Voos Literários

22 anos sem Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
27 de fevereiro de 2018

Em fevereiro de 1996, partia para outro plano o escritor da paixão. Caio Fernando Abreu se foi, mas ficou a obra, o legado de escrita visceral que ganhou novo fôlego por meio das redes sociais.

Caio F., como gostava de assinar em sua correspondência a amigos, foi extremamente corajoso ao expor o diagnóstico de HIV positivo publicamente em uma época em que o assunto ainda era tabu. Selecionei um trecho do livro Cartas, organizado por Italo Moriconi e lançado em 2002. No texto escrito para Maria Augusta Antoun e datado de 1º de dezembro de 1995, Caio comenta sobre o pouco de tempo de vida que imagina ter, devido ao estado precário de saúde:

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“[…] e eu barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos mais uns seis livros. Estou escrevendo. Sei que o tempo que eu tiver será exato. E sei também que pode acontecer não “um milagre”, mas uma sobrevivência maior. Há novos remédios e uma maladie muito recente. Talvez a cura esteja chegando? Sei que tenho tido uma fé enorme. E me sinto um homem de sorte — estou protegido, cercado de amor. A dor, a morte, pouco importam (ou é só o que importa), porque são parte da condição humana. Mas que se tenha uma vida completa, que se possa passar por ela deixando algo bom para o planeta, para os outros. Vezenquando penso que, no que escrevo, quase consigo. E me sinto sereno. Mas quero fazer mais. Não sinto culpa nem revolta, nem remorso, em nenhum momento algum sentimento escuro. Dores sim, físicas. Mal-estares, fragilidades terríveis. […] E descobri que somos muitíssimo mais capazes de suportar a dor do que supomos. Vide Frida Kahlo.”

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Caio, que sempre foi uma pessoa angustiada, descobre no final da existência uma tranquilidade que não conhecia até então. E também aproveita a carta para perguntar sobre Vera Antoun, a sua única namorada “oficial”, antes de decidir assumir sua homossexualidade:

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“A gente se dá conta tarde de que a felicidade é fácil, não? Gostaria de saber mais de você e de toda a família. Sei que Vera formou-se em Medicina, encontrei-a certa vez (uns 15 anos?) na praia. No meu último livro, Ovelhas negras, tem um conto chamado Lixo & purpurina em que ela é personagem (com o nome de “Clara”). Dificilmente poderei escrever assim longamente outra vez para você. Meu tempo é medido — saúde, jardim, literatura. E há muita coisa profissional a ser tratada — traduções, publicações no estrangeiro, crônicas para jornal. Estou pagando todo o meu tratamento (é caríssimo: acabo de sair de uma radioterapia de seis mil!), o que me deixa muito orgulhoso, mas também fatigado.”

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A versão impressa do livro Cartas, uma preciosidade para os fãs da obra de Caio Fernando Abreu, está esgotada há alguns anos. O texto acima eu copiei do exemplar que tenho em casa. Para quem ainda não leu a obra em questão, resta procurar em sebos a preços bastante altos – cheguei a ver por R$ 200,00 na Estante Virtual. Outra opção é a versão atualizada em e-book, disponível aqui.

Porém, para que os desavisados não imaginem que Caio Fernando Abreu sempre foi o cara zen da época pós-diagnóstico, também selecionei um texto bem polêmico escrito por Caio durante a campanha para a eleição presidencial de 1989. Ele foi chamado pelo Jornal do Brasil para criar um texto sobre o então candidato Fernando Collor de Mello.

Caio, no mais autêntico espírito rebelde, oferece ao JB um conto em que Fernando, ainda menino, faz um pacto com o diabo. O texto acabou censurado, como explica o autor no trecho abaixo:

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“O jornal pediu para o Márcio Souza escrever sobre o Lula e eu faria o mesmo com o Collor. Escrevi a história de um menino que sonha com um garoto ruivo e manco. No dia seguinte, vai para as pedras do Arpoador, no Rio, e lá aparece o garoto. Ele pergunta ao menino Collor se quer ser o dono de um país inteiro. Ele diz sim. E o garoto acaba comendo ele – era o demônio. O conto se chama O Escolhido. O José Castello, que era o editor, disse que a cúpula do jornal optou por não publicar. Quando o Collor ganhou, liguei e disse: “Por causa de covardia como a de vocês é que o cara foi eleito”.

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Vocês podem ler mais textos do blog Voos Literários sobre Caio Fernando Abreu aqui, aqui e aqui. Caio uma vez falou: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi”. Façamos sua vontade.

A foto selecionada para esse post é da exposição Doces Memórias, realizada em homenagem a Caio F., há alguns anos, em cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Igor Natusch

Pegar carona no MBL não é só alegria – e Marchezan sentiu o recado

Igor Natusch
13 de setembro de 2017
12/09/2017 - PORTO ALEGRE, RS - Ato contra o cancelamento da exposição Quuermuseu, no Santander Cultural. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em meio à gritaria e à sucessão de acontecimentos envolvendo o lamentável encerramento da mostra Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre (acontecimento que abordei, numa pegada um tanto diferente, em meu perfil no Medium) uma aparentemente pequena, mas na realidade bem significativa mudança de posição passou quase despercebida. Trata-se do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, que postou em redes sociais uma mensagem que parecia endossar, sem qualquer crítica, os argumentos usados no ataque às obras – apenas para, poucas horas depois, deletar tudo sem comentários e sem explicações.

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Claro que nada há de intrinsecamente errado em postar algo e, pouco depois, arrepender-se. Convenhamos, quem nunca? O que interessa, aqui, não é o gesto em si, mas o recuo que ele traz, de todo incomum em um prefeito que se esmera em manter uma imagem de convicto e determinado. E é claro, os motivos que levam a essa reconsideração

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É bastante claro que o MBL, tão destacado nos protestos que levaram ao fim o governo de Dilma Rousseff, tem corrigido a rota de seu discurso nos últimos tempos. A luta contra a corrupção, fundamental em seu surgimento e que alçou seus jovens líderes ao insólito status de referências no tema, deixou de centralizar as ações do grupo – cedendo espaço a uma oposição menos política e mais, digamos, moral aos supostos pecados da esquerda.

Na medida em que enfraquece a suposta disposição de punir todos os corruptos, doa a quem doer – uma vez que não é possível apagar da internet todas as mensagens de apoio do MBL a Geddel Vieira Lima, Aécio Neves, Eduardo Cunha e tantos outros – surge forte o combate à suposta doutrinação ideológica promovida pelos inimigos, em especial contra a juventude indefesa. Depois da cruzada contra a lavagem cerebral nas escolas de São Paulo, surge a luta contra a imoralidade na arte, tudo em uma linguagem superlativa que beira a carolice.

A ideia é clara: aproximar o MBL dos núcleos mais conservadores, ao mesmo tempo que joga com o senso comum e com angústias primais de boa parcela da população. Engaja, com esse apelo ao moralismo chão e sem nuances, diferentes tipos de medo, diferentes preconceitos, diferentes obsessões. Talvez se possa dizer que distancia-se de Aécio e anda na direção de Bolsonaro, ou ao menos daqueles que nele desejam votar ano que vem. É um movimento de alinhamento político e, neste momento, é impossível dizer se vai funcionar ou não. Eu, pessoalmente, não duvidaria.

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A questão: esse movimento é interessante para Marchezan?

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Que o prefeito é no mínimo simpático ao MBL é sabido desde o começo de seu mandato. Traz pessoas próximas ou inseridas no grupo em diferentes esferas do Executivo, recebe alegremente integrantes em seu gabinete e adota, como já referi antes por aqui, uma postura de fidelização midiática que tem muito a ver com o modo que o MBL escolheu para fazer política.

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Até então, essa agenda vinha sem oscilações; neste começo de semana, porém, houve uma mudança. Talvez pela primeira vez em todo o governo, Marchezan recuou. O que causou esse passo atrás?

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Ler qualquer uma das declarações do secretário de cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, após o fechamento da exposição ajuda a entender esse movimento. Mesmo longe da unanimidade, Alabarse é um homem da cultura, fortemente inserido no meio e que jamais poderia aceitar (como não aceitou) o encerramento de uma mostra de arte em meio a um verdadeiro frenesi de moralismo, como foi o caso. Ao mesmo tempo, é um dos mais enfáticos e leais secretários de Marchezan, ao ponto de escrever um artigo um tanto quanto caricato ao jornal Zero Hora, comparando o prefeito a Caetano Veloso. Some-se isso tudo ao post de Marchezan falando em pedofilia e zoofilia na exposição Queermuseu e teremos, senhoras e senhores, uma conta que não fecha.

Pela primeira vez, Marchezan viu-se diretamente confrontado com as dificuldades políticas envolvidas em sua aproximação com o MBL. Antes apenas sorvendo os bônus dessa parceria, teve que entender, na marra, que essa brincadeira tem seus ônus também – e que nem todos combinam com a imagem de político dinâmico, convicto e moderno que Marchezan anseia para si.

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Nada há de moderno em proibir acesso à arte, ao contrário: trata-se do que de mais velho, rançoso e retrógrado pode existir na política e no pensamento como um todo

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Se a primeira reação, dele ou da equipe que opera suas contas nas redes sociais, foi dentro do fluxo comum entre ele e o MBL, logo ficou claro que era um passo arriscado demais, com custos pesados a curto e médio prazo. Se o MBL corteja a extrema-direita com entusiasmo crescente, talvez ir tão fundo nisso não interesse tanto assim ao prefeito – afinal, governar uma cidade mergulhada numa caça às bruxas no campo artístico, com repercussão nos maiores veículos da mídia internacional, não é exatamente um predicado animador.

A patética sucessão de acontecimentos que encerrou prematuramente uma mostra artística no coração do centro de Porto Alegre pode trazer aprendizado, ainda que à força, a vários núcleos. Inclua-se na conta o Santander, que tentou escapar de um desgaste e mergulhou em outro de potencial talvez ainda maior, e o próprio MBL, que já adota uma postura mais defensiva e deu até declarações a rádios locais se distanciando do fim da mostra – como um pai que ainda quer ser reconhecido como tal, mas se recusa a embalar a criança que gerou. E suspeito que também a política local recebe um recado com o episódio: a de que a viagem de carona no trem festivo do MBL não será sempre um mar de rosas.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Geórgia Santos

O dia em que a mediocridade calou a arte – e alguns esclarecimentos

Geórgia Santos
11 de setembro de 2017

É triste quando a mediocridade e ignorância calam a arte. Não, não falo de um episódio ocorrido durante a Idade das Trevas, embora Porto Alegre tenha perdido a luz nesse dia. Também não é um ensaio sobre o repúdio da Igreja ao corpo nu em um período em que o Renascimento era novidade. Tampouco me refiro à Hitler e a queima de obras que considerava “arte degenerada”, embora essa expressão tenha vindo à baila. Essa referência também não vem do tempo da Ditadura Militar, em que a arte era sistematicamente censurada.

 

É de agora. Sobre agora

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A capital da nossa pequena província não suportou a ousadia da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Bem, não sejamos injustos com Porto Alegre. Quem não aguentou foram os jovens cidadãos de bem do MBL – Movimento Brasil Livre (?), o mais esquizofrênico dos movimentos conservadores da contemporaneidade. Segundo eles, a mostra com 250 obras assinadas por 85 artistas, entre eles Portinari e Lygia Clark, era devassa.

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O grupelho berrou por aí que a exposição fazia apologia à zoofilia, à pedofilia e era uma blasfêmia contra os cristãos. Pobres cristãos. E colou.

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Cidadãos de bem, pais e mães de família, ficaram horrorizados com a possibilidade de seus filhos estarem expostos à tamanha devassidão. Grupos de pessoas constrangiam, aos berros, e com câmera na mão, a qualquer pessoa que quisesse ver a exposição. Chamavam de “pedófilos”, “tarados”, “degenerados” – olha aqui a palavrinha de que falei no começo do texto. A representante do MBL no Rio Grande do Sul, Paula Cassol, disse à Zero Hora que não entende que aquilo seja arte. Imagino que ela tenha um diploma de Artes Plásticas ou História da Arte.

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Tenho dúvida, no entanto, se posso creditar o episódio à ignorância ou se o grupo simplesmente viu uma oportunidade política no episódio. Oportunidade de angariar os últimos conservadores da província

Tenho a leve impressão que é a segunda opção

E colou

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A exposição foi encerrada pelo Santander Cultural, onde estava em exibição. E pra continuar a verborragia de equívocos históricos, a organização pediu desculpas num ato deprimente de covardia. Ah, quase esqueço, o Santader recebeu uma contrapartida de renúncia fiscal para expor os trabalho de R$ 1 milhão de reais. Segundo o MBL, foi principalmente ISSO que incomodou aos cidadãos de bem. Claro.

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Ficou curioso pra ver quais são essas obras tão controversas?

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Resolvemos mostrar quais são as obras e explicar o contexto na qual estão inseridas e o que representam. Pensamos muito sobre se deveríamos esclarecer a realidade dos quadros que tanto incomodaram. Porque afinal, se estamos aqui explicando obras de arte perfeitamente legítimas, talvez eles tenham vencido. Por outro lado, algumas pessoas foram arrastadas a uma rede de mentiras e sequer sabem do que se trata. Se uma pessoa perceber a perversidade das acusações, já é um grande e importante passo.

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As obras que geraram a polêmica sobre pedofilia

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BIA LEITE: Adriano bafônica e Luiz França She-há (2013)

BIA LEITE, Travesti da lambada e deusa das águas (2013)

O mais interessante é tentar descobrir aonde é que enxergaram pedofilia em uma obra que apenas aborda a questão de crianças homossexuais. O catálogo da exposição é bastante claro, inclusive. “Bia talvez seja uma das poucas artistas brasileiras a enfrentar com desenvoltura e coragem esse tema tabu, que é a homossexualidade na infância e o portentoso sofrimento que crianças atravessam na fase escolar e no início da adolescência. A artista produziu essas pinturas a partir da combinação de fotografias das crianças retiradas do Tumblr Criança Viada, onde são postadas fotografias as da infância dos próprios usuários LGBT com comentários.” Pedofilia é o que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por uma criança. É doente associar esse trabalho a algo tão grave.

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A obra que gerou a polêmica sobre zoofilia

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ADRIANA VAREJÃO: Cena de interior II, 1994

O quadro é uma compilação sobre práticas sexuais existentes, mas que existem na sombra. A ideia da artista não é julgar as práticas, e sim lançar uma reflexão sobre a exploração. O que chocou foi a cena em que um homem segura um animal enquanto outro o estupra. Para alguns, é apologia à zoofilia, e não um retrato do que há de mais obscuro na natureza humana. Sim, é repulsivo, mas não é menos verdadeiro por ser repulsivo. Se alguém acha que isso não é parte da natureza humana, sugiro a leitura do livro “O barranco na formação sexual do gaúcho“. Sim, é isso mesmo. E não, não tem nada a ver com orientação sexual.

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A obra que gerou a polêmica sobre blasfêmia

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FERNANDO BARIL: Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, 1996

A arte ocidental contemporânea tem uma longa história de usar ícones religiosos como ponto de partida para uma série de críticas. Nesse caso, a crítica ao consumismo e à hipocrisia da cultura ocidental e da própria igreja saltam da tela, bastante diferente da acusação de vilipêndio. Além dessa obra, houve acusações de profanar hóstias com palavras profanas. Eu não sou uma católica praticamente, mas até onde eu sei, se não há consagração, é só uma bolacha, não?

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O mais interessante é que há obras equivalentes ou ainda mais gráficas espalhadas por museus de todo o mundo. Mais do que isso, exposições com esse viés já foram realizadas em outros três países (EUA; Polônia e Inglaterra) e só aqui foi problema, só aqui foi CENSURADA.

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Sim, porque o que aconteceu foi censura

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A arte sempre provoca, ela nasceu para isso, não para agradar. Nasceu para provocar reflexões profundas sobre a natureza humana, sem ser confundida com propaganda, como os engessados xucros do MBL acreditam ser – ou querem que você acredite. Ou alguém vai ter coragem de dizer que a Guernica, de Picasso, é uma apologia a bombardeios? Alguém vai dizer que o David, de Michelangelo, é pornografia em mármore? Ou alguém vai dizer que Jesus pregado na Cruz é apologia à tortura?

A apreciação da arte gira em torno do gosto, é verdade. Mas alguém não gostar, independente do motivo, não pode retirar a legitimidade de uma obra. Alguém se sentir ofendido com a natureza humana é normal, além de triste, mas não é motivo para censura. Não é motivo para calar. Por fim, a arte não é necessariamente explícita, mesmo que pareça. E no caso dessa mostra, a ideia era questionar a heteronormatividade. Eu não sou crítica de arte, obviamente. Inclusive entendo muito pouco. mas desde que esse episódio todo aconteceu, há bons textos esclarecendo alguns dos principais equívocos. Um dos melhores foi escrito pela curadora e crítica de arte Daniela Name, para o jornal O Globo.

O curador da exposição, Gaudêncio Fidelis, explicou o contexto da montagem da mostra em texto publicado por Zero Hora:

“Também não há homofobia em Queermuseu, embora se pense sobre o tema como meio de explicitar como esta é pervasiva na cultura. Trata-se de um campo de batalha em exasperação, já que as obras exibidas coexistem em atrito contínuo. Afinal, elas são o reflexo do mundo lá fora, e seus pressupostos conceituais, estéticos e ideológicos encontram equivalência na vida contemporânea. Arte e vida mostram-se próximas nesta exposição.”

Se ainda assim, meu caro leitor, acreditas que a mostra deveria ter sido fechada e a arte calada, só posso lamentar. Quanto a mim, não, não vi a exposição. Não deu tempo.

Voos Literários

Corrupção, ditadura e censura

Flávia Cunha
18 de julho de 2017

Sempre que alguém defende a volta da ditadura militar no Brasil alegando que naquela época não havia corrupção, me dá um frio na espinha. Pela ignorância ou pelo oportunismo da afirmação. Hoje, sabe-se que censura à imprensa foi uma das formas de garantir essa imagem de integridade associada aos governos militares. Aos eventuais nostálgicos daquele período que estiverem me lendo, recomendo informarem-se com essa matéria do UOL e também com a visita ao site Memórias da Ditadura.

Para reflexão literária, Tambores Silenciosos, do gaúcho Josué Guimarães, é um alerta de como a censura é um verdadeiro abuso de poder por parte das autoridades. No romance, situado na cidadezinha fictícia de Lagoa Branca, o prefeito resolve impedir que os moradores tenham acesso a jornais e a ouvir rádio, para que sejam mais felizes. O enredo é situado em 1936, época que antecede a implantação do Estado Novo de Getúlio Vargas.

O trecho a seguir mostra o diálogo do professor Ulisses com seus alunos, após ameaças veladas do prefeito contra o educador:

“[…] eu sei, meus filho, eu sei disso, estou fazendo o possível, estive mais de uma vez com Coronel João Cândido e o homem me pareceu meio inconseqüente, ele tem um bom coração, mas a cabeça não deve estar regulando bem, meteu dentro dela algo estranho, chegou a me dizer que estava decidido a tornar a gente desta cidade feliz por bem ou por mal; eu disse a ele que por bem, eu entendia, mas que por mal eu nunca tinha visto ninguém fazer outra pessoa feliz; e sabem o que ele me respondeu? Que respeitava muito a minha pessoa, contava comigo para o êxito de seu trabalho na prefeitura, mas que eu ficasse no meu lugar, ensinando os meus meninos e que deixasse de lado o seu plano de tornar Lagoa Branca uma cidade feliz como não havia outra no mundo.”

Os personagens que resolvem não seguir os desmandos do prefeito, são presos e torturados. Na conclusão do romance, há um boicote à Semana da Pátria por parte dos estudantes, que começam uma protesto apoiado pelas crianças e idosos da cidade. O prefeito acaba deposto pela população e se suicida.

Na vida real, Josué Guimarães enfrentou muitos percalços e ameaças de censura para conseguir lançar esse livro, no fim da década de 1970, antes do fim do regime militar no país. A obra recebeu prêmios e é um brado pela liberdade de expressão do povo. Altamente recomendável na atual conjuntura sociopolítica brasileira.

Geórgia Santos

Justiça censura reportagem da Folha e está tudo bem

Geórgia Santos
13 de fevereiro de 2017
Divulgação: Palácio do Planalto

“ – Estamos em 2017 e vivemos em um país democrático em que imprensa é livre. Certo?”

  – Bom, de certo, nessa frase, somente o ano.

  – Como assim, a gente não vive em um país democrático, ao menos?

  – Em tese, sim, mas superficialmente falando, uma coisa deve estar ligada a outra e, ao que parece, a imprensa brasileira não é mais livre.

  – Hã?”

O diálogo é fictício, mas o conteúdo é a nossa mais pura (dura) realidade. Na tarde de hoje, 13 de fevereiro, o jornal Folha de São Paulo denunciou o fato de que a Justiça censurou uma reportagem a pedido do Palácio do Planalto. Uau, isso é grave.

Segundo informações do jornal, a matéria tratava de uma tentativa de extorsão sofrida pela primeira-dama Marcela Temer no ano passado. Liminar concedida pelo juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, impede que a Folha  publique qualquer informação sobre o ocorrido. Um hacker teve acesso aos dados do celular da primeira-dama e usou o conteúdo para chantageá-la. A petição foi assinada pelo advogado Gustavo do Vale Rocha, subchefe da Casa Civil, em nome da esposa de Michel Temer.

O Grupo Folha, por sua vez, vai recorrer da decisão. Em nota publicada pelo jornal, o diretor jurídico da publicação, Orlando Molina, diz que se trata de um atentado contra a liberdade de imprensa e que a ação se configura como censura. Já Michel Temer nega que se trate de censura. “Não houve isso, você sabe que não houve”, disse aos jornalistas.

A verdade é que a essa altura pouco importa a opinião do excelentíssimo presidente. É censura, sim. Um veículo de comunicação foi impedido de publicar uma reportagem com o argumento de resguardar a intimidade. Mas pera aí, foi a Folha que invadiu o celular de Marcela?  Os dados divulgados pela reportagem são falsos? O conteúdo foi inventado? A notícia é mentirosa? Não. Não para todas as perguntas. A reportagem apenas divulgou informações tornadas PÚBLICAS pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Você também pode ter acesso a esses dados, os processos são os seguintes: 0000057-20.2017.8.26.0520, 0036961-28.2016.8.26.0050 e 0032415-27.2016.8.26.0050.

“Os jornalistas convivem com censura todos os dias”

O é que não é um caso isolado. Ano passado, um juiz paranaense ordenou a quebra de sigilo de uma jornalista que não quis divulgar suas fontes – algo protegido pela Constituição. A verdade é que os jornalistas convivem com censura todos os dias. Dentro da empresa, quando sua ideologia não fecha com a do patrão. Na rua, quando é agredido pela política em protestos – e até por manifestantes que veem o profissional como uma extensão do veículo em que trabalham. Quando é impedido de fazer seu trabalho, independente do motivo.

E o mais incrível é que há jornais que contribuem diariamente para o reforço da censura. A própria Folha fez isso quando divulgou um editorial extremamente questionável, para dizer o mínimo, em que endossa a violência da PM contra manifestantes e, de quebra, contra jornalistas. Afinal, segundo a ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), houve mais de 300 violações contra jornalistas durante os protestos de 2013.

Sem contar que a cada ano que passa, perdemos posições em rankings de liberdade de imprensa. Segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras, ocupávamos o 58º lugar em 2010. Hoje, estamos na 104ª posição. Que bela queda, hein. E isso que eu nem falei da autocensura, movida pelo medo, pelo temor de uma mão invisível.

Não sei quanto a vocês, mas tudo isso me faz pensar que estamos cada vez mais distantes de uma democracia e liberdade de imprensa ideais. E mais, seguimos nos enganando, como se fosse normal, como se estivesse tudo bem.