméstica, traições, maus-tratos na infância e seus possíveis reflexos na vida adulta. 

Trecho selecionado: “A cidadezinha vai ficando para trás e, ladeando a estrada, começam a despontar os bosques esverdeados de fins de junho. As árvores espessas cobertas pela violenta torrente parecem animais gigantes reprimindo seu uivo. Ao aproximar-se do parque florestal de Chukseong, o caminho se estreita e ganha cada vez mais curvas. O bosque vai ficando mais próximo e faz vibrar seu corpo molhado. Onde estará a montanha na qual sua irmã mais nova, Yeonghye, foi encontrada, três meses antes? […] Disseram-lhe que Yeonghye tinha desaparecido do sanatório no horário do passeio ao ar livre. [..] Quando um paciente desaparece, uma das hipóteses é que ele tenha descido pela montanha até a saída de Maseok, ou então que tenha se embrenhado pela floresta.”

Bônus de viagem: Seul tem um dos melhores transportes públicos do mundo, com destaque para seu eficiente sistema de metrô. No trecho que selecionei, a irmã da protagonista viaja de ônibus para a clínica psiquiátrica onde Yeonghye está internada, demonstrando o quanto o local é afastado da capital coreana.

Destino 4:  Vale de K?odzko, Polônia
Livro: Sobre Os Ossos dos Mortos

Autora: Olga Tokarczuk (Vencedora do Nobel de Literatura em 2018)

Local principal da história: Um pequeno vilarejo na Polônia

Resumo comentado:  Se você aí é do time que não gosta de verão, vai se deliciar com as descrições das paisagens geladas de Lufcug, um pequeno vilarejo no  vale de K?odzko, nas proximidades da fronteira com a República Tcheca. A narrativa em primeira pessoa é feita por Janina, uma idosa defensora dos animais, apaixonada por astrologia e que exerceu uma série de profissões ao longo da vida. Nos dias atuais, é zeladora de casas vizinhas durante o inverno e ajuda um amigo a fazer versões para o polônes de poemas do inglês William Blake (é dele a inspiração para o título do livro: “O Arado Sobre os Ossos dos Mortos”. Alguns críticos literários descrevem o enredo como um thriller ecológico, ao mostrar uma série de assassinatos de pessoas que têm em comum o fato de promoverem caçadas na floresta do vilarejo. Janina tem a suspeita de que os próprios animais se revoltaram contra os humanos e resolveram se vingar. Mas, ao longo da narrativa, percebemos que ela não é uma narradora confiável, o que torna o relato ainda mais interessante e vai além de uma história policial. Outro ponto interessante é que a protagonista revela o profundo descaso dos homens com mulheres mais velhas, mostrando situações de machismo, invisibilidade feminina na terceira idade e solidão. 

Trecho selecionado: “Não se pode estranhar o fato de que as pessoas abandonam o planalto no inverno. É difícil morar aqui entre os meses de outubro e abril, tenho experiência nesse quesito. Todos os anos cai uma enorme quantidade de neve, que o vento esculpe  formando montes e dunas. As recentes mudanças climáticas aqueceram tudo, menos o nosso planalto. Aliás, tem acontecido exatamente o contrário, especialmente em fevereiro, quando cai ainda mais neve e ela demora muito para derreter. Algumas vezes durante o inverno, a temperatura chega a atingir vinte graus negativos.”

Bônus de viagem: Durante a história, Janina faz reminiscências de quando trabalhou na Sìria e na Líbia como engenheira. Em determinado ponto da história, ela conta sua interação com um médico, Ali, que trabalha na cidade polonesa, depois de ter atendido tribos nômades no deserto sírio. 

Fotos: Bancos de imagem/Reprodução

Voos Literários

Os proibidões de Rondônia

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2020

A primeira vez que vi circulando na Internet uma lista  dos livros que seriam retirados das bibliotecas escolares de Rondônia por determinação da Secretaria Estadual de Educação, me chamou a atenção a pluralidade dos autores censurados. Machado de Assis, Mario de Andrade, Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu… As diversas matérias que li a respeito do assunto não deixavam muito claro o motivo exato que levaria o governo de Rondônia a considerar as obras inadequadas. Uma das possibilidades aventadas pela própria secretaria estadual de educação era de que o conteúdo dos livros estava sob suspeita de conter palavrões. 

A determinação não chegou a valer, mas na ausência de ampla divulgação como aconteceu, provavelmente a retirada dos livros ocorresse sem grande alarde.  Vale lembrar que o governador Marcos José Rocha dos Santos foi eleito pelo PSL em 2018, o então partido do presidente Jair Bolsonaro. Coronel Marcos Rocha é conhecido por seu conservadorismo e religiosidade. A Secretaria de Educação agora nega a tentativa de proibição.

Mas vamos à lista e os possíveis motivos para que os livros fossem eventualmente censurados. Separei por autores, porque Rubem Fonseca, por exemplo, teve várias de suas obras consideradas sob “suspeita.”

Caio Fernando Abreu

A obra em questão é O Melhor de Caio Fernando Abreu, uma coletânea com contos e crônicas do autor, que mesclou em seus textos a temáticas queer e críticas políticas. Nem precisa ter palavrão, só o fato do escritor ser homossexual e ter morrido de HIV já seria o suficiente para despertar a desconfiança dos conservadores. Não li essa coletânea mas quem acompanha a coluna sabe que eu sou super fã de Caio F. (Aqui tem o texto mais recente que escrevi sobre o autor).

Mario de Andrade

Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter é um dos clássicos da literatura brasileira. Um dos expoentes do Modernismo Brasileiro, Macunaíma na época de sua publicação foi criticado pelo fato de ter exaltado um anti-herói. Até onde eu me lembre das leituras que fiz na faculdade de Letras da UFRGS, a obra não contém“palavras de baixo calão. Meu palpite para ter ido parar na lista dos proibidões é o subtítulo do livro, que pode ter despertado a ideia de algo subversivo.

Ferreira Gullar

Um dos grandes poetas brasileiros, ficou conhecido (e reconhecido)  pelos aspectos sociais de sua obra. O livro Poemas Escolhidos reúne textos justamente com essa temática. Comunista e exilado durante a ditadura militar no Brasil, Ferreira Gullar deu uma guinada para a direita, nos anos 90, mantendo-se nesse espectro político até falecer, em 2016. Essa mudança de pensamento ideológico do poeta não deve ter sido acompanhada pela secretaria de Educação de Rondônia, que deve ter considerado a obra esquerdista.

Carlos Heitor Cony 

O escritor e jornalista, falecido em 2018, teve 8 livros na lista dos que seriam censurados: A Volta Por Cima, O Irmão Que Tu Me Deste, O Ventre, Rosa Vegetal de Sangue, O Mistério da Moto de Cristal (em parceria com Ana Lee), Mil e Uma Noites. O Harém Das Bananeiras e O Ato e o Fato. Cony chegou a apoiar o golpe militar em 1964 e arrependeu-se, tornando-se um oponente aberto ao regime, tendo sido preso por pelo menos seis vezes, acusado de subversão. Da lista, li apenas O Ventre, que é um soco no estômago de tão forte e duro, contendo um enredo um pouco escatológico. Chama a atenção na lista o livro O Mistério da Moto de Cristal que é uma obra do gênero mistério destinado ao público jovem. Deve ter entrado na mira dos censores do século 21 apenas pelo fato de ter sido escrita por alguém que foi reconhecidamente contra a ditadura militar. 

Aurélio Buarque de Hollanda

O linguista, professor e tradutor citado na lista é ninguém menos que o responsável pelo dicionário de língua portuguesa mais popular no Brasil, o Aurélio (também com a versão para estudantes, conhecida como Aurelinho). O livro colocado como suspeito é Mar de Histórias, uma antologia de contos da literatura universal. Chama a atenção o fato de haver a observação de que “todos os volumes” deveriam ser retirados das bibliotecas. A antologia tem cinco volumes e me parece pouco provável que todos contivessem conteúdo inadequado para os estudantes. Meu palpite é que o sobrenome Buarque ligou o radar antiesquerda. Ao contrário do que muitos acreditam, Aurélio era apenas um primo distante do pai de Chico Buarque, não sendo parente próximo do famoso compositor.

Carlos Nascimento Silva

O premiado escritor é professor universitário aposentado e mestre em Literatura. Seu livro apontado como inadequado é A Menina de Cá, com contos que abordam o desencanto afetivo em relacionamentos amorosos. Pode ter sido visto com uma crítica à instituição do casamento. Se formos levar em conta a trajetória bibliográfica de Nascimento Silva, escreveu dois livros com temática política: Cabra Cega, em que aborda sem maniqueísmos o período da ditadura militar no Brasil. e Desengano (reconhecido como melhor romance pelo Jabuti, o maior prêmio literário do país), com enredo que tem como pano de fundo o período que vai dos presidentes Getúlio Vargas até João Goulart. 

Rubem Fonseca

O campeão na lista dos proibidões de Rondônia é considerado um dos maiores escritores brasileiros em atividade. Pontuou 19 em uma lista com um total de 43 livros: Diário De Um Fescenino, Bufo& Spallanzani, O Melhor De Rubem Fonseca, Secreção Excreções E Desatinos, Os Prisioneiros, Agosto, Amálgama, O Doente Moliére, A Coleira Do Cão, O Seminarista, Histórias Curtas, Histórias De Amor, O Buraco Na Parede, Feliz Ano Novo, Calibre 22, Mandrake A Bíblia E A Bengala, Lucia Mccartney, Romance Negro E Outras Histórias. Algumas de suas obras contém enredos com violência e sexo, mas está longe de ser um escritor pornográfico. Rubem Fonseca também ficou conhecido por mesclar fatos históricos com ficção, como no livro Agosto. Demonstrando o quanto essa tentativa de censura de 2020 conversa com os censores do regime militar, Feliz Ano Novo também foi proibido na década de 1970, por conter “sexo, violência e conflito de classes”.

Ivan Rubino Fernandes

Ivan é filho do célebre escritor e cartunista Millôr Fernandes, autor do Guia Millôr Da História Do Brasil. Suponho que Ivan Rubino Fernandes esteja na lista porque ele é o herdeiro mencionado na ficha técnica desse livro. Millôr foi um fervoroso combatente da ditadura militar, tendo sido um dos fundadores do jornal O Pasquim. O livro considerado inadequado é uma obra que traça um panorama da história do Brasil na visão do escritor, de Pedro Álvares Cabral ao governo Lula, também abordando temas como corrupção, miséria e cidadania. 

Nelson Rodrigues

O polêmico escritor e cronista sempre causou desconforto entre os mais conservadores, com seus textos recheados de menções a sexo e infidelidades. O curioso é que Nelson Rodrigues era um reacionário e defensor da ditadura , até ter seu filho torturado pelos militares. Na lista, estão O Beijo no Asfalto (o beijo entre dois homens deve ter incomodado os responsáveis pela tentativa de censura), O Melhor de Nelson Rodrigues e A Vida Como Ela É, uma coletânea de textos que com muitas histórias de traições.  A graphic novel Vestido de Noiva, baseada na obra de Nelson Rodrigues, também foi apontada como inadequada e consta na lista.

Sonia Rodrigues

A filha de Nelson Rodrigues também está na famigerada lista, por seu romance Estrangeira. Doutora em literatura, escreveu até o momento 28 livros de ficção, grande parte voltados ao público jovem. Em Estrangeira, o enredo é feito a partir dos relatos em um blog fechado ao acesso público, em que a autora tem um único leitor: seu ex-namorado. Minha suposição é que as dúvidas e angústias sobre relacionamentos podem ter desagradado os conservadores no poder em Rondônia.

Rosa Amanda Strausz

Rosa é jornalista e escritora e teve seu nome citado por ser a organizadora da obra 13 dos Melhores Contos de Amor da Literatura Brasileira. A obra é uma coletânea com autores como Machado de Assis, Luis Fernando Verissimo, Marina Colasanti, Caio Fernando Abreu e Carlos Drummond de Andrade. Minha aposta é que alguns contos podem ter alguma dose de erotismo. Ou então, o número 13 e a capa vermelha despertaram a ira dos antipetistas. (Contém ironia. Ou não. Vai saber…)

Machado de Assis

Acho que esse grande escritor brasileiro dispensa apresentações. Me causou muita surpresa ele ter sido mencionado, pois seus romances e contos são uma unanimidade no meio acadêmico e fora dele. Memórias Póstumas de Brás Cubas inovou ao apresentar um narrador além-morte, que interage com os leitores e faz comentários sobre sua vida. É considerado um marco na literatura nacional e inaugura o movimento do Realismo literário no Brasil. Meu palpite para estar na lista: o narrador já estar morto (inadequado do ponto de vista religioso), o tom pessimista (“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”) ou o fato de ter Cuba no nome. (Na época da ditadura militar, casos semelhantes ocorreram.)

Franz Kafka

Um dos poucos estrangeiros entre tantos brasileiros, Kafka teve sua obra O Castelo no radar do governo de Rondônia. É um romance longo, de cerca de 400 páginas, e de difícil leitura e interpretação, como outras obras kafkanianas. Aborda a história de K., agrimensor contratado para trabalhar no tal castelo do título por um conde. O personagem sempre é impedido de entrar no local pelos motivos mais diversos. Entre muitas possibilidades de leitura, está a de uma crítica à burocracia. 

Euclides da Cunha

Outro clássico considerado inadequado em Rondônia, Os Sertões narra a luta entre o Exército e os seguidores de Antonio Conselheiro, em Canudos, interior da Bahia. Jornalista que acompanhava como repórter a batalha, Euclides da Cunha destacou a valentia dos sertanejos. (Em uma das minhas colunas,  faço algumas comparações do livro com o filme Bacurau. Confira aqui.) Talvez tenha sido alvo da tentativa de proibição por se mostrar favorável aos que lutavam contra o Exército, ainda que no século 19.

Edgar Allan Poe

O livro Contos De Terror De Mistério E De Morte é uma coletânea da obra desse escritor renomado mundialmente e considerado pai do gênero policial. O livro ainda inclui o poema O Corvo, uma das obras-primas do autor norte-americano. Imagino que a qualidade do texto não tenha entrado na análise. A temática ligada ao extraordinário e ao além-morte pode ter sido contrária à visão religiosa dos ocupantes do governo.

Rubem Alves

Por último, mas não menos relevante nessa abordagem sobre tentativa de censura, está a observação que consta no final da lista: “Todos os livros do Rubem Alves devem ser recolhidos”. Por um lado, não me causa espanto a perseguição a Rubem Alves, por ter sido um dos fundadores da Teologia da Libertação e também por ter seu nome ao lado de Paulo Freire na pedagogia brasileira. Porém, Rubem Alves escreveu muitos livros para o público infantojuvenil, o que tornaria natural a presença de livros de sua autoria em bibliotecas escolares. A arbitrariedade da observação de que “todos” os livros deveriam ser recolhidos transparece a clara tentativa de censura a um autor renomado mundialmente.

Como diria Rubem Alves:

“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.”

Fiquemos atentos às tentativas de censura. Com a desculpa de proteção, querem mesmo é tirar a liberdade e o senso crítico das crianças e adolescentes. Não passarão!!

Imagem: Michal Jarmoluk/Pixabay 

 

 

 

 

   

Voos Literários

Abstinência é a solução?

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2020
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lançam a Campanha Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência

“A  juventude é a grande vítima da repressão à  busca do prazer, […] na liberação fisiológica do amor e do sexo.”

Roberto Freire, em Tesão Não Há Solução,  um sucesso literário do fim dos anos 80

A campanha de abstinência sexual para evitar a gravidez na adolescência proposta pelo governo federal é considerada ineficaz por especialistas. Em princípio, a ministra Damares Alves vinha se posicionando publicamente defendendo o tema. Depois, recuou um pouco nas declarações. Apesar de Damares ter demonstrado estar mais reticente em relação a publicizar a abstinência como uma política governamental, o presidente Jair Bolsonaro não mediu palavras para defender a ministra

“Quando ela fala em abstinência sexual, esculhambam ela. Quem quer? Eu tenho uma filha de nove anos, você acha que eu quero minha filha grávida no ano que vem? Não tem cabimento isso aí. É essa a campanha que ela faz.”

O que Bolsonaro não fala é que políticas públicas que pregam a abstinência sexual como uma forma de evitar que adolescentes engravidem já foram adotadas em outros países, sem sucesso. Tanto que a Defensoria Pública da União recomendou que seja suspensa a elaboração do Plano Nacional de Risco Sexual Precoce. Especialistas alertar que sugerir a abstinência sexual entre jovens não apenas é ineficaz como método contraceptivo mas também acaba gerando aumento de infecções sexualmente transmissíveis nessa faixa etária. 

Além disso, o presidente aproveita um assunto de saúde pública – a gravidez precoce – para atribuir à esquerda e ao PT a responsabilidade pela sexualização excessiva de jovens na sociedade brasileira:

“Essa liberdade que pregaram ao longo (do governo) do PT todo, que vale tudo, se glamoriza certos comportamentos que um chefe de família não concorda, chega a esse ponto, uma depravação total.”

A “depravação total” citada pelo presidente provavelmente se refere a meninas fazendo sexo. Ninguém em sã consciência defende que pré-adolescentes de 11, 12 anos façam sexo. Porém, seria ingenuidade (e alienação) considerar que adolescentes de 16 anos – que já podem votar, por exemplo – não tenham autonomia sobre os próprios corpos. A repressão sexual apontada pelo psicanalista Roberto Freire no trecho que abriu esse texto explica muito do que pretende o atual governo.

Dentro dessa visão, meninas vestem rosa e são virgens, claro. E os meninos? São viris e devem propor sexo para essas mesmas adolescentes, que devem recusar, por serem virtuosas. Porém, se formos seguir a lógica patriarcal e conservadora proposta pelos bolsonaristas, como as adolescentes terão autoridade dentro de um relacionamento para dizer “não” e serem respeitadas? Ou, então, caso resolvam “cair em tentação” e fazerem sexo, como vão se contrapor ao namorado que não quer usar camisinha? Sinto informar a ministra Damares, mas meninas empoderadas e cheias de autoestima assim precisariam ser… feministas! Pois apenas em uma relação com igualdade entre os sexos, a adolescente se sentiria confortável para tomar essas atitudes. 

CAMPANHA DO GOVERNO

Mas o que propõe a campanha lançada em conjunto pelo ministério da Família e pelo ministério da Saúde? Com o título : “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois”, o projeto não cita em nenhum momento a abstinência como forma de evitar que adolescentes engravidem. Entre as medidas apontadas, está o diálogo com a família e a busca por orientações (e contraceptivos) em unidades de saúde. Porém, a campanha que prega a abstinência sexual ainda estaria em elaboração na pasta de Damares. Seria o Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual, já criticado pela Defensoria Pública da União.  .

SEXO COM RESPONSABILIDADE

O que não passa pela cabeça dos conservadores, é que possa haver sexo com amor e respeito na adolescência. E desde que os jovens sejam bem orientados (com educação sexual em sala de aula, por exemplo), a gravidez será evitada com o uso dos contraceptivos corretos, assim como as ISTs.  

Como diria o libertário Roberto Freire:

“Uma vez livre das repressões sociais e políticas através do sexo, os jovens descobrem que a sensualidade é a mais clara e intensa, a mais verdadeira e real sensação de estar vivo.”

Concordo com a Damares (e até com o Bolsonaro, vejam só), que a gravidez na adolescência precisa ser evitada. Em geral,  meninas que engravidam nessa idade acabam abandonando os estudos e tendo mais dificuldade para conseguir emprego e renda. Porém, demonizar o sexo, principalmente para mulheres, é uma das armas mais antigas das religiões. Quando isso se mistura com política, o resultado já foi descrito por Freire: 

“Vivendo em sistemas políticos autoritários, aos quais tanto religião como ciência estão ligados, associados e dependentes, a visão trágica da existência é um dos suportes ideológicos mais poderosos e úteis para a sua manutenção.”

E, em tempo, quando Roberto Freire refere-se à que “Sem tesão, não há solução”, ele não prega a depravação na sociedade. Defende que tenhamos tesão pela vida e amor pelo que fazemos. E, claro, espera que sexo seja visto como algo natural e saudável, como deve ser.

Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil

Voos Literários

O beijo e o ciclo da violência doméstica

Flávia Cunha
31 de janeiro de 2020

ALERTA: Esse texto aborda a violência contra a mulher, com conteúdo que pode provocar gatilhos emocionais. Além disso, para os leitores que não gostam de spoilers, usei trechos do livro Hibisco Roxo, além de dar detalhes do enredo.   

O caso da mulher que beijou o ex-namorado em pleno tribunal, no interior do Rio Grande do Sul, após ele ter tentado matá-la com cinco tiros ganhou grande repercussão nacional. E o perdão virou-se contra a vítima, com o julgamento nas redes sociais, dentro da não-compreensão do ciclo da violência dentro de um relacionamento abusivo. Por coincidência, quando o assunto veio à tona nessa semana, eu estava terminando a leitura do livro Hibisco Roxo

Na obra, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie aborda, com muita delicadeza, o tema da violência doméstica, expondo toda a complexidade do assunto. O enredo é narrado pela adolescente Kambili, que aos poucos vai revelando aos leitores o grande segredo de sua família. Seu pai, um próspero empresário e católico fervoroso, exerce um total controle sobre a esposa, o filho e a filha. Ao ser desobedecido ou quando considera que houve algum pecado dentro de sua rígida visão de mundo, Eugene aplica castigos em seus familiares. Os maus-tratos vão sendo intensificados ao longo da narrativa, conforme a situação política da Nigéria vai interferindo na rotina do tão temido Papa.

Quem enfrenta Eugene é sua irmã Ifeoma, uma viúva feminista e professora universitária, que prefere não depender financeiramente do irmão. É na casa dessa tia decidida que Kambili e seu irmão Jaja conseguem, aos poucos, romper o controle emocional (e até mental) exercido pelo pai abusivo. Em determinado ponto da narrativa, a mãe consegue fugir do marido e parece prestes a terminar com o casamento.  Chegando na casa da cunhada, ela explica que sofreu um aborto espontâneo depois de ter sido espancada pelo marido:

– Eu estava grávida de seis semanas.  – Ekwuzinal Não repita isso! – exclamou tia Ifeoma, arregalando os olhos.  – É verdade. Eugene não sabia. Eu ainda não tinha contado a ele, mas é verdade. 
Mama escorregou para o chão. Ficou sentada com as pernas esticadas à frente do corpo. Era uma postura humilhante, mas me abaixei e sentei ao lado dela, com meu ombro tocando o seu. Mama chorou por muito tempo.”

Logo em seguida, a história revela a dependência emocional exercida dentro de relacionamentos abusivos. Quando o marido violento entra em contato por telefone, Beatrice recua na sua atitude de sair de casa:

“Tia Ifeoma atendeu e depois veio dizer a Mama quem tinha sido. – Eu desliguei. Disse a ele que não ia deixar você falar com ele.  Mama pulou do banquinho. – Por quê? Por quê?  – Nwunye m, sente-se agora! – disse tia Ifeoma, irritada.  Mas Mama não se sentou. Ela foi para o quarto de tia Ifeoma e ligou para Papa. O telefone tocou logo depois e eu soube que ele tinha retornado a ligação. Mama saiu do quarto depois de mais ou menos quinze minutos. – Nós vamos amanhã. As crianças e eu – disse ela, olhando para algum ponto acima da cabeça de todos nós. – Vão para onde? – perguntou tia Ifeoma. – Para Enugu. Vamos voltar para casa.” 

E por mais que a cunhada tente argumentar, Beatrice prefere voltar para perto do marido abusador, demonstrando o quanto é difícil romper o ciclo da violência doméstica:

“- Você tem um parafuso solto na cabeça, gbo? Vocês não vão a lugar nenhum.  – Eugene vai vir nos apanhar.  – Escute… Tia Ifeoma falou num tom mais suave; ela deve ter percebido que um tom firme não penetraria no sorriso fixo no rosto de Mama. O olhar de Mama continuava vidrado, mas ela parecia ser outra mulher, não a mesma que saltara do táxi de manhã. Parecia estar possuída por outro demônio. – Fique pelo menos alguns dias, nwunye m, não volte tão cedo. Mama balançou a cabeça. Não havia nenhuma expressão em seu rosto, a não ser um sorriso duro. – Eugene não anda bem disse ela. – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar. Você sabe o que a morte de Ade fez com ele? É demais para uma só pessoa.[…] Você sabia que Eugene paga a mensalidade escolar de mais de cem pessoas? Sabe quantas pessoas estão vivas por causa do seu irmão? – Não é disso que eu estou falando, e você sabe muito bem. […] Sabe quantas mães empurraram suas filhas para ele? Sabe quantas pediram que ele engravidasse suas filhas, sem nem precisar se incomodar em pagar o preço de uma noiva? – E daí? Diga… e daí? retrucou tia Ifeoma, gritando. “

Como podemos perceber no trecho acima, a mulher vítima de violência dentro de um casamento procura encontrar motivos para justificar o comportamento do marido abusivo. É muito difícil para quem está de fora da relação compreender, como podemos notar pela reação da personagem Ifeoma. No caso real da mulher que preferiu perdoar o ex e retomar o relacionamento agora que o homem foi absolvido da tentativa de homicídio, me parece que o mais conveniente seria tentarmos não julgá-la. Se a conhecesse, aconselharia terapia e cautela. Alguém que reage com tamanha violência depois de uma discussão conjugal parece ter dificuldade de controlar a raiva, o que pode ser muito perigoso no futuro.

Infelizmente, esse beijo em público está sendo usado para justificar a violência contra a mulher. E para isso, não pode haver perdão. 
Voos Literários

Nazistas entre nós

Flávia Cunha
24 de janeiro de 2020

O título do livro de Marcos Guterman, Nazistas Entre Nós, pode ser usado como um alerta para o episódio do discurso com inspiração nazista envolvendo o agora ex-secretário especial da Cultura. Nazistas já foram tolerados por cidadãos de bem, como aponta a obra do jornalista e historiador que tem como subtítulo A Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Guerra. Por isso que mesmo com a saída de Roberto Alvim do governo, precisamos estar alertas e ter medo, parafraseando a nova secretária especial da Cultura. Regina Duarte sorri mais e é mais ponderada, pois defende que não haja radicalismos na política. Por outro lado, minimiza as falas racistas, machistas e homofóbicas do presidente da República, o que não deixa de ser uma postura radical em pleno século 21. Com isso, não estou afirmando que a eterna namoradinha do Brasil é nazista, mas uma conservadora que, por temer a esquerda e ter convicção na direita, posiciona-se publicamente dizendo considerar ”doce” o comportamento truculento de Bolsonaro, um “homem dos anos 50”. 

Voltando ao discurso de origem nazista propagado por Alvim, não podemos esquecer dos horrores provocados pelo regime liderado por Adolf Hitler. Na apresentação do livro Nazistas Entre Nós, Marcos Guterman questiona como muitos ex-nazistas ficaram livres após o fim da II Guerra Mundial:   

“O Holocausto – o massacre industrial de milhões de judeus e de integrantes de outras minorias durante a Segunda Guerra Mundial – foi o ponto mais baixo a que a humanidade já chegou em sua história. E foi graças a esse inominável crime que os nazistas ganharam um lugar especial entre os maiores vilões de todos os tempos. Sendo assim, como explicar que muitos desses vilões tenham conseguido, depois da guerra, encontrar um lugar entre nós, isto é, desfrutar da vida em liberdade como se nada tivessem feito, como se fossem parte da mesma sociedade civilizada que eles tanto se esforçaram em destruir? […] Isso só foi possível porque, aos olhos de muita gente, os principais líderes nazistas já haviam sido punidos e a vida tinha de continuar. Afinal, a guerra já era ‘coisa do passado’ – e era no passado que o regime assassino de Adolf Hitler e seus inúmeros cúmplices tinham de ficar.”

A amnésia proposital por parte dos cidadãos de bem a respeito da adesão ao nazismo de muitos oficiais pode nos parecer absurda, mas foi o que de fato ocorreu, como explica Guterman:

“Nesse contexto, o Holocausto passou a ser descrito quase como uma extravagância, fruto unicamente da mente criminosa de Hitler e de seus sequazes próximos, numa tentativa pouco sutil de isentar todos os demais de responsabilidade. Esse conveniente acordo tácito para aplacar consciências permitiu que muitos nazistas reconstruíssem suas biografias depois da guerra e, já reintegrados à sociedade, ajudassem a circunscrever o Holocausto ao cantinho das curiosidades da Segunda Guerra – como se o genocídio dos judeus não tivesse tido a participação de grande parte dos alemães e a colaboração de quase toda a Europa. Estava aberto o caminho para a impunidade de terríveis criminosos de guerra, vergonha da qual o mundo jamais se recuperou.”

Por isso, um (ex)-integrante do governo brasileiro disparar frases nazistas em um vídeo oficial, em pleno 2020, é no mínimo vergonhoso (para não dizer coisa pior). A impunidade para essa situação absurda não pode ser permitida. Principalmente porque a saída dele do governo não foi pelo projeto de aplicar ideais nacionalistas à Arte (uma das características de governos fascistas – vale lembrar) mas pela repercussão negativa ao plagiar trechos do discurso de Goebbels, o famigerado ministro da Propaganda de Hitler. Não houvesse pressão, Bolsonaro certamente teria mantido Alvim no cargo, já que antes havia elogiado sua postura à frente da secretaria.

Um famoso ditado alemão, bastante lembrado nas redes sociais nesses últimos dias, precisa ser compreendida pelos seguidores mais fervorosos de Bolsonaro:

“Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa.”

Voos Literários

Democracia em Vertigem: a descoberta de uma citação

Flávia Cunha
17 de janeiro de 2020

Stathis N. Kalyvas pode ser um nome desconhecido para o público brasileiro mas ele é o escritor grego citado por Petra Costa no documentário Democracia em Vertigem. O assunto volta à tona na coluna Voos Literários devido à indicação ao Oscar do filme e também pela descoberta do autor da citação literária que gerou um texto em julho de 2019, data próxima do lançamento de Democracia em Vertigem na Netflix e de uma imensa repercussão nas redes sociais. 

A citação literária a que me refiro é:

“Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. Caso contrário, a oligarquia toma o poder.”

Depois de muito pesquisar na Internet e não encontrar o autor da frase impactante, me conformei em escrever um texto reflexivo a respeito dos limites da democracia e das origem da luta de classes, que remete a um período histórico muito anteriores a Karl Marx. Ao repostar esse texto na minha página pessoal no Facebook, no dia da indicação do documentário ao Oscar, um amigo me passou a informação tão procurada. Em uma matéria, a diretora do filme comenta a respeito de quem era o tal escritor grego:

“[Stathis N.] Kalyvas, mudou minha noção de democracia de muitas maneiras. Ele disse: ‘A democracia é o governo do povo’. Mas se as forças do governo não estão realmente governando para o povo, não é realmente democracia.”

Confira a matéria completa aqui.

O escritor que encantou a diretora de Democracia em Vertigem (e foi alvo da minha obsessão literária em 2019) é atualmente professor na renomada Universidade de Oxford, tendo trabalhado anteriormente em Yale. Tem formação em Ciência Política pelas universidades de Atenas e Chicago. De acordo com seu site pessoal, lançou até o momento 5 livros (nenhum deles com tradução para o português):  Civil Wars (2018), Modern Greece: What everyone needs to know (2015) Order, Conflict, Violence (2008), The Logic of Violence in Civil War (2006) e The Rise of Christian Democracy in Europe (2006).

Em seu site pessoal também é possível acessar alguns de seus artigos em inglês.  Stathis N. Kalyvas também disponibiliza seu curriculum vitae, no qual consta a informação de que nasceu na Grécia, em 1964. Um autor e pesquisador contemporâneo, portanto. O mais curioso é que na minha busca frenética pela citação referente a “um escritor grego” fiz a suposição de que se trataria de um dos pensadores da Grécia Antiga, berço da democracia.

Termino esse texto com a missão pessoal de ler alguns artigos de Kalyvas em inglês e procurar fazer conexões com o Brasil atual, em que a democracia segue ameaçada diariamente. E fico na torcida pela corrida no Oscar de Democracia em Vertigem. Longe de ser uma especialista em cinema, ainda assim arrisco dizer que o documentário de Petra Costa não deve levar a estatueta, por motivos como estar concorrendo com um filme dirigido por Barack e Michelle Obama. Não entrando no mérito da qualidade técnica do documentário, a verdade é que Democracia em Vertigem atinge o emocional de quem se deixa levar pela narrativa da diretora. E a indicação ao Oscar já é um mérito inegável para a produção brasileira, que segue disponível na Netflix.     

 

Voos Literários

Crise no Oriente Médio: 5 indicações de leitura

Flávia Cunha
11 de janeiro de 2020
“Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo.”

Bolsonaro, Jair, em janeiro de 2020.

A frase do excelentíssimo presidente da República refere-se a livros didáticos distribuídos em escolas públicas. Porém, essa declaração acaba podendo ser aplicada de forma mais abrangente no que se refere a ações do atual governo, com evidentes demonstrações de falta de apreço à Cultura. 

Bolsonaro deveria ler mais para, por exemplo, ampliar seu parco vocabulário. O mesmo pode se dizer a respeito do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que volta e meia assassina a norma culta e escreve com erros de ortografia (o último foi “imprecionante), o que pode (e deve) ser perdoado em pessoas com menos escolaridade mas que não pode ser considerado normal em alguém em um cargo como esse.

Dia do Leitor

Em 7 de janeiro, comemora-se no Brasil o Dia do Leitor, esse ser incompreendido por Bolsonaro, que gosta de livros “com muita coisa escrita” e considera a leitura uma atividade lúdica.  Porém, nem sempre podemos nos refugiar no terreno prazeroso da ficção. Pois 2020 começou com um conflito entre Estados Unidos e Irã, uma tensão que deixa o mundo inteiro em alerta. Para os leitores que dedicam seu tempo a informar-se através da imprensa, nem sempre há um relato mais aprofundado sobre o que ocorre no Oriente Médio e sua relação com o governo norte-americano. (No Jornal da Globo, a apresentadora chegou a comentar que seria interessante explicar para os telespectadores detalhes sobre a Revolução Iraniana de 1979 “porém não havia tempo para isso”).

Por essa razão, fiz uma seleção de 5 livros para tentar entender melhor um tema tão complexo:

O Xá dos Xás – Ryszard Kapuscinki

Sinopse: Nos anos 1950, com o repentino aumento do preço do petróleo, o Irã embarcou em um extraordinário processo de modernização. Foram importados armamentos, carros, aviões, tudo o que para o xá era sinônimo de desenvolvimento. Em 1979, no entanto, seu projeto de “Grande Civilização” ruiu: sob o impacto de manifestações populares e a pressão dos religiosos xiitas, o reinado despótico de Mohammed Reza Pahlevi chegou ao fim. Para narrar o processo de ascensão e queda do último xá do Irã, Kapu’sci’nski lança mão de uma técnica mista, em que entram narrativa histórica, crônica jornalística e escrita de ficção. Sem entrevistar representantes do novo governo ou adentrar o palácio onde viveu o xá, o autor busca no homem comum o significado profundo da cultura, da religiosidade e da revolução iraniana. Nesta brilhante cobertura, o jornalista-escritor põe em prática sua convicção de que “todos os livros sobre as revoluções […] deveriam começar com um capítulo com tons psicológicos, em que se descrevesse o momento em que um homem sofrido e apavorado repentinamente derrota o terror; o instante em que ele deixa de sentir medo”.

A Crise no Islã – Bernard Lewis

Sinopse:  Bernard Lewis examina as raízes históricas do ressentimento que uma parcela dos adeptos do islamismo nutre com relação ao que qualifica como “mundo infiel”. Partindo da fundação da religião muçulmana pelo profeta Maomé, o autor traça, de maneira crítica, uma linha do tempo que percorre a era dos califas, o Império Otomano, a ameaça representada pelos cruzados, a dominação colonial europeia e a intensificação dos conflitos entre Oriente e Ocidente nos últimos tempos. Em texto sucinto, Lewis concentra-se em particular nos acontecimentos do século XX que estão na origem dos violentos confrontos atuais: a formação do Estado de Israel, a Guerra Fria, a Revolução Iraniana, a Guerra do Golfo e o 11 de setembro. A crise do Islã interpreta a ascensão da doutrina wahhabi (fundada no século XVII e que prega o retorno ao islã “puro” e “autêntico” de Maomé) como forma de deturpar e manipular o comportamento religioso tradicional na região. O espelho do fundamentalismo radical não é necessariamente a sociedade ocidental, diz o autor, mas todos aqueles que se abrem para o estilo de vida moderno e as tradições democráticas. Como política e religião são inseparáveis no islamismo, não é de estranhar que jovens muçulmanos se mostrem tão ansiosos por cumprir a obrigação da jihad (ou “guerra santa”) e se submetam até ao suicídio em nome da fidelidade ao passado.  “Admiravelmente sucinto. Fornece uma visão ampla, em meio a tanto imediatismo e eruditismo confuso. Lewis nos prestou a todos, muçulmanos e não-muçulmanos um serviço inestimável.” The New York Times Book Review “Uma contribuição oportuna e provocadora ao atual debate sobre as tensões entre os mundos ocidental e islâmico.” Business Week”Inestimável.  Repleto de insights históricos excepcionais, presumíveis em um dos principais estudiosos do islamismo.”  The Wall Street Journal

A Revolução Iraniana – Osvaldo Coggiola

Em uma região conturbada desde tempos imemoriais, o Irã da segunda metade do século XX honra a tradição e abriga situação explosiva: uma monarquia, autointitulada herdeira dos vetustos imperadores persas, debate-se, espremida entre a autocracia, a corrupção e os anseios modernizadores. Completando o quadro dramático, a presença crescente do fundamentalismo islâmico e a não disfarçada intervenção das potências ocidentais – sempre obcecadas pelas enormes reservas petrolíferas do país – acarretam a tensão geopolítica prenunciadora de típicos cenários contemporâneos.

A “revolução dos aiatolás” é, assim, exemplar. Mais do que conflito localizado, é fruto das variáveis definidoras de nossa época e expõe os perigos e os desafios que enfrentamos.

O Enigma da Revolta: Entrevistas Inéditas sobre a Revolução Iraniana – Michel Focault

Sinopse:  Caso você esteja em dúvida se já leu essas entrevistas de Michel Foucault a respeito da revolução iraniana, podemos reassegurar: a resposta é não. Elas não foram incluídas nos Ditos e Escritos, pois apareceram só em 2013, em árabe, e em 2018, parcialmente, numa revista francesa. Assim, são conversas em tudo inéditas. Tiveram que esperar mais de três décadas para se tornarem acessíveis ao público em geral. Seu interesse é duplo. Por um lado, depois de toda a celeuma provocada pelas “reportagens de ideias” escritas por Foucault por ocasião de suas duas viagens ao Irã, em 1978, o filósofo esclarece o sentido de seu interesse pela sublevação iraniana, desfazendo mal-entendidos, desinformações e malevolências (de que ele teria apoiado a implantação da teocracia!). Por outro lado, nelas esclarece sua concepção de revolta, sublinhando que expor-se à morte é um gesto irredutível a qualquer explicação histórica. Ademais, fala sobre o que entende por “espiritualidade política”, dando à expressão um sentido particular, mais vinculado à experiência da modificação de si (“tornar-se outro do que se é”) do que à instituição religiosa. Portanto, mais aparentada a Bataille, Blanchot e Ernst Bloch do que à visão de um aiatolá. Nessas conversas tocantes, temos acesso às ideias de Foucault na época sobre a natureza da resistência, do poder, da vontade, da religião, da experiência, do sujeito, sobre Sartre, os “novos filósofos” – de golpe, é todo um panorama mental que se descortina, de uma riqueza e atualidade extraordinárias. De quebra, um belo ensaio de Christian Laval fecha este livro instigante, organizado por Lorena Balbino.

Persepólis – Marjane Satrapi

Sinopse:  Marjane Satrapi tinha apenas dez anos quando se viu obrigada a usar o véu islâmico, numa sala de aula só de meninas. Nascida numa família moderna e politizada, em 1979 ela assistiu ao início da revolução que lançou o Irã nas trevas do regime xiita – apenas mais um capítulo nos muitos séculos de opressão do povo persa.
Vinte e cinco anos depois, com os olhos da menina que foi e a consciência política à flor da pele da adulta em que se transformou, Marjane emocionou leitores de todo o mundo com essa autobiografia em quadrinhos, que só na França vendeu mais de 400 mil exemplares.
Em Persépolis, o pop encontra o épico, o oriente toca o ocidente, o humor se infiltra no drama – e o Irã parece muito mais próximo do que poderíamos suspeitar.

Imagem:  Pavel Karásek/Pixabay
Voos Literários

Chegamos a 150 voos literários

Flávia Cunha
3 de janeiro de 2020

Essa coluna completa hoje 150 textos publicados semanalmente. Os leitores que têm o hábito da escrita podem imaginar como é difícil manter a disciplina. É um desafio. E é impressionante como o processo de criação varia de acordo com o tema escolhido.

Às vezes, as palavras fluem imediatamente do documento em branco no computador, resultando em um post praticamente pronto, merecendo uma mera revisão. Em outras ocasiões, é preciso parar, refletir. Fazer pesquisas. Dar um tempo. E esperar que as ideias se acomodem internamente até resultarem no texto final. Mas acho que venho conseguindo cumprir a promessa que fiz à editora-chefe do Vós, Geórgia Santos: conectar a Literatura com a atualidade e provocar reflexões. E também incentivar a ideia que a leitura é libertadora e democrática. Um hábito que pode ser prazeroso, estimulante e, dependendo da obra escolhida, se transformar em um ato revolucionário, ainda que de revolução interna. Mas deixando a “egotrip” de lado e estimulada pela reflexão a respeito do exercício de escrita, resolvi abordar o processo criativo de dois escritores famosos e diferentes entre si: Clarice Lispector e Stephen King. .

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STEPHEN KING

O mestre do suspense, reconhecido por romances de grande fôlego, também é exímio na arte de surpreender com histórias curtas. No livro O Bazar dos Sonhos Ruins, o norte-americano brinda os leitores com enredos que flertam com o fantástico e o inesperado. Antes de cada conto, um presente para os mais curiosos: o autor revela como surgiu a ideia que resultou nos textos.  Já na introdução podemos observar o caráter confessional dessa obra de Stephen King:

“Você ficaria surpreso (ao menos, acho que ficaria) com a quantidade de pessoas que me perguntam por que eu ainda escrevo contos. […] Sou romancista por natureza, isso eu admito, e tenho um gosto particular por histórias longas que criam uma experiência de imersão tanto para o autor quanto para o leitor, onde a ficção tem a chance de se tornar um mundo quase real. […] Mas há algo especial nas experiências mais curtas e mais intensas. Podem ser revigorantes, às vezes até chocantes, como uma valsa com um estranho que você nunca mais vai encontrar, ou um beijo no escuro, ou uma bela raridade à venda sobre um lençol barato em um bazar. E, sim, quando minhas histórias estão reunidas, sempre me sinto como um vendedor ambulante, um que só vende à meia-noite. Exibo minha mercadoria e convido o leitor (você) a escolher o que quiser.”

Meu conto predileto entre os 20 publicados nesse livro é Garotinho Malvado, que tem uma singela explicação por parte de King para sua criação. O resultado é um enredo simples mas com doses de suspense e terror bem ao gosto de fãs do gênero :

“Em algum momento, decidi que queria escrever uma história sobre um garotinho malvado que se mudava para um novo bairro. Não um garoto que fosse literalmente o filho do diabo, não um garoto possuído pelo demônio no estilo O exorcista, mas só malvado por ser malvado, malvado até o último fio de cabelo, a apoteose de todos os garotinhos malvados que já existiram. Eu o via de short e com um boné com hélice no alto da cabeça. Eu o via sempre criando confusão e nunca se comportando.”

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CLARICE LISPECTOR

Já Clarice escolhe falar de seu processo criativo de forma mais indireta. A escritora cria em Um Sopro de Vida o alter ego de um autor, que escreve sobre uma personagem chamada Ângela Pralini. Em uma espécie de prefácio sem maiores explicações, o enredo começa a abordar os desafios da escrita, por parte desse autor-narrador-personagem: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”

Mais adiante, Clarice prossegue em sua divagação-confissão:

“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.”

Em determinados trechos, o recurso da metalinguagem fica explícito:

“Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco – recém-saído do nada. […] Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e autorrisco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. […] Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados – a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. […] Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa. Cada anotação tanto no meu diário como no diário que eu fiz Ângela escrever, levo um pequeno susto.”

Caio Fernando Abreu, um fã confesso de Clarice Lispector, também sentia essa necessidade incessante da escrita, como uma forma de manter-se vivo. Em Pequenas Epifanias, o escritor coloca uma epígrafe de sua própria autoria:

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“Continuo a pensar que quando tudo parece sem saída, sempre se pode cantar.

Por essa razão escrevo”

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Que encontremos soluções positivas e criativas para os becos sem saída desse momento sociopolítico brasileiro: escrever, pintar, dançar, cantar, encenar…. Modestamente, prossigo por aqui escrevendo, pois é meu instrumento de resistência. Desejo um feliz e potente 2020 aos leitores do Vós e da coluna Voos Literários. Sigamos!

Imagens: Reprodução/ Internet

Voos Literários

Ansiedade de ano-novo

Flávia Cunha
27 de dezembro de 2019

Nesse último texto de 2019, resolvi abordar um dos males da nossa pós-modernidade, a ansiedade. Ser ansioso é cada vez mais comum e democrático, atingindo diferentes faixas etárias e classes sociais, sem discriminar ninguém. No período de fim de ano e início de um novo ciclo, os ansiosos lá estão, nervosos com os afazeres a cumprir (depois das brutais compras de Natal vem a ceia de Ano -Novo e, para alguns, férias, o que pressupõe uma grande organização ou mero nervosismo, dependendo de como a ansiedade atinge cada pessoa). E, junto, vem a pressão interna e externa para ter metas concretas para 2020: emagrecer, ter um novo emprego, ser feliz no amor, ser bem-sucedido. 

O ano “em branco”, o porvir, o desconhecido, também podem gerar ansiedade.

E a necessidade de ser feliz nesse período de festas também pode gerar o efeito oposto: melancolia, sentir-se deslocado ou oprimido. Mas como enfrentar tudo isso com o mínimo de serenidade?

No livro Mentes Ansiosas – O medo e a ansiedade nossos de cada dia, a psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva explica, de forma didática e acessível, do que se trata a ansiedade:

“Como tudo em medicina recebe nomes específicos, com direito a sobrenomes, foram denominados transtornos de ansiedade  quando o medo excessivo e,  consequentemente, a sua fiel companheira ansiedade passam a trazer prejuízos expressivos para a vida da pessoa. Os transtornos de ansiedade possuem diversos espectros que variam em grau, intensidade e na forma como se apresentam. Podemos percebê-los em diversas situações, tais como nas lembranças que insistem em nos perseguir após uma  experiência traumática (morte de um parente muito próximo, por exemplo); nas fobias ou no medo intenso de falar em público ou participar de eventos sociais; no temor exacerbado de determinados objetos ou animais […] Também são perceptíveis no terror (pânico) que surge do “nada” e nos dá a sensação de que podemos morrer a qualquer momento; nas preocupações excessivas com os fatos mais corriqueiros e triviais; nos pensamentos obsessivos e comportamentos repetitivos, mais conhecidos como manias, entre outros. […] Em graus variados, quando os transtornos de ansiedade já estão instalados,  inevitavelmente trarão prejuízos significativos para os setores vitais de suas vítimas (vida social, familiar, profissional, acadêmica etc.). Contudo, somente após muito tempo de sofrimento, de peregrinações em vão – entre as mais variadas especialidades médicas e não médicas –, ou quando suas vidas já estão reviradas pelo avesso, é que os pacientes procuram ajuda especializada.”

Já no livro A Terapeuta – Um Romance sobre a Ansiedade, o escritor espanhol Gaspar Hernández  aborda, em um enredo ficcional, a relação de um ator de teatro atormentado por um estresse pós-traumático e sua psicóloga, que o ajuda a manter-se em cena e a tentar lidar com a sensação crescente de ansiedade.  Interessante é perceber que o protagonista no início repele a ideia de fazer terapia, considerando-a como algo desnecessário em sua vida:

“Não tinha sofrido dano algum, não precisava de ajuda psicológica, nunca tinha precisado: suas feridas psíquicas, típicas de um homem normal e corrente, eram exteriorizadas no palco. Além disso, ir a um psicólogo teria significado se analisar, e ele não queria olhar para o próprio umbigo: mais interessantes eram os outros. Nunca antes na história tinha dado tanta importância ao eu: aquilo que gosto, meus amigos, o que penso, o que sinto. No palco precisa se desprender do ego. Se não, estaria  interpretando a si mesmo.”

Uma crise de ansiedade, no entanto, faz o personagem dar-se conta que precisa de ajuda especializada:

“Estava sofrendo um ataque do coração? Estava morrendo? Nunca tinha experimentado nada parecido. A sensação era de irrealidade. A visão do que tinha a seu redor – os pedestres, as barracas de flores, as bancas –, tudo se desvanecia numa  aquarela molhada. Não se lembrava de quantos minutos havia ficado sentado no chão, no meio da multidão. Quando viu que tinha forças para se levantar, foi até uma cabine para ligar para a psicóloga, apesar de ser verdade que, enquanto ligava, estava  pensando que deveria ir ao pronto-socorro, que aquilo não tinha sido nada de psicológico.”

Buscar ajuda de um psicólogo, como fez o personagem do romance A Terapeuta, pode ser um bom caminho para quem identificar-se com eventuais sintomas descritos nesse texto. Na Internet, existem diversos testes para analisar o grau individual de ansiedade mas nenhum quiz substituirá o auxílio especializado. Comece 2020 investindo em autocuidado, algo fundamental nesses tempos tão difíceis que estamos vivendo. 

Imagem: Ansiedade, de Edvard Munch, de 1894