Igor Natusch

Mesmo se não concorrer, Lula pode decidir a eleição – e ele sabe disso

Igor Natusch
13 de dezembro de 2017
07/12/2017- Rio de janeiro- Visita do ex-presidente Lula em Magé, no Rio de janeiro Foto: Ricardo Stuckert

Há algum tempo vem sendo dito em diferentes cantos da internet – por aqui, inclusive – que a ideia que move a pré-campanha de Lula à presidência nem é tanto viabilizar de fato a candidatura, mas inviabilizar ao máximo decisões judiciais que o tornem inelegível e, em última consequência, o coloquem na prisão. A situação se torna mais sólida na medida em que o TRF-4, com agilidade de todo incomum, já tem marcada a data do julgamento do barbudo: em 24 de janeiro do ano que vem a coisa começa, para o bem e para o mal, e o Brasil que se vire com um ano político já começando em tal intensidade.

Mesmo que o ex-presidente seja condenado em segunda instância (um cenário, no mínimo, bastante plausível), há considerável espaço para movimentos jurídicos de caráter protelatório, que podem arrastar a situação e permitir a candidatura. Mas penso eu que nem é esse o grande debate no momento.

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A questão é: Lula está mesmo determinado a concorrer à presidência? Ou trabalha com outros cenários, cogitando – e talvez até mesmo construindo – uma situação favorável a outro candidato que não ele próprio?

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Quem observa com atenção os recentes discursos do líder petista percebe que ele constrói duas narrativas paralelas. Em primeiro plano, coloca a si mesmo como um perseguido pela Justiça e por setores retrógrados do poder político nacional, um injustiçado que pode ir à cadeia sem que exista qualquer prova dos crimes que supostamente teria cometido. A outra esfera, menos óbvia, talvez, é talvez ainda mais importante: a de resgate de um passado recente pretensamente idílico, de negação das reformas promovidas pela gestão de Michel Temer ao mesmo tempo que acena para possíveis gestos de conciliação – algo que, vale dizer, ele está longe de ser a pessoa mais capacitada, neste momento, para propor.

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A primeira dimensão não é uma plataforma política, por assim dizer. A segunda é. A primeira é, por óbvio, indissociável de Lula e de sua imagem; a segunda, não. Ao contrário: talvez seja ainda mais palpável na medida em que o barbudo não esteja no centro do cenário

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Condenar Lula em segunda instância já é uma batata quente daquelas, com consequências políticas e sociais difíceis de prever. Há quem pense que a letargia da população facilita um cenário onde Lula vai pro xilindró; pessoalmente, não acredito muito nisso. Prender o ex-presidente é contrariar diretamente quase 40% da população que, segundo as pesquisas, manifesta interesse em elegê-lo novamente. Quem acha que isso pode ser feito sem que haja barulho e reação ou está na torcida, ou está sendo ingênuo.

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Nesse sentido, é possível inclusive dizer que Lula já teve sucesso – ou alguém acha mesmo que, condenado, ele viraria um proscrito, seria rejeitado pelas massas que hoje o veneram, deixaria de ter qualquer importância nos rumos políticos do Brasil?

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Ao contrário: talvez um veredito desfavorável o fortaleça ainda mais.

É difícil dizer, nesse momento, quem seria o plano B de Lula e do PT. Talvez uma figura mais jovem e menos desgastada da sigla, como Fernando Haddad? Quem sabe um outro candidato qualquer, sem chance de vitória, mas como um aceno a outras figuras de centro-esquerda, como Ciro Gomes ou até mesmo Marina Silva, para uma aliança no segundo turno? São cenários possíveis – e seguem perfeitamente possíveis, dentro do posicionamento que Lula vem adotando até aqui.

Longe da “radicalização” pintada pelos que desejam colocá-lo como o extremo oposto de um Bolsonaro, Lula usa um discurso não só palatável para diferentes setores de oposição, mas que também pode colar com quem está cansado de guerra e pode ver como injustiça uma eventual nova condenação. E que possivelmente concorda com a ideia de que Dilma Rousseff foi injustiçada, outra narrativa bem construída pelo ângulo petista da discussão política. Há força e viabilidade eleitoral para um candidato de Lula, seja o próprio Lula ou não. E isso faz com que o julgamento no TRF-4, mesmo importantíssimo, não seja tão definitivo politicamente quanto parece.

Foto: Ricardo Stuckert

Igor Natusch

A batalha contra a corrupção acabou. E foi o sistema quem venceu

Igor Natusch
18 de outubro de 2017
Brasília - Senador Aécio Neves retoma as atividades parlamentares no Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A decisão do Senado de devolver mandato a Aécio Neves, mesmo com as volumosas e graves denúncias que o atingem, é desoladora para a política brasileira em diferentes níveis. A partir dela, consolida-se de vez uma leitura que já era possível antes, mas que agora torna-se inescapável: o lado corrompido do sistema político saiu do córner, a suposta luta contra a corrupção subiu no telhado e a lei, aquela mesma que o título do filme ufanista e delirante diz que é para todos, segue sendo uma gripe que pega em alguns, mas contra a qual outros estão permanentemente vacinados.

Muito se falou – e com plena justificativa – no esdrúxulo voto final da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, dando aos parlamentares a prerrogativa de derrubar as medidas cautelares que afastavam Aécio do Congresso. Foi um voto gaguejante, tropeçando na própria falta de convicção, e nem poderia ter sido diferente: ficou claro que nisso votou porque assim precisava votar, e nada mais. O Supremo contradisse sua própria leitura nos casos de Delcídio do Amaral e Eduardo Cunha – e, como bem apontado por Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha, a diferença entre antes e agora é que o PT não é mais governo, a maré virou e a direita fisiológica retomou as rédeas das instituições, controlando-as novamente a seu bel prazer.

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Falta respaldo ao STF para peitar o grupo que hoje detém o poder político: na mídia, nos supostos movimentos contra a corrupção, nas multidões que hoje não se preocupam mais em ir às ruas

Respaldo que sobrava quando o PT tinha o governo em mãos

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Tergiversações possíveis são muitas, mas os fatos estão na mesa, e não irão embora tão facilmente. Cármen Lúcia, que não é tola, percebeu isso, e preferiu ajudar a concretizar a profecia de Romero Jucá a declarar uma guerra que tinha pouca esperança de vencer.

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A corrupção nunca foi o problema; de fato, muitos desejam que continue sendo a solução

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Para esses núcleos, a eleição de Dilma era inaceitável desde o início, e a constatação nada tem a ver com simpatia pelo (muito ruim) governo da presidente deposta: é simples questão de desejar o poder de volta, depois de um empréstimo que havia sido vantajoso para todos, mas passava a ser cada vez mais difícil de sustentar. Ter o poder era importante, para fugir da cadeia e para garantir a benevolência dos detentores do poder econômico. Lançado o governo petista aos leões, e imolados os nomes com os quais a estabilidade seria mais difícil, a briga da nova aliança passou a ser jogar panos quentes na dita moralização do país. Assim foi feito. E o cafuné na cabeça de Aécio é só uma das manifestações mais visíveis desse grande e, até o momento, muito bem-sucedido acordo.

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Ler figuras importantes da Lava-Jato dizendo que a operação está sendo mutilada é um tanto tragicômico: estavam mesmo tão fascinados com as manchetes, tão absorvidos pela aura messiânica em torno de si próprios que foram incapazes de perceber que era justamente essa a ideia o tempo todo?

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Alertas não faltaram. Ainda falta a condenação em segunda instância de Lula, o grande prêmio dessa cruzada pela justiça seletiva e o ato final que amarra várias pontas da trama: impede a única candidatura petista viável, satisfaz de vez as massas que associam todas as mazelas do Brasil ao PT, oferece um apoteótico ponto final a uma operação que fez muito, mas que o novo-velho poder fisiológico não deseja mais que avance um palmo sequer. Lula ser ou não culpado é o que menos importa nessa trama: estaremos todos purificados, reconciliados com a ideia de que a lei é mesmo para todos, prontos para recomeçar exatamente de onde se parou.

A narrativa dos que encontraram no impeachment de Dilma Rousseff uma chance de salvação estará encerrada, provavelmente com sucesso. E aos integrantes da força-tarefa restará o papel com o qual concordaram e do qual, hoje, reclamam sem grande convicção. Ou então adotar de vez novos papéis, como novos atores no espetáculo renovado do toma-lá-dá-cá.

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Enquanto isso, os movimentos que nos queriam livres da corrupção seguirão gritando contra homens nus em museus, os patos gigantes seguirão desinflados, as panelas seguirão descansando nos armários das cozinhas, os editoriais seguirão tentando nos convencer que as coisas estão melhorando aos poucos

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Sem ter motivos para temer a opinião pública, o fisiologismo viceja, como uma erva daninha que se favorece do sol depois da tempestade. Tudo mudou, e tudo segue igual – pelo menos até as eleições do ano que vem. E já estão trabalhando nisso, é claro. É assim que deve ser. Agora vai.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Igor Natusch

Palocci ataca não o Lula candidato, mas a imagem de homem honesto

Igor Natusch
27 de setembro de 2017

Não sei se a carta de desfiliação de Antonio Palocci, divulgada no começo da semana pela imprensa e que traz duras palavras contra o PT e Lula, tem o poder de, sozinha, colocar na lona o ex-presidente. Acredito que não, inclusive, já que Lula tem demonstrado uma capacidade impressionante de sobrevivência em meio à artilharia pesada contra ele. Mas é um documento não apenas pesado e constrangedor, mas histórico por todas as suas implicações. E que, além do impacto jurídico (que depende da devida investigação para se concretizar), traz um efeito político que é simplesmente impossível de ignorar.

Palocci não é um qualquer. Trata-se de uma das figuras mais importantes de todo o período de governo petista – e reforçar essa quase obviedade é importante, porque ela precisa ficar acima de argumentos relativizadores, que tentam colocar as palavras do ex-ministro de Lula e Dilma como mero espernear desesperado de um homem que deseja fugir de um longo período de prisão. Reduzir um estrategista inteligente como Palocci, figura central em todas as decisões da alta cúpula do partido nas últimas duas décadas, a um mentiroso que quer escapar do cárcere é quase ridículo, é quase tirar os outros para idiotas. O que Palocci diz tem peso simplesmente por ser dito por Palocci, e qualquer análise do que é dito que menospreze esse peso é defeituosa de nascença, para não dizer coisa pior. Isso posto, podemos avançar.

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Muito além das acusações claras de malfeitorias que teriam sido cometidas, Palocci atira contra a imagem de Lula, contra a construção que o coloca como honesto e corajoso herói do povo brasileiro enfrentando malvados que querem destruir tudo que ele construiu

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É uma construção intencional, que vem sendo feita desde antes da consumação do impeachment de Dilma Rousseff, e que no caso dela funcionou bem – convenhamos, não dá para dizer que a maioria do povo brasileiro veja a ex-presidente como uma ladra e criminosa, muito pelo contrário. Para Lula, essa construção é não só estratégica, mas uma chance de sobrevivência diante de acusações cada vez mais difíceis de rebater. O abismo que eliminou o meio-campo na discussão política não apenas é aceitável, mas desejável e incentivado nessa situação.

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Diante da forte possibilidade de ser preso e tornar-se inelegível, Lula precisa ser heroico, não apenas para seguir forte como possível candidato em 2018, mas para que seja crível transformá-lo em mártir, caso não consiga concorrer e acabe condenado em segunda instância. Quem vê a provável candidatura como uma chance de salvar o Brasil está sendo ingênuo ou enganando a si mesmo: não há projeto algum, apenas oportunidade e tábua de salvação. Ou alguém escuta, nos discursos cada vez mais apelativos do barbudo, algo além de retórica e malabarismos, algo que indique um plano coletivo, qualquer coisa além da reafirmação obsessiva de si mesmo e do próprio caráter histórico?

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É essa construção de narrativa o grande alvo da carta de Palocci. Ele não fala apenas à força-tarefa que investiga Lula, dizendo que tem o que oferecer em troca de uma fatia maior de liberdade; ele fala também na direção de Lula e do PT, dizendo que tem lama nas mãos, e está disposto a arremessá-la se julgar necessário.

“Até quando vamos fingir acreditar na autoproclamação do ‘homem mais honesto do país’, enquanto os presentes, os sítios, os apartamentos e até o prédio do Instituto (!!) são atribuídos a Dona Marisa?” Nessa frase, o que está antes da primeira vírgula talvez seja mais importante do que o que vem depois.

Julgar que um homem capaz dessa frase está apenas desesperado é, de novo, um argumento pífio. Estamos diante não de uma metralhadora de acusações aleatórias, mas de um efetivo estrategista político – e que, capaz de refinado raciocínio político que é, ataca seus outrora aliados onde o golpe é mais duro: na imagem de homem honesto e injustiçado em torno de Lula, o mais valioso elemento político de que dispõem no momento. Chega a insinuar um acordo de leniência, proposto por João Vaccari, que envolveria o próprio Partido dos Trabalhadores – e que, é claro, tem valor apenas argumentativo, já que seria impossível sem colocar o grande nome da sigla na berlinda de forma possivelmente definitiva.

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Com sua carta, Palocci frisa que não é um homem honesto, e o faz justamente para acentuar a possível hipocrisia de quem, tendo feito o que se diz que tenha feito, vende a si mesmo como bastião de bravura e honestidade

Não sou honesto, diz Palocci- e, sem ser honesto, estive ao lado daquele que se diz o mais honesto de todos, conheço bem todas as suas fachadas e tenho meios para derrubá-las

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Do ponto de vista estritamente político, discutir se Lula é culpado ou não das coisas que Palocci afirma ou insinua é contribuir para a aura em que ele e a cúpula partidária apostam nesse momento caótico. Debater se Lula é inocente ou culpado é sujeitar-se aos termos de uma cisão que interessa aos atores em disputa, e não necessariamente a quem tenta entender esse cenário. O central, me parece, é discutir se Lula segue capaz de dizer-se inocente – ou, dito de outro modo, até que ponto é visível a diferença entre ele e outros tantos que foram parar na prisão ou que estão com a imagem manchada. Quando o ex-presidente bate no peito e diz que é o homem mais honesto do país, o quão convincente ele é?

Para o líder petista, ser condenado é menos importante do que, condenado ou não, manter seu capital político em pé. E o maior risco que Palocci oferece não é ajudar a prendê-lo, mas ter força para colocar sua imagem pública no chão. É esse embate o que mais interessa, em termos de futuro político do país.

Foto: Bruno Spada/ABr.

Igor Natusch

NA GRAVAÇÃO DE TEMER, É PRECISO OUVIR TAMBÉM O QUE NÃO SE DIZ

Geórgia Santos
19 de maio de 2017
Foto: Beto Barata/PR (Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Beto Barata/PR

Não resta dúvida que, quando as manchetes dizem que o Presidente da República concordou com o pagamento de mesada a um político preso para que ele não faça delação, temos todos e todas que prestar muita atenção. A comoção em torno da afirmação foi tão grande que a revelação dos áudios da fatídica conversa de Michel Temer com Joesley Batista, presidente da JBS, acabou parecendo menos grave do que de fato é, já que o “tem que manter isso aí, hein” não é tão explícito e espetacular quanto as transcrições davam a entender.

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Verdade que, mesmo assim, Temer é um cadáver político e seu governo, seja lá a sobrevida que eventualmente tenha, está em processo visível de decomposição pública – e não vai ressuscitar, a não ser que apareça um Jesus Cristo do céu dizendo “levanta-te e anda” para esse Lázaro coberto de vermes.

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Mas eu queria destacar outro elemento nessa gravação – que, ao contrário da satisfação do não-vice-presidente com Joesley estar “de bem” com Cunha, não fica preso a uma frase pretensamente definitiva, dissolvido que está em quase todos os momentos do diálogo. Joesley fala que está “segurando” juízes, que conseguiu “um procurador dentro da força tarefa” que está passando informações – e a essas afirmações chocantes Michel Temer reage com naturalidade, sem nenhuma surpresa, sem manifestar nem digo indignação, mas um toque que fosse de incredulidade.
O que interessa aí é mais o não dito do que o efetivamente pronunciado: não apenas o chefe do Executivo federal não demonstra reação diante desses absurdos (ao contrário, parece no mínimo desinteressado a respeito) como também não se sabe de qualquer ação posterior, que tenha pedido esclarecimentos sobre a situação, que tenha orientado algum ministro ou secretário para tomar alguma providência ou, no mínimo, buscar informações.
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Recebe um investigado, conversa furtivamente com ele na garagem do Jaburu, ouve que ele faz esforços hercúleos para corromper a investigação que o ameaça, não solta um gemido sequer de desagrado e volta para seu palácio, sem tomar qualquer providência. E querem me convencer que está tudo bem

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Eles, os mesmos que hoje ocupam o Planalto após condenarem os crimes do governo anterior – eles agora querem me convencer que Joesley falava e Temer ouvia, que não era um diálogo entre cúmplices que dividiam interesses, que essa fumaça tomando conta da casa é oxigênio colorido e não sinal de incêndio.
Já é possível localizar, em certos veículos de imprensa, o esforço de apagar as chamas, adotando rótulos como “inconclusivo” e outras contemporizações. Um esforço condenado ao ridículo, com encher baldes no chuveiro do banheiro para combater o incêndio que devora a sala e a cozinha. Já temos mais: a afirmação de que Temer pediu dinheiro para influenciar na posição das redes antes do impeachment de Dilma Rousseff, para a campanha de Gabriel Chalita em São Paulo, em 2012 e até para “despesas de marketing” contra ataques na internet.
A delação já está homologada e, ao contrário de outras tantas, vem acompanhada de evidências obtidas de forma controlada pela Polícia Federal – ou seja, não estamos apenas no terreno do dito contra o não dito, não está apenas no peso das palavras a doença que devora a carcaça do governo Temer. E que já devorou politicamente Aécio Neves, e que tem fôlego para deixar o sistema de Justiça de orelhas em pé – já que, como sabemos, apenas um dos homens no bolso de Joesley Batista está atrás das grades no momento. A promessa é de muito, muito barulho nos próximos dias – e o estrondo não está apenas no que se ouve, mas talvez ainda mais no que não se diz ou se tenta não dizer.
Foto: Beto Barata/PR
Igor Natusch

O sigilo da fonte não é para Eduardo Guimarães: é para todos nós

Igor Natusch
22 de março de 2017
Jornalismo. Foto: Igor Natusch

Um jornalismo sem capacidade de obter informações sensíveis é frágil e submisso – e é exatamente isso que políticos mal intencionados querem

A condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães, responsável pelo Blog da Cidadania, foi mais um dos gestos questionáveis oriundos da força-tarefa da Lava-Jato – uma investigação (e digo desde já para tirar essa pedra do caminho) muito importante, plenamente justificada e que deve, sim, ser conduzida até o limite, sem piedades ou simpatias eletivas. O pior dela, porém, não é o procedimento jurídico questionável em si, mas seu objetivo confesso: forçar o blogueiro a revelar quem havia vazado a informação, depois confirmada, de que Lula seria alvo direto de ações da operação. Ou seja, Sergio Moro e seus colegas queriam que Guimarães abrisse mão do sigilo da fonte, um dos pilares que sustenta toda a atividade jornalística. Para justificar a ação, a Justiça Federal do Paraná lançou uma nota onde, entre outras coisas, se lê o seguinte:

“Não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo. A proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma.”

Isso não é novo. Há tempos jornalistas brasileiros têm sido assediados, de diferentes formas, para que revelem fontes de interesse para suas investigações. Eu mesmo, quando editor do Sul21, passei por algo parecido, ao acompanhar um colega chamado a depor pelo singelo motivo de ter entrevistado um representante de um movimento social – que não quis se identificar na matéria, e que a polícia desejava identificar a qualquer custo. Na ocasião, invocar o direito sagrado de sigilo da fonte foi suficiente – mas não são poucos as movimentações que querem relativizar ou mesmo acabar com essa barreira.

O motivo pelo qual esse direito constitucional não pode cair está no próprio texto da Justiça Federal paranaense. Quem definirá a linha de corte? Sua Majestade, o excelso Juiz Federal? Um Homem ungido para dividir bons e maus com um golpe de sua justa espada, eternamente iluminado e infalível? Caberá a ele, o Juiz Federal, determinar quem faz comentário jornalístico e quem não faz, quem dá notícia e quem não pode dar – e a nós todos não caberá senão dobrar os joelhos de forma obediente, aceitando a decisão do excelso Juiz como pia, boa, justa e severa na medida certa? Ou talvez caiba ao Deputado ou ao Senador, eleitos pelo voto popular, iluminados pelo aval do povo para dizer quando a fonte pode ficar em segredo e quando não pode? Talvez possa ser o Presidente, o mais poderoso entre todos, a figura a delimitar essa fronteira – afinal, ele será justo, será desinteressado, pensará exclusivamente no bem de nossa combalida coletividade?

Ninguém em sã consciência acredita nisso. Justamente porque o sigilo permite que essas mesmas pessoas – o deputado, o presidente, o juiz federal até – sejam denunciados e investigados por seus supostos malfeitos, como tantas vezes já se viu. Se fiscalizar os poderes é uma das funções do jornalismo (e inegavelmente o é), enfraquecer sua capacidade de obter informações sigilosas é decepá-lo, tanto faz se com boas ou más intenções. Que o jornalismo hoje é, na média, submisso ao interesse de fontes, infelizmente é algo notório – e algo que se revela tanto nos vazamentos seletivos quanto em situações como as “entrevistas informais” de promotores da Lava-Jato com jornalistas selecionados, situações igualmente subservientes e questionáveis. O fim da obrigatoriedade do diploma (e não estou fazendo juízo de valor a esse respeito, deixando claro) também contribui para esse quadro de incerteza. Mas são problemas que a atividade precisa resolver consigo mesma, pelos próprios mecanismos, sem a necessidade de uma voz iluminada surgida do firmamento para trazer uma resposta. Mesmo porque, como diz de forma cristalina o texto constitucional:

XIV – e assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional

Sim, eu sei que você percebeu: o trecho não fala em “ser jornalista”, o que hoje está menos definido do que nunca, mas em “exercício profissional”. Tire daí as suas conclusões.

Eduardo Guimarães é um blogueiro pelo qual não tenho absolutamente nenhuma admiração. Seu trabalho me parece, em vários aspectos, lamentável. Seu blog parece mais uma ferramenta de guerra política, financiada por setores políticos – não raro, e de forma profundamente condenável, com dinheiro público. É um fenômeno para mim repulsivo, e que fará muito bem em desaparecer para sempre. Mas quem dá informação (e, mesmo por linhas tortas e não raro mal cheirosas, é o que o blogueiro fez) exerce, em princípio, uma atividade jornalística – e, mesmo que tenham retirado a régua legal para delimitar as fronteiras da atividade, não é nada seguro confiar essa decisão à subjetividade da autoridade de ocasião.

Políticos, integrantes do Judiciário, empresários de vulto, grandes proprietários rurais – todos, na medida em que eventualmente tenham maus interesses, vão se sentir bem mais à vontade na medida em que jornalistas tenham (ainda mais) dificuldade para atuar. E, na medida em que eu diminuo o direito de Eduardo Guimarães de preservar sua fonte sem ser coagido a revelá-la, estou encorajando um monstro muito feio que, na primeira oportunidade, baterá à minha porta. E à sua também. Discutir se Eduardo Guimarães é ou não jornalista é uma forma engenhosa de desviar a atenção do principal: o que querem remover dele, e a partir daí pode ser removido de todos e todas, é um direito constitucional fundamental para o jornalismo. Se a definição de quem é jornalista ou não tornar-se algo subjetivo, algo que a autoridade da vez decide no poder de um canetaço, estamos todos sob risco – não só os profissionais, mas a sociedade inteira e sua capacidade de fiscalizar poderosos, em todas as esferas.

Foto: Igor Natusch