Voos Literários

Abstinência é a solução?

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2020
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lançam a Campanha Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência

“A  juventude é a grande vítima da repressão à  busca do prazer, […] na liberação fisiológica do amor e do sexo.”

Roberto Freire, em Tesão Não Há Solução,  um sucesso literário do fim dos anos 80

A campanha de abstinência sexual para evitar a gravidez na adolescência proposta pelo governo federal é considerada ineficaz por especialistas. Em princípio, a ministra Damares Alves vinha se posicionando publicamente defendendo o tema. Depois, recuou um pouco nas declarações. Apesar de Damares ter demonstrado estar mais reticente em relação a publicizar a abstinência como uma política governamental, o presidente Jair Bolsonaro não mediu palavras para defender a ministra

“Quando ela fala em abstinência sexual, esculhambam ela. Quem quer? Eu tenho uma filha de nove anos, você acha que eu quero minha filha grávida no ano que vem? Não tem cabimento isso aí. É essa a campanha que ela faz.”

O que Bolsonaro não fala é que políticas públicas que pregam a abstinência sexual como uma forma de evitar que adolescentes engravidem já foram adotadas em outros países, sem sucesso. Tanto que a Defensoria Pública da União recomendou que seja suspensa a elaboração do Plano Nacional de Risco Sexual Precoce. Especialistas alertar que sugerir a abstinência sexual entre jovens não apenas é ineficaz como método contraceptivo mas também acaba gerando aumento de infecções sexualmente transmissíveis nessa faixa etária. 

Além disso, o presidente aproveita um assunto de saúde pública – a gravidez precoce – para atribuir à esquerda e ao PT a responsabilidade pela sexualização excessiva de jovens na sociedade brasileira:

“Essa liberdade que pregaram ao longo (do governo) do PT todo, que vale tudo, se glamoriza certos comportamentos que um chefe de família não concorda, chega a esse ponto, uma depravação total.”

A “depravação total” citada pelo presidente provavelmente se refere a meninas fazendo sexo. Ninguém em sã consciência defende que pré-adolescentes de 11, 12 anos façam sexo. Porém, seria ingenuidade (e alienação) considerar que adolescentes de 16 anos – que já podem votar, por exemplo – não tenham autonomia sobre os próprios corpos. A repressão sexual apontada pelo psicanalista Roberto Freire no trecho que abriu esse texto explica muito do que pretende o atual governo.

Dentro dessa visão, meninas vestem rosa e são virgens, claro. E os meninos? São viris e devem propor sexo para essas mesmas adolescentes, que devem recusar, por serem virtuosas. Porém, se formos seguir a lógica patriarcal e conservadora proposta pelos bolsonaristas, como as adolescentes terão autoridade dentro de um relacionamento para dizer “não” e serem respeitadas? Ou, então, caso resolvam “cair em tentação” e fazerem sexo, como vão se contrapor ao namorado que não quer usar camisinha? Sinto informar a ministra Damares, mas meninas empoderadas e cheias de autoestima assim precisariam ser… feministas! Pois apenas em uma relação com igualdade entre os sexos, a adolescente se sentiria confortável para tomar essas atitudes. 

CAMPANHA DO GOVERNO

Mas o que propõe a campanha lançada em conjunto pelo ministério da Família e pelo ministério da Saúde? Com o título : “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois”, o projeto não cita em nenhum momento a abstinência como forma de evitar que adolescentes engravidem. Entre as medidas apontadas, está o diálogo com a família e a busca por orientações (e contraceptivos) em unidades de saúde. Porém, a campanha que prega a abstinência sexual ainda estaria em elaboração na pasta de Damares. Seria o Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual, já criticado pela Defensoria Pública da União.  .

SEXO COM RESPONSABILIDADE

O que não passa pela cabeça dos conservadores, é que possa haver sexo com amor e respeito na adolescência. E desde que os jovens sejam bem orientados (com educação sexual em sala de aula, por exemplo), a gravidez será evitada com o uso dos contraceptivos corretos, assim como as ISTs.  

Como diria o libertário Roberto Freire:

“Uma vez livre das repressões sociais e políticas através do sexo, os jovens descobrem que a sensualidade é a mais clara e intensa, a mais verdadeira e real sensação de estar vivo.”

Concordo com a Damares (e até com o Bolsonaro, vejam só), que a gravidez na adolescência precisa ser evitada. Em geral,  meninas que engravidam nessa idade acabam abandonando os estudos e tendo mais dificuldade para conseguir emprego e renda. Porém, demonizar o sexo, principalmente para mulheres, é uma das armas mais antigas das religiões. Quando isso se mistura com política, o resultado já foi descrito por Freire: 

“Vivendo em sistemas políticos autoritários, aos quais tanto religião como ciência estão ligados, associados e dependentes, a visão trágica da existência é um dos suportes ideológicos mais poderosos e úteis para a sua manutenção.”

E, em tempo, quando Roberto Freire refere-se à que “Sem tesão, não há solução”, ele não prega a depravação na sociedade. Defende que tenhamos tesão pela vida e amor pelo que fazemos. E, claro, espera que sexo seja visto como algo natural e saudável, como deve ser.

Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil

Voos Literários

Chimamanda e a polêmica do azul e rosa no Brasil

Flávia Cunha
8 de janeiro de 2019

A fala da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos sobre “meninas usarem rosa, meninos usarem azul” gerou uma repercussão negativas na Internet mas obteve uma ampla defesa por parte do eleitorado alinhado com o atual presidente. Porém, considero que essa declaração vai muito além de ser apenas uma bobagem ou cortina de fumaça para encobrir ações mais relevantes do governo, como já li por aí . Por trás do empolgado grito de Damares Alves está o conservadorismo, que é contrário às causas LGBT e feminista. É também a dinâmica do novo governo: usar os costumes como ferramenta de coerção dos “diferentes” e, ao mesmo tempo, agradar a uma parcela da população que se incomoda com quem é fora do padrão.

Vou falar aqui hoje do ponto de vista feminista, por acreditar que ele abarca o respeito e a igualdade, que é o que todas as pessoas com o mínimo de bom senso deveriam querer para a nossa sociedade.

Para abordar o assunto escolhi dois livros da aclamada escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que tem obras traduzidas para mais de 30 idiomas e é um fenômeno mundial na área editorial e no ativismo feminista.

Em Sejamos Todos Feministas, a autora faz uma reflexão necessária sobre como seria libertador para todos alcançar a igualdade:

[…] meninas poderão assumir sua identidade, ignorando a expectativa alheia, mas também os meninos poderão crescer livres, sem ter que se enquadrar em estereótipos de masculinidade.”

O livro é uma adaptação de um famoso discurso feito por Chimamanda em um TEDx e também foi musicado pela cantora pop Beyoncé.

INFÂNCIA FEMINISTA

Porém, já que ao explicar posteriormente sua fala a ministra brasileira tentou remendar dizendo que o uso de determinadas cores deve ser aplicado apenas durante a infância, vou me deter mais na obra Para Educar Crianças Feministas – Um Manifesto.

Esse livro da escritora nigeriana foi inspirado na carta a uma amiga que fez o pedido à autora de conselhos de como criar uma criança dentro dos preceitos do feminismo. (Lembrando que trata-se de educar para a igualdade e não de mulheres terem mais valor do que homens.)

Para Educar Crianças Feministas tem várias respostas que podemos aplicar para o discurso e visão de mundo arcaica de Damares Alves.

Sobre a polêmica azul x rosa no vestuário infantil, Chimamanda comenta, ao falar sobre a busca de uma roupa em uma loja:

Na seção das meninas, havia umas coisas pálidas espantosas, em tons de rosa desbotado. Não gostei. A seção dos meninos tinha roupas num azul forte e vibrante. Como achei que o azul ia ficar lindo em contraste com a pele morena dela — e sai melhor nas fotos —, comprei uma roupinha azul. A moça do caixa me disse que era o presente ideal para um garotinho. Falei que era para uma menininha. Ela fez uma cara horrorizada: “Azul para uma menina? Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa dualidade rosa-azul. […] Por que não organizar as roupas infantis por idade e expô-las em todas as cores? Afinal, todos os bebês têm corpo parecido.”

Mais adiante, na mesma obra, a autora comenta sobre as brincadeiras serem separadas por gênero, o que ela também considera inadequado:

Os brinquedos para meninos geralmente são “ativos”, pedindo algum tipo de “ação” — trens, carrinhos —, e os brinquedos para meninas geralmente são “passivos”, sendo a imensa maioria bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não por gênero. Já contei sobre a vez que fui a um shopping americano com uma menina nigeriana de sete anos e a mãe dela? A menina viu um helicóptero de brinquedo, uma daquelas coisas que voam com controle remoto. Ela ficou fascinada e pediu um. “Não”, disse a mãe. “Você tem suas bonecas.” E a menina respondeu: “Mamãe, é só com boneca que vou brincar?”. Nunca me esqueci daquilo. A intenção da mãe era boa, claro. Era bem versada nas ideias de estereótipos de gênero — meninas brincam com bonecas e meninos brincam com helicópteros. Agora me pergunto, um pouco sonhadora, se a menininha não teria virado uma engenheira revolucionária se tivessem dado a ela a chance de explorar aquele helicóptero.”

Para quem me lê aqui e têm crianças pequenas por perto, sugiro refletir sobre como a questão de gênero ensinada durante a infância pode refletir durante a idade adulta, influenciando nos relacionamentos amorosos e, como Chimamanda mencionou acima, nas escolhas profissionais.

A organização doméstica ainda é uma atribuição considerada exclusivamente feminina em diversos países.

Chimamanda aconselha como sua amiga (e todos que têm filhxs) deve agir para mudar essa situação:

Ensine a ela que ‘papéis de gênero’ são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa ‘porque você é menina’. ‘Porque você é menina’ nunca é razão para nada. Jamais. Lembro que me diziam quando era criança para ‘varrer direito, como uma menina’. O que significava que varrer tinha a ver com ser mulher. Eu preferiria que tivessem dito apenas para ‘varrer direito, pois assim vai limpar melhor o chão’. E preferiria que tivessem dito a mesma coisa para os meus irmãos.”

E se mesmo depois dessa toda essas reflexões sobre gênero (que começa com a história do rosa e azul) vocês ainda acharem que o assunto é “bobagem”, atentem para os números de violência contra a mulher e para diversos feminicídios ocorridos nos últimos dias no Brasil. Por trás desse cenário de barbárie, há uma criação machista e patriarcal, que passa para os homens a mensagem de que suas esposas, namoradas ou amantes são sua propriedade e, portanto, não podem ter vontade própria e tomar a iniciativa de terminar um relacionamento, por exemplo.

Para mudar esse cenário, é preciso que comecemos, sim, desde a infância a mudar a mentalidade de meninas e meninos.

E, para encerrar o assunto de cor para menino ou menina, observem como nessa foto da infância de Chimamanda Ngozi Adichie ela está linda com um vestido AZUL e branco. Porque cor, meus amigos, nunca teve gênero.

O que existe por trás dessa polêmica é a normatização de comportamentos. Vamos lutar contra isso, porque também faz parte da resistência política darmos liberdade para cada um criar seus filhos dentro de seus valores, desde que eles não sejam perpetuadores implícitos de violência e preconceito, como os conservadores defendem.

Imagens: acervo/autora