BSV Especial Coronavírus #3 Ainda tem a crise política
Geórgia Santos
8 de abril de 2020
Pensávamos que um bom tempo não haveria outro assunto a não ser a pandemia de Coronavírus, por isso essas edições especiais do Bendita. Mas como se bastasse um vírus mortal circulando por aí, os brasileiros ainda precisam lidar com uma crise política.
Em meio a boatos de que o ministro da saúde seria demitido, Luís Henrique Mandeta anunciou que fica. Mas não sabemos até quando, até porque é bastante evidente que o político do DEM e o presidente Jair Bolsonaro discordam sobre a forma de comandar o país durante essa crise.
?De todo modo, quem perde são os brasileiros, que já percebem um relaxamento no isolamento. Muito em função do desdém de Bolsonaro com relação à Covid-19. Por isso, o convidado da semana é Diogo Rimoli, ele que é professor de português, radialistas e guia turístico em Roma e vai nos contar, sob uma perspectiva de quem vive o pior momento da Itália em décadas, quão nocivas são as declarações de Bolsonaro.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol.Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
No Rio Grande do Sul (e em boa parte do Brasil, imagino), é comum o uso de cães junto a rebanhos de ovelhas – seja para ajudar no pastoreio, seja para manter predadores (e ladrões) afastados. O Estado tem até sua própria versão de cão pastor, o ovelheiro-gaúcho, talhado especificamente para esse tipo de tarefa. De modo geral, os animais gostam de se sentir úteis, e realizam as tarefas com grande dedicação. Alguns cachorros, porém, acabam se desviando: pegam gosto por caçar as ovelhas e devorá-las.
Esses, como diz o gaúcho do campo, só matando.
Lembro do meu pai contando, quando eu ainda era bem novo, sobre as experiências que tivera com cachorros comedores de ovelha. Ele morava na zona rural de São Gabriel, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, e dizia ter visto uma ovelha caçada por cachorro, ainda viva. O processo é tão brutal quanto eficaz: o cachorro corre, a ovelha tenta fugir, e o caçador, ao invés de atacar no pescoço ou no lombo da presa, apenas agarra a lã com os dentes, dando um puxão que, em meio à correria, acaba causando ferimentos graves. Às vezes, a ovelha consegue fugir mesmo assim; às vezes, não. A ovelha que meu pai viu quando garoto tinha fugido, mas estava mal: o puxão tinha arrancado um grande naco de carne, deixando as costelas à mostra.
Eu nunca vi um cachorro comedor de ovelha, mas quem viu diz que o bicho fica viciado – tanto na carne crua recém-abatida, quanto na adrenalina da caçada. Alguns caçam apenas por prazer, sem sequer devorar de fato a presa; outros, ao contrário, param de comer da tigela e recusam qualquer outra comida que lhes seja servida, só demonstrando interesse pelo gosto do sangue fresco.
Em qualquer caso, a sabedoria do gaúcho diz que só existe um jeito de evitar o prejuízo na criação: levar o cachorro ovelheiro para um lugar isolado e matá-lo. Mesmo que goste muito dele, mesmo que seja um animal fiel e tudo o mais. Porque cachorro viciado em ovelha não se emenda. Não presta para mais nada. Só matando.
Imagino que muitos gaúchos tenham, no decurso das décadas, tentado salvar a vida de cachorros viciados em ovelha. Às vezes os piás gostam do bicho, e o pai não quer deixar as crianças tristes. Às vezes o cão livrou o dono de situações difíceis, o que gera um sentimento de gratidão. Talvez, no passado, o animal tenha sido o melhor pastor de ovelhas da fazenda, e o dono sinta pena de se desfazer de uma criatura que foi tão eficiente no passado. Ou pode ser que o gaúcho rude simplesmente não queira a missão de abater um cachorro, um animal tão próximo, com que se desenvolve laços diferentes do que se tem por uma vaca, um porco, uma ovelha.
Um esforço quase bonito, dependendo do caso – mas, ainda assim, infrutífero.
É a vida, simples assim. Alguns não se emendam – sejam animais selvagens, domesticados ou seres humanos, mesmo. Para alguns indivíduos, o desvio é sua própria natureza: é o que os define, o comportamento mais natural, o resumo de tudo que são e ambicionam ser.
Eles caçam ovelhas, reais ou figuradas. Eles buscam o cheiro de sangue, sentem um impulso incontrolável pela destruição.
Um viciado em ovelhas, seja de que espécie for, pode tentar mudar a rota, sim. Pode tentar modular seu discurso, por exemplo. Mas funciona por um ou dois dias, no máximo: logo volta a espalhar dor e discórdia, a cometer gestos vis, dizer todas as barbaridades que habitam sua mente doentia.
Pode ser que o caçador faça sinais de conciliação, ou talvez ele prefira gritar aos quatro ventos seus delírios homicidas. Nesses casos, não se deve levar em conta a primeira fala, e é preciso prestar toda a atenção na segunda.
Você pode adestrá-lo, pode pedir que se controle, implorar que tome juízo. Pode torcer que o ambiente o eduque, que as pressões sobre ele consigam colocá-lo na linha, que o risco da punição definitiva seja suficiente para evitar que ele continue matando. Pode inclusive achar que, depois de devorar algumas ovelhas, ele vá ficar de estômago cheio e parar com a matança, ao menos por algum tempo.
Tudo ilusão: ele não vai parar. Nunca.
Diante da caça, o cachorro que devora ovelhas entrará sempre em frenesi. Não parará nem mesmo diante do fim, podem acreditar. Mesmo isolado, mesmo encurralado ou na iminência do tiro fatal, ele vai sempre lembrar do gosto do sangue. E vai arreganhar os dentes. Ansiando por mais.
Sou gaúcho, mas não sou do campo, como vocês sabem. Ainda assim, creio que a sabedoria de quem vive no pampa é correta: quando se conclui que o cachorro virou caçador de ovelhas, o tempo de esperar que algo aconteça já passou. Quanto mais rápido a gente se livra dele, melhor.
Primeiro de abril é o dia da mentira. Para Jair Bolsonaro, todo dia é primeiro de abril. Primeiro de abril em 64, com o golpe militar que prometia trazer a democracia de volta. Dia da mentira em 2020, em que o presidente da república minimiza a pandemia de coronavírus, que já fez milhares de vítimas no mundo todo. Acrescenta-se a isso o fato de que ele continua estimulando as pessoas a saírem de casa e está consolidada a distopia que a gente só lia em livro ou via em filme.
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Para o povo brasileiro também, todo dia é primeiro de abril
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Porque parece que todo dia é dia de cair em uma pegadinha nova. ?Na noite de 31 de março, Jair Bolsonaro fez um pronunciamento (quase) comedido sobre o coronavírus. O mais próximo do decente que vimos nos últimos tempos. Mas em primeiro de abril já estava fazendo a alegria do picadeiro montado para sua claque em Brasília. O juízo não durou 12 horas.
Por isso, ouvimos a médica infectologista Ana Lúcia Didonet Moro, que fala sobre os erros e acertos das autoridades brasileiras. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
#coronavírus – Como explicar o momento atual para as crianças
Flávia Cunha
3 de abril de 2020
Dois de abril é o Dia Internacional do Livro Infantil e, por isso, a coluna Voos Literários volta a abordar a literatura feita para crianças, que pode e deve ser incentivada durante a quarentena em razão do coronavírus. A mudança de rotina promovida pelo isolamento social trouxe impactos para todos, inclundo os pequenos. Ansiedade e nervosismo infantis são relatos comuns devido à pandemia. A forma com que os adultos explicam a atual situação pode auxiliar a tornar esse momento de recolhimento menos estressante para a criançada. Selecionei três livros infantis para tratar não só sobre o coronavírus mas sobre outros assuntos que podem ser colocados no debate familiar: incentivar a solidariedade mostrando as diferenças sociais no Brasil e explicar os aspectos políticos por trás de tantos panelaços.
CORONAVÍRUS
A psicóloga argentina Guadalupe Del Canto lançou um livro infantil ilustrado gratuito com o objetivo de ajudar os pais a explicarem a pandemia para as crianças. O Escudo protetor contra o rei vírus tem versão original em espanhol. A obra já foi traduzida para português, inglês, alemão e sueco. Aqui tem a obra na língua portuguesa e também um vídeo com a narração do livro feita por uma contadora de histórias. O enredo explica a doença e como se prevenir dela, utilizando uma linguagem acessível e adequada para as crianças, ressaltando os cuidados preventivos para evitar a disseminação do Covid-19.
DIFERENÇAS SOCIAIS
A mobilização para ajudar pessoas com dificuldades financeiras, periféricas ou em situação de rua durante a quarentena pode chamar a atenção dos pequenos e trazer questionamentos que muitas vezes são difíceis de serem esclarecidos. O livro O que são classes sociais? aborda temas como desigualdade, riqueza, pobreza e injustiça social. A obra da editora Boitempo faz parte de uma coleção chamada Livros para o Amanhã, que também conta com os títulos A democracia pode ser assim, A ditadura é assim e As mulheres e os homens.
POLÍTICA
A pandemia do coronavírus chegou ao Brasil em um momento de polarização política e críticas ao presidente Jair Bolsonaro. Os panelaços na quarentena têm contado com a participação de crianças. Há diversos vídeos postados nas redes sociais mostrando a empolgação infantil com a barulheira. Então, que tal ensinar os motivos que levam aos ruidosos protestos nas janelas e ainda aproveitar para debater a respeito do processo político na democracia, aproveitando que esse é um ano eleitoral? Para ajudar nessa conversa, o livro Eleição dos Bichos, da Companhia das Letrinhas,é muito útil, sem deixar de lado o aspecto lúdico de uma boa obra de literatura infantil. Na história, o reinado do Leão é questionado pelos demais animais, insatisfeitos pelo fato dele ter desviado a água do rio para fazer uma piscina particular. Assim, começa uma campanha eleitoral entre a bicharada, com direito a candidatos, propostas políticas, debate e votação. Um glossário no final do livro facilita as explicações para os pequenos. O PDF do livro é disponibilizado gratuitamente.
LEITURAS E BRINCADEIRAS
Além das sugestões apresentadas, sugiro aproveitar o tempo de confinamento para estreitar os laços em família. Além da leitura de livros que já tenham em casa, os adultos podem aproveitar para propor brincadeiras e jogos educativos. Ficar em casa no atual momento é um ato de cidadania e de amor ao próximo.
Se puder, fica em casa!
Imagem: capa do livro O Escudo protetor contra o rei vírus/ Divulgação
OUÇA BSV Especial Coronavírus #1 Não é só uma gripezinha
Geórgia Santos
25 de março de 2020
Não há outro assunto a não ser a pandemia de coronavírus. Já são milhares de infectados no Brasil e milhares de mortes no mundo inteiro. Por isso, a partir desta edição, o Bendita Sois Vós vai se dedicar a entender todas as consequências do Covid-19. Não apenas as consequências físicas, mas também sociais, econômicas e políticas.
Em um país em que o presidente da República classifica a pandemia como histeria, é fundamental que tratemos a questão com informação e responsabilidade. Por isso, os jornalistas do Vós conversam com a médica infectologista Ana Lúcia Didonet Moro, que explica no que esse vírus é diferente de outros e a importância do isolamento social. O outro entrevistado é o psiquiatra Érico Moura, que fala sobre como lidar com o confinamento e o medo de se infectar.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Feminismo para quê? (Ou a sororidade em tempos de coronavírus)
Flávia Cunha
20 de março de 2020
“A situação de penúria, principalmente das pessoas mais pobres, era gravíssima. Muitas famílias gripadas passaram a não ter nenhuma renda, visto que estavam impossibilitadas de trabalhar. Sem nenhuma lei que protegesse os operários, estes se viram à mercê da caridade pública para suprirem suas necessidades mais básicas.”
1918 – A Gripe Espanhola: Os Dias Malditos, João Paulo Martino
A situação enfrentada por operários no Brasil com a pandemia de gripe espanhola guarda paralelos com o momento atual. No início do século 20, não havia direitos para garantir o sustento dos trabalhadores. Em 2020, o cenário brasileiro já assustador na mescla de crise financeira, desemprego, informalidade e precarização das relações de trabalho está claramente agravado com a pandemia do coronavírus.
Em um panorama tão desolador, as desigualdades sociais escancaram-se de forma explícita. Ainda vivemos em uma sociedade que as mulheres ganham menos que os homens, apesar das conquistas adquiridas nos últimos anos. Pesquisa recente revela que apesar de trabalharem mais horas e terem um grau de escolaridade maior, as trabalhadoras recebem menos. A média de rendimento feminino é de 76,5% do que um homem ganha. (Veja mais dados da pesquisa aqui.)
Para tentar reduzir essas desigualdades já existentes e agravadas pela recomendação de quarentena, foram criadas iniciativas para ajudar mulheres desempregadas, autônomas ou que atuam no mercado informal. Uma delas é o grupo público Boleto + 1, criado nessa semana no Facebook, e que já conta com cerca de 10 mil membros. A ideia é auxiliar mulheres que precisem de apoio para pagar contas, oferecer serviços ou dar sugestões de como conseguir manter os pequenos negócios em meio ao risco de contaminação pelo Covid-19. Homens podem participar do grupo, desde que a postura seja de ajuda às necessitadas, como uma forma de compensar a histórica desigualdade salarial entre os sexos.
VIOLÊNCIA
Não bastasse o efeito colateral do desamparo financeiro agravado pela pandemia, muitas ativistas feministas têm alertado para o aumento da violência doméstica devido à quarentena recomendada para evitar o contágio pela doença. Um levantamento divulgado há poucos dias pela ONU revela que, em dados globais, 28% dos entrevistados consideram justificado que maridos cometam agressões físicas contra as próprias esposas. Mas no Brasil, esse percentual chega a assustadores 77,95%. Fiquemos atentos: mulheres que vivem relacionamentos abusivos agora podem estar isoladas sofrendo agressões físicas ou psicológicas. Se ouvir, uma briga de vizinhos da sua casa, chame a polícia. A solidariedade também reside em não sermos indiferentes nesse momento.
POPULAÇÃO DE RUA
O feminismo também busca a redução das desigualdades sociais. Se puder ajude as pessoas em situação de rua, com mantimentos, itens de higiene pessoal ou doando recursos para projetos já existentes que atendem essa população.
SAÚDE MENTAL
Por fim, apesar desse texto começar com a citação de um livro sobre a gripe espanhola, recomendo leituras mais leves. A gigante Amazon, por exemplo, disponibilizou centenas de e-books gratuitos. Cuidar do próprio equilíbrio emocional e da saúde mental nesse momento ansiogênico é fundamental. Se puderem façam o isolamento social, além de seguir as já conhecidas recomendações de lavar as mãos e usar álcool gel. Cuidem-se!
O presidente Jair Bolsonaro acompanhou, da área externa do Palácio do Planalto, em Brasília, a manifestação de apoiadores de seu governo, que está sendo realizada neste domingo (15) na capital federal e em outras cidades do país.
Ao que parece, a opinião pública se cansou de Jair Bolsonaro.
Embora seja um marco que entrará para a história, o gesto de cumprimentar lunáticos de verde e amarelo que pediam golpe em pleno temor do coronavírus não é exatamente um ponto de partida. Na verdade, a impressão é de que Bolsonaro, eleito pela capacidade de ser o avatar dos recalques e preconceitos de uma nação inteira, perdeu há algum tempo o pulso das massas. Lembremos da patética insinuação de fraude no primeiro turno das eleições de 2018 – cometida, segundo o presidente, para impedir que ele fosse eleito em primeiro turno. A maluquice, ao que parece, tinha o objetivo de energizar sua massa de fanáticos e pressionar a Justiça Eleitoral; fora algumas falas discretas de TSE e Congresso, não teve efeito algum. Passou em branco.
Estamos acostumados a pensar em quanto as barbaridades de Jair Bolsonaro passam em branco para prejuízo da nação. Talvez precisemos começar a pensar em quanto esse passar em branco é prejudicial para o próprio Bolsonaro.
No exercício vulgar da política que Bolsonaro faz, uma polêmica que não acontece é uma agenda perdida. E a percepção de que os protestos de 15 de março falhariam – os protestos tão acalentados, propagandeados com uso da máquina pública, capazes de dar fôlego ao sonho autocrático de quem sempre detestou a democracia – parece ter pesado sobre a mente do presidente. Até Luiz Henrique Mandetta, o até então discreto ministro da Saúde, recebia aplausos na imprensa, jogando o presidente (em sua visão, ao menos) para segundo plano.
Cego pelos piores sentimentos políticos, Bolsonaro não enxergou a sombra do coronavírus pairando sobre o país.
Diante de uma doença potencialmente trágica e que apavora todo o mundo, era hora de recuar. Mas Bolsonaro, animal político xucro que é, não recua jamais. Avançou aos pinotes, sonhando com os aplausos da claque, com multidões reacionárias enfrentando o medo do Covid-19 em nome de um Brasil livre dos comunistas. Decidiu ignorar os médicos e a decência, rompendo o próprio isolamento para apertar mãos e tirar selfies junto à turba demente que gritava seu nome.
Apostou errado, em mais de um sentido. Para praticamente todo o mundo que assistiu do lado de fora, os atos ficaram marcados como o que de fato são: um desfile de gente louca e inconsequente. Bolsonaro, por sua vez, surge coma figura vil que quer virar ditador e não tem vergonha de fazer política rasteira em meio à promessa de cadáveres – algo que, sejamos justos, descreve de modo exato o que ele efetivamente é. Longe de ficarem emparedados pelos protestos, Congresso e STF saíram com uma disposição renovada para anulá-lo de vez – com direito a humilhação pública, na figura de um gabinete de crise no qual o Presidente da República sequer foi convidado a tomar assento.
Com protestos de adesão modestíssima, analistas internacionais enojados e uma economia em queda livre, o que os nobres deputados e magistrados têm a temer de Bolsonaro?
Atacou fraco. Abriu o flanco. E agora está sofrendo – e sentindo – o contra-ataque.
Desde ontem, panelas e gritos de Fora Bolsonaro se fazem ouvir das janelas em quarentena do Brasil. Janaína Paschoal, que esteve perto de ser vice na chapa que o elegeu, desancou Bolsonaro com fúria quase inédita; Reale Jr., por sua vez, pediu uma junta médica para avaliar a sanidade mental do presidente. Ninguém, absolutamente ninguém ergueu-se em seu auxílio. Mesmo os militares, sempre evocados como força capaz de impor a ordem a um país de devassidão e petismo, seguem guardando um significativo silêncio. E as ruas, que sempre acreditou serem suas (o que era verdade até a facada, e nunca mais voltou a ser depois disso), agora cospem em seu rosto.
A irresponsabilidade de Bolsonaro não despertou apoio, mas fúria. Deu aos que se opõem a ele uma oportunidade e um sentimento coletivo.
O que todos sabiam, mas nem todos expressavam, agora ganhou voz e significado: o presidente é um imbecil. Uma figura asquerosa e vulgar, que não se importa com nada que não nutra relação direta e imediata com seus delírios de autocrata. Um fraco. Alguém que ri e tira selfies enquanto o povo sofre e tem medo. O pretenso homem do povo é uma caricatura tosca do flautista do conto de fábulas, conduzindo ratos golpistas cheios de doença em uma melodia de talkeis.
Que golpe poderá Bolsonaro dar, em semelhante cenário? Aí está: nenhum. E o que poderá fazer Bolsonaro para recuperar o pulso perdido das massas, em um horizonte que pode trazer longos meses consecutivos de quarentena coletiva? Isso mesmo: nada.
Na política, nada é irreversível. Talvez as coisas mudem rapidamente, e nas próximas semanas já tenhamos de novo um Jair Bolsonaro confiante e dono da situação. Hoje, contudo, parece claro que Bolsonaro não tem mais as rédeas em mãos. As decisões que importam sobre o coronavírus estão sendo tomadas à revelia, enquanto o suposto líder fica murmurando ameaças frouxas via imprensa. Um pedido de impeachment, bem ou mal elaborado que seja, já está na mesa de Rodrigo Maia. E os edifícios do país começam a bater panela, exigindo que o presidente pegue o boné e vá embora de uma vez. Se gritarem bem alto, não duvido que consigam, mais cedo ou mais tarde.
A verdade é que os ventos da política brasileira viraram. Desde domingo, o afastamento de Bolsonaro tornou-se uma possibilidade real, ainda que não imediata. O sonho de golpe virou um bumerangue, que tem tudo para acertá-lo na cara.