Voos Literários

Um olhar sobre o livro (e a série) Normal People

Flávia Cunha
18 de julho de 2020
O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS DO LIVRO E DA SÉRIE PESSOAS NORMAIS (NORMAL PEOPLE)

O conceito de normalidade imposto pelo tal senso comum é uma das maiores falácias que enfrentamos na convivência em sociedade, mas muitos seguirão sofrendo por não atender a esse padrão. Essa é uma das abordagens possíveis a partir da leitura de Pessoas Normais (Normal People), da irlandesa Sally Rooney. O enredo mostra a história de amor nada “normal” de Connell e Marianne, da adolescência, em uma pequena cidade, ao início da vida adulta, em uma universidade, em Dublin. Os dois personagens, complexos, oscilam em uma balança de poder dentro da relação, muitas vezes sem darem-se conta do nível de codependência emocional formada a partir do que poderia ser apenas um namoro juvenil, sem consequências futuras.

OS MÉRITOS DO LIVRO

(ATENÇÃO! A PARTIR DAQUI TÊM SPOILERS EXPLÍCITOS, COM DETALHES DA NARRATIVA.)

O enredo começa com uma história que parece um clichê. O cara popular na escola, destaque nos esportes e cheio de amigos, desperta a paixão da menina desengonçada e antissocial, que é hostilizada por todos por ser esquisita e dar respostas desconcertantes em sala de aula. 

Mas não se enganem. Sally Rooney consegue construir um universo que vai muito além do que é apresentado em comédias românticas adolescentes hollywoodianas. Um dos pontos fora da curva é o fato de Connell ser filho de uma faxineira, mãe solo e amorosa, que limpa a casa da família rica de Marianne. A adolescente, mesmo sendo criada com uma vida confortável financeiramente, não é mimada no sentido estrito da palavra, já que sua mãe é distante emocionalmente, seu pai, já falecido, não era amoroso com ela, e seu irmão  é claramente abusivo. O status financeiro não é suficiente para colocar Marianne no mesmo patamar de outros alunos de sua escola, pois seu comportamento é considerado inapropriado. Já Connell, mesmo pobre, é aceito, pois é tímido e agradável com todos e se sujeita à normalidade, inclusive escondendo preferências intelectuais que poderiam chamar a atenção dos outros estudantes.

SEM CERTO OU ERRADO

É com a menina “anormal” que ele se sente à vontade para falar sobre assuntos que gosta de verdade, como literatura, e com quem desenvolve uma afinidade sexual que o surpreende. Apesar disso, não tem coragem para assumir o namoro perante os colegas e transforma o que poderia ser uma história bonita de amor e respeito em um relacionamento clandestino. 

A partir do que escrevi acima, poderíamos supor que Connell é o vilão do romance. Porém, nada é maniqueísta em Pessoas Normais. Ele é mostrado como uma uma boa pessoa que, pela pressão por adequar-se, acaba humilhando a amiga que pretendia ser sua namorada. A situação fica insustentável com a proximidade do baile da escola, quando decide levar uma das colegas populares para a festa. A partir dessa atitude, Marianne rompe o acordo entre os dois e eles perdem o contato.

O JOGO VIRA

Os dois reencontram-se algum tempo depois, na faculdade, já que vão para a mesma universidade, por influência dela. Ali, se opera a primeira virada do enredo. No novo ambiente, ter opiniões próprias e ser intelectual se transformam em um mérito. Ser meigo e esconder a própria inteligência são vistos como um comportamento estranho.

Ali, Marianne é popular e está namorando. Connell não tem amigos e sofre para se encaixar socialmente. A partir desse ponto da história, eles retomam a interação, até o final do livro. É uma relação que oscila entre a amizade e a atração física, mas sempre passando por percalços que os impedem de viver um namoro comum. 

TEMAS COMPLEXOS

Para quem ainda não leu a obra ou fez uma leitura mais distraída, recomendo prestar atenção nos diferentes assuntos abordados pela autora. Política, saúde mental, sadomasoquismo, violência doméstica e diferenças sociais são alguns dos temas que vão além da mera interação entre os protagonistas.

SÉRIE BEM-SUCEDIDA

A obra foi adaptada para a televisão em uma parceria da BBC com a plataforma de streaming Hulu, virando uma série com 12 episódios, que já alcançou sucesso mundial.  Os atores escolhidos para os papéis principais, Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal, estão super à vontade em cena e têm uma química inegável. Muitos dos (ótimos) diálogos do livro foram transpostos praticamente na íntegra, o que pode ser explicado pelo fato de a autora ser uma das roteiristas da série. Aqui no Brasil, Normal People pode ser conferida na íntegra desde essa quinta-feira (dia 16/7), através do serviço de streaming Starzplay.

ALGUMAS RESSALVAS

No geral, gosto da sensibilidade que permeia o relacionamento entre os protagonistas e que tem destaque tanto no livro como na série. Porém, esperava mais mudanças de comportamento por parte de Marianne ao longo da história. Entendo que ela tenha passado por problemas familiares que a afetaram profundamente, fazendo com que tenha uma admiração quase infantil por Connell, mesmo quando este revela inseguranças e imperfeições comuns em qualquer ser humano. Mas ela precisar do “príncipe salvador” para se livrar do irmão abusivo me pareceu um pouco machista para uma obra lançada em 2018. Outro ponto questionável é o fato dela em nenhum momento parecer interessada em ter uma carreira ou profissão, mesmo depois de perder o apoio financeiro da família. O final do livro também demonstra uma certa apatia por parte da personagem, que ao mesmo tempo em que demonstra grandeza ao incentivar o namorado a seguir em frente com seu sonho de escritor, não parece ter grandes projetos pessoais além de prosseguir com a faculdade. Na série, uma pequena troca na frase final não deixa Marianne tão á disposição de Connell, levando a crer que a viagem de um ano que este fará pode significar um rompimento definitivo entre os dois. O final em aberto se mantém, mas com um pouco mais de “pulso firme” por parte dela. 

Apesar dessas ressalvas, é uma leitura (e releitura) que considero valer a pena e, para quem não assistiu à série, recomendo fortemente.

Imagens:  BBC e Companhia das Letras/Divulgação

 

Voos Literários

Pessoas LGBTQIA+ e a violência na quarentena

Flávia Cunha
10 de julho de 2020

ALERTA: ESSE TEXTO ABORDA A VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS LGBTQIA+. A INTENÇÃO É DENUNCIAR ESSE CENÁRIO INACEITÁVEL E CONTRIBUIR PARA QUE A SITUAÇÃO ATUAL SEJA MODIFICADA. PORÉM, PODE PROVOCAR GATILHOS EM QUEM JÁ PASSOU POR ESSE TIPO DE SITUAÇÃO. 

QUANDO O LAR NÃO É SEGURO

O  senso comum costuma nos fazer associar o conceito de lar a um ambiente seguro e confortável, um espaço onde podemos nos refugiar da vida lá fora e, no momento atual, nos protegermos do perigo da proliferação do novo coronavírus. Mas não é para todo mundo que é assim. O distanciamento social de amigos e a convivência intensa com familiares podem ser dolorosos para pessoas LGBTQIA+. Pesquisas recentes apontam aumento da violência doméstica provocada pela homofobia e transfobia no Brasil nos últimos meses. Um cenário de vulnerabilidade, infelizmente, não é novidade para essa parcela da população, oprimida pela heteronormatividade e pelo machismo. Para quem quer entender melhor essas existências, sugiro a leitura do livro Contos Transantropológicos, da escritora, professora e filósofa Atena Beauvoir.

TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Atena denuncia em sua obra uma dura realidade, como no conto Uma verdade de mulher, no qual é exposta, de forma contundente, a repulsa paterna à transição de gênero do filho:

“Olga começou sua transição de gênero, do socialmente masculino morto para o feminino vivo, do garoto que nunca era para a garota que sempre se fazia ser a si mesma. Ela estava radiante. Já havia terminado o ensino médio e completava 18 anos naquele sábado. Resolveu, portanto, divulgar para toda família que seu nome real era Olga e que sempre sentiu em si, a garota que sempre esteve presente em seu ser. […]

E no primeiro minuto de sua presença, Olga recebe um soco da vida. Ou melhor de seu próprio pai. Ninguém imaginaria que aquele soco iria mudar o rumo inteiro da família. Olga foi levada prontamente para o hospital por um casal de primos. Sua mãe chorava em casa tentando acalmar o pai que guardava seus pertences em uma mala. Gritava que aquele traveco não era seu ?lho. Que não viveria sob o mesmo teto que um veado endemoneado que fazia-o passar vergonha na ?rma. A mãe de Olga pedia perdão, como todo o peso e a culpa da maternidade produzindo um ser defeituoso, ela se empunha a responsabilidade por tal desvio de caráter do primogênito. Não houve retorno. O soco rachou profundamente as estruturas da família. O símbolo da violência produzia um ar ressoante de guerra instaurada. A face da aniversariante também foi rachada. O soco imortalizou na alma de Olga, que sua embarcação existencial havia partido do porto.”

EMPATIA E RESPEITO

No posfácio da obra, Atena explica que escreveu o livro pensando nas pessoas cisgêneras, que precisam conhecer outras realidades para, assim, desenvolverem mais empatia e respeito às diferenças:

“Não é um livro escrito para pessoas trans. Essas sabem sobre tudo o que está escrito. Não sabem no sentido do texto posto, mas do contexto exposto. Esse livro é para pessoas cis. Essas desconhecem o universo ontológico da existência inexistente. Sempre são o que são, pois nasceram assim: existências dadas. E as aceitaram. Onde quer que se diga – Eu sou trans – será entendido como uma inexistência da construção da nova existência. E as estruturas históricas sempre trarão ao nosso redor o esforço de nos fazer sentir que devemos viver o que não vive e nunca viveu em nós. Enquanto escrevo esse posfácio, lembro do início da minha transição de gênero e o quanto foi angustiante. Sangrei até esvaziar o conteúdo de uma existência. Agora gero meu próprio sangue para dar forma e força ao novo corpo existente. Só existe liberdade na existencialidade do ser.”

O livro Contos Antropológicos pode ser adquirido direto com a autora.

MÃES PELA DIVERSIDADE

Além da leitura, recomendo que vocês sigam nas redes sociais o projeto Mães pela Diversidade, um coletivo criado em São Paulo, em 2014. Assim o grupo se apresenta, em uma postagem recente:

“ […] fruto de um encontro espontâneo de mães e pais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais de todo o Brasil, preocupados com o avanço do fundamentalismo religioso, a insegurança jurídica, o preconceito e a violência contra a população LGBTQI+. Além disso, o grupo luta pelos direitos civis de seus filhos e filhas.
A princípio, funcionou como um grupo informal de encontro, mas, com o crescimento e necessidades crescentes de controle e compromissos, o grupo passou a adquirir identidade jurídica. Trata-se de um movimento político suprapartidário que tem por objetivo trabalhar em prol dos direitos civis de nossos filhos.”

Imagem: Chickenonline/ Pixabay

 

Voos Literários

Breque dos Apps: o espírito da revolta

Flávia Cunha
4 de julho de 2020

“O ponto de partida da greve foram as péssimas condições de vida […] As jornadas de trabalho excediam frequentemente as 12 horas diárias.”

O trecho acima, deliberadamente editado por mim, é do livro  1917-2017 – 100 Anos de Greve Geral – Passado ou Futuro, de Isaías Dalle. O texto refere-se a uma paralisação geral promovida na cidade de São Paulo como forma de repúdio ao tratamento dado a trabalhadores no início do século 20. Infelizmente, poderia perfeitamente ser usado como uma explicação para o chamado Breque dos Apps, a greve de entregadores que trabalham para aplicativos no Brasil de 2020, em plena pandemia. 

CONDIÇÕES PRECÁRIAS DE TRABALHO

Os grevistas do século 21 enfrentam jornadas de trabalho excessivas (não obrigatórias, porém a única forma de conseguir uma renda mínima para a sobrevivência, já que são vistos pelas empresas como “empreendedores” e não funcionários), rendimentos baixos, falta de direitos trabalhistas, previdenciários e de indenização em caso de acidentes. Além disso, precisam pagar do seu próprio bolso EPIs e álcool gel, fundamentais para a proteção contra o novo coronavírus.

São muitas as precariedades enfrentadas por uma categoria que nem mesmo é vista legalmente assim, já que muitas pessoas começaram a usar motos e bicicletas próprias como uma forma de ter alguma renda em meio à pandemia. 

REIVINDICAÇÕES JUSTAS?

Mesmo considerados essenciais para garantir que a maioria da população consiga manter o distanciamento social, a verdade é que os entregadores submetem-se à uma espécie de escravidão moderna, não tendo direito a refeições pagas pelas grandes corporações para as quais trabalham, por exemplo.

E se você aí ainda têm dúvidas se os empresários devem atender as reivindicações, vale lembrar novamente o movimento grevista de 1917, em São Paulo, que tinha como uma das principais exigências o fim do trabalho para menores de 14 anos em fábricas. Sim, naquele período crianças trabalhando era visto com naturalidade pelos patrões, que achavam que era tudo “mimimi” dos funcionários. Só não imaginavam que uma greve geral pararia a maior cidade da América Latina, mostrando a força dos trabalhadores.

O ESPÍRITO DA REVOLTA

Outro livro interessante a respeito do assunto é O Espírito da Revolta – A Greve Geral Anarquista de 1917. No trecho a seguir, a autora da obra, Christina Roquette Lopreato, avalia a importância das paralisações para os trabalhadores da época:

“A greve tinha valor educativo, de formação de uma consciência de classe autônoma, através da experiência da luta. A disposição […] de fazer greve em defesa de seus próprios interesses significava colocar em prática o princípio de ação direta”.

Impossível saber agora se o Breque dos Apps, realizado no dia 1 de julho de 2020 em diversas capitais brasileiras, será um movimento com relevância histórica como a greve geral de 1917. Mas o que nós, consumidores conscientes, podemos fazer é apoiar o movimento, que já tem nova data marcada: 12 de julho.

COMO APOIAR:
  • Divulgue a greve
  • Não faça pedidos
  • Avalie negativamente os apps por exploração e falta de condições sanitárias para os entregadores

Imagem: Reprodução/Facebook

Voos Literários

Literatura infantil antirracista – Parte 2

Flávia Cunha
26 de junho de 2020

Na semana passada, escrevi meu ponto de vista a respeito da importância da literatura infantil antirracista. Mas o tema é amplo e as reflexões a respeito do assunto merece mais olhares. Por isso, convidei para ocupar a coluna de hoje Gislene Sapata Rodrigues, bibliotecária, contadora de história e especialista em Teoria  e Prática da Formação do Leitor. Gislene, que vivencia em seu dia a dia o encantamento das crianças com a literatura, traça um necessário panorama sobre a presença de escritores negros no Brasil, além de apontar o impacto de livros antirracistas para humanizar o olhar infantil e evitar que considerem vidas negras descartáveis. Boa leitura!

Histórias pretas importam: o papel da literatura infantil para a construção de uma sociedade antirracista

A literatura para a infância é vasta e diversa em autoria, obras e temas. Engana-se quem vê apenas caráter pedagógico e utilitário da produção literária para a infância e quem acredita que a literatura infantil é apenas fruição, passatempo e mero entretenimento (apesar de também sê-lo). A literatura é arte das palavras e, embora não pretenda essencialmente, é capaz de nos mobilizar, de nos convocar a ampliar e modificar o nosso olhar sobre nós mesmos, os outros e o mundo.  

Antonio Cândido, em Direito à literatura, descreve a literatura como direito humano e demonstra o papel humanizador que a literatura tem em nossa vida. Já Nancy Huston nos descreve, seres humanos, como espécie fabuladora, que necessita da fabulação e das histórias para existir. Da mesma forma, em estudo recente, o psicólogo Keith Oatley defende que ler literatura nos torna mais empáticos, capazes de vivenciar outras vidas, dado que a habilidade de colocar em palavras o que a vida não comporta é matéria da arte e, como não poderia ser diferente, da literatura também.

Contudo, surge a pergunta: quantos escritores negros você tem na biblioteca de casa, na biblioteca que você frequenta?

Num país em que 54% da população é autodeclarada negra e parda, a produção editorial de escritores negros e de escritoras negras corresponde, segundo estudo da professora  Regina Dalcastagnè (UnB), a apenas 7%  dos livros publicados no Brasil. A participação tímida dos autores negros e das autoras negras no mercado editorial brasileiro contrasta com a população carcerária no Brasil 70% negra. E aqui reside o perigo de uma história única, apresentado por Chimamanda Ngozi em uma palestra de 2009 no programa TED Talk, cujo problema consiste em ler sempre a história contada pelos brancos. Desse modo, a população negra não está nas estantes das bibliotecas, mas apenas na mira do fuzil do Estado.

A construção de novas narrativas em um país tão desigual socialmente e economicamente está lá nas paredes da escola pública sucateada. O acesso à educação pública e de qualidade será a virada de chave. A caminhada é longa, e fica registrada aqui a solidariedade a tantos profissionais que estão remando contra a maré e que, no contexto da pandemia, não têm o menor horizonte de como dar continuidade ao ano letivo. Mas uma solução para diversos obstáculos está na escola, na biblioteca da escola, cuja existência é obrigatória nas escolas da rede pública e privada, conforme a Lei 12.244/2010. É na biblioteca, na escola, que podemos efetivar a educação antirracista. Trabalhos como aquele da educadora Larisse Moraes com o coletivo Afroativos nos dão alento e esperança, mostrando que é, sim, possível que existam novas narrativas. O lançamento da obra A gente que lute no ano passado, escrita por estudantes oriundos da escola pública sob a coordenação de professoras como a professora Ana Paula Cecato, evidenciam que é possível (e necessário) usar a leitura e a escrita como arma para lutar contra o racismo.

E é nas escolas que a leitura de livros de temáticas afro-brasileiras e africanas, com a leitura de autores negros, é um passo importante na busca de uma educação antirracista, pois se os estudantes têm acesso a obras escritas por autores negros, como Conceição Evaristo, Kiusam de Oliveira, Ryane Leão, Bell Hooks, Jarid Arraes, estamos subvertendo a ordem e o cânone, estamos avançando em relação a narrativas únicas sobre os negros no Brasil e no mundo, reconhecendo, assim, a intelectualidade negra.

Para as crianças negras, a busca da ancestralidade e o fato de se sentirem representadas nas páginas de um livro e nas estantes de uma biblioteca dão a todas uma oportunidade de reconhecerem-se e de construírem sua autoestima.

Reconhecer outras narrativas além das impostas pela mídia e pelo cânone e do uníssono da escravidão presente nos livros de história, dessa forma, se configura como muito importante, dado que o racismo estrutural no Brasil acaba por silenciar e apagar o corpo negro e suas feições. Falar com as crianças negras sobre racismo também lhes proporciona ferramentas para o enfrentamento de algo sutil e danoso a sua psiquê, à sua autoimagem e aos seus sonhos.

Para as crianças não-negras e brancas, o contato com as histórias, os personagens e as autorias negras permite que desenvolvam relações de respeito e afeto, impedindo que essas tornem os corpos, as subjetividades e as vidas negras descartáveis. A partir do momento em que conseguimos engajar todos na questão racial, inclusive percebendo seus lugares de fala e de cala, estamos caminhando para um olhar mais crítico e responsável em relação a um problema que ceifa tantas vidas.

A professora Eliane Debus (2018), da UFSC, em sua pesquisa sobre temática africana e afro-brasileira na literatura infantil, organiza essa produção literária em três categorias: literatura que tematiza a cultura africana e afro-brasileira; literatura afro-brasileira escrita por escritores negros e escritoras negras; e literaturas africanas, escrita pelos autores do continente africano que cada vez mais têm sido traduzidos, como, Ondjaki, Chimanda Ngozi e Noémia de Sousa.

É importante também observar como os personagens negros aparecem retratados.

São desumanizados? Estão em posição de subordinação aos personagens brancos? Essas são questões importantes para analisarmos se pensarmos que, de alguma forma, a escrita de literatura feita pela imensa maioria de homens brancos acaba por reproduzir o status quo. E nem me venham com Lobato.

Gostaria de compartilhar algumas produções potentes que devem fazer parte da sua biblioteca pessoal e das crianças da sua vida:
Além disso, gostaria de fazer um convite para vocês buscarem as ótimas editoras que se dedicam a disseminar obras de escritores negros e temáticas afro centradas em suas publicações:
  Educar para a diversidade em um país racista não é fácil, mas é urgente.

Imagem capa: Suad Kamardeen/Unsplash

Imagem texto: Reprodução/Internet

Voos Literários

Literatura infantil antirracista – Parte 1

Flávia Cunha
19 de junho de 2020

Vivemos tempos difíceis, sabemos. Em meio a uma pandemia com milhares de mortos no Brasil, ainda precisamos lidar com uma crise política. Além disso, há denúncias frequentes de violência policial contra negros, nem sempre com a justa punição aos policiais racistas. Ao nos depararmos com um panorama desses, a tendência é de perdermos a esperança no futuro. Acredito que em, em momentos assim, precisamos recorrer às nossas convicções mais profundas e singelas para termos força para seguir adiante. Tem gente que tem fé religiosa. Já eu, acredito no poder da literatura infantil como uma ferramenta de transformação social. Sei que parece utópico, mas pensem comigo: crianças com acesso a bons livros podem ser adultos menos preconceituosos, além de adquirirem capacidade de interpretação de texto e de empatia. Ou seja, a leitura é um hábito que só traz benefícios.

LITERATURA INFANTIL ANTIRRACISTA

Sendo assim, apelo para os adultos que leem esse texto para que, caso haja uma verba disponível no orçamento doméstico, invistam em livros infantis. Mas não em qualquer obra, pensem no conteúdo que será direcionado aos pequenos. Destaco isso porque sei, por trabalhar no mercado editorial infantojuvenil, que há muitos títulos que apenas reproduzem estereótipos e não trazem ensinamentos relevantes. Porque imagino que você aí, que está me lendo, é uma pessoa  consciente. E que, caso seja branco, não vai querer criar um filho de forma racista. Então, livros infantis com representatividade negra são fundamentais para abordar o assunto em casa. 

UM CLÁSSICO INFANTIL

Uma das sugestões é Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, lançado nos anos 1980, que destaca a beleza da protagonista:

“Era uma vez uma menina linda, linda.
Os olhos pareciam duas azeitonas pretas brilhantes, os cabelos enroladinhos e bem negros.
A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra na chuva.”
PERSONALIDADES NEGRAS

Outra sugestão é a coleção Black Power, que destaca a trajetória de seis personalidades negras: Martin Luther King, Rosa Parks, Nelson Mandela, Barack Obama e Carolina Maria de Jesus. Os livros são ilustrados e os textos, adaptados para o público infantil. A intenção é demonstrar o quanto a violência gerada pelo racismo é inaceitável.   

PARTE 2

Considerando ser impossível esgotar um tema tão complexo em um só texto, convidei a bibliotecária Gislene Rodrigues para, na semana que vem, abordar a importância do protagonismo negro na literatura infantil. Além disso, organizarei, com a ajuda dela, uma lista com diversas sugestões de leituras antirracistas. 

Encerro esse texto com a pungente declaração de Martin Luther King, proferida há 57 anos e, infelizmente, ainda permanecendo como um sonho futuro:

Eu tenho um sonho… de que meus quatro filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo caráter.”

Imagem:  Rapheal Nathaniel/ Iso Republic

Voos Literários

Vidas Negras Importam

Flávia Cunha
12 de junho de 2020

As manifestações antirracistas que eclodiram nos Estados Unidos e tomaram conta das ruas de diversos países, entre eles, o Brasil, trouxeram à tona uma constatação óbvia: a violência contra negros é histórica e o racismo, um comportamento  inaceitável. Nesse contexto, o que os brancos que são contrários ao racismo podem fazer? No meu lugar de fala de uma mulher branca, procuro sempre ouvir negros dispostos a conversar sobre maneiras de como estar ao lado deles nessa luta.  Afinal, vidas negras importam e sabemos que essa luta não é recente,

Outra pequena contribuição da minha parte ao longo dos últimos anos, foi dar espaço na coluna Voos Literários para mulheres negras incríveis exporem suas visões de mundo.

CORPOS NEGROS

A cantora e comunicadora Camila Toledo foi nossa convidada, no carnaval de 2018. Ela resolveu abordar a objetificação dos corpos negros, a partir da sua leitura da obra A Vida Imortal de Henrietta Lacks, de Rebecca Skloot.

“Fala-se das mulheres hipersexualizadas, do negro como apenas fonte de trabalho. A história e as marcas desse pensamento vêm sendo descobertas pouco a pouco. Existe uma estrutura social de pensamento ainda escravagista que repete que o corpo negro está a serviço da sociedade.”

Leia o texto completo aqui.

INSPIRAÇÃO

Em novembro de 2018, em uma reflexão pelo mês da Consciência Negra, a radialista e jornalista Denise Cruz destacou o livro Oprah, uma biografia, de Kitty Kelley.

Em seu texto, Denise comenta:
“… ainda estamos longe da real consciência da contribuição negra nas mais diversas áreas. […] Tenho muito que aprender e mais ainda a agradecer por todas as mulheres negras que lutaram pela minha voz. Pela nossa voz.” 

O texto completo está nesse link.

PÚRPURA

Em uma intersecção da música com a literatura, convidei a cantora Valéria Custódio para falar a respeito do seu disco, inspirado no livro A Cor Púrpura

“A Cor Púrpura eu ousaria dizer que me deu novos olhos e me amadureceu como artista, pois conheci um universo artístico muito maior depois dessa história, além de ter me amadurecido como ser humano, como mulher.”

Acesse o texto completo aqui.

LUTA DIÁRIA

O combate ao racismo precisa ser diário. Aos brancos antirracistas, como eu, repasso alguns conselhos, tirados de pacientes conversas com amigas negras: 

  • Não ouça calado “piadas” racistas. 
  • Tire do seu vocabulário palavras que desmerecem os negros, como “denegrir”. 
  • Não aceite quem usa como justificativa para o racismo ter sido criado por uma família preconceituosa. 
  • A reconstrução para os brancos é diária, pois o racismo é estrutural. Porém, é preciso lembrar ser essa uma luta urgente e necessária para todos que buscam um mundo com menos desigualdade e preconceito. 

E nunca é demais lembrarmos a frase emblemática da escritora norte-americana Angela Davis:

“Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, 

Imagem:  Samir Basante V./ Pixabay

 

 

Voos Literários

Uma reflexão sobre Antifa – O Manual Antifascista

Flávia Cunha
6 de junho de 2020

As manifestações a favor da democracia no Brasil trouxeram à tona o conceito do antifascismo. As bandeirinhas antifas tomaram conta das redes sociais e logo houve um movimento de parte da esquerda para criticar a troca de cores ou questionar se determinadas pessoas são mesmo antifascistas. Percebendo a minha falta de conhecimento teórico a respeito do assunto, fui pesquisar a literatura disponível a respeito. E o livro Antifa – O Manual Antifascista, lançado no Brasil em 2019 pela editora Autonomia Literária, me pareceu a obra ideal para quem quer obter informações confiáveis e descomplicadas sobre um tema tão atual. O autor é Mark Bray, um historiador que foca suas pesquisas na área de direitos humanos, terrorismo e radicalismo político na Europa Moderna e um dos organizadores do movimento Occupy Wall Street. 

EM BUSCA DE RESPOSTAS

De cara, já obtive resposta para a minha principal dúvida: o que nos torna antifascistas? De acordo com o autor, basta sermos contrários a ideais fascistas, como nacionalismo, supremacia branca e misoginia. Sendo assim, fica fácil flagrarmos os antifas de fachada. Quem relativiza o racismo e não enxerga o racismo estrutural, está fora. Os defensores do machismo como vitimização das mulheres, também. Xenófobos, idem.

E O SIMBOLISMO DA BANDEIRA?

Com a palavra, Mark Bray:

Alguns grupos antifas são mais marxistas, enquanto outros são mais anarquistas e antiautoritários. Nos EUA, a maioria tem sido anarquista ou antiautoritário desde o surgimento da antifa moderna sob o nome de AntiRacist Action (Ação Antirracista, ou ARA) no final dos anos oitenta. Até certo ponto, a predominância de uma facção sobre a outra pode ser percebida pelo logotipo na bandeira do grupo: se a bandeira vermelha está na frente do preto ou vice-versa (ou se ambas as bandeiras são pretas). Em outros casos, uma das duas bandeiras pode ser substituída pela bandeira de um movimento de libertação nacional ou uma bandeira negra pode ser emparelhada com uma bandeira roxa, para representar a antifa feminista, ou uma bandeira rosa para a antifa queer etc. Apesar de tais diferenças, os antifas que entrevistei concordaram que essas distinções ideológicas costumam ser incluídas em um acordo estratégico mais abrangente sobre como combater o inimigo comum.”

REALIDADE BRASILEIRA

No prefácio à edição brasileira da obra, escrito pelos pesquisadores Acácio Augusto e Matheus Marestoni, há o alerta de que o livro foi escrito refletindo a realidade norte-americana e europeia, a partir de 71 entrevistas feitas com integrantes do movimento antifascista. Porém, não há dúvidas que o assunto é pertinente para os brasileiros:

“No Brasil, por exemplo, muito tem se debatido nos últimos meses sobre Jair Bolsonaro ser ou não fascista. Todavia, a denominação é a que menos importa, pois sabemos que, no limite, o fascismo é a última razão de qualquer política de Estado. Além disso, no caso do recém-eleito presidente do Brasil, ele apenas expressa e vocaliza questões comuns que características próprias da sociedade brasileira média: a misoginia, o racismo tropical e o nacionalismo ridículo submisso à influência dos EUA nos países da América do Sul. Então, Bolsonaro é um fascista e o bolsonarismo é uma versão tropical da alt-right planetária.”  

ANTIFASCISMO COTIDIANO

Seguindo na leitura de Antifa – O Manual Antifascista, no capítulo 6 podemos ter dicas práticas de como combater o fascismo tropical, principalmente em tempos de pandemia, quando muitos têm receio de sair às ruas. Outra dúvida sanada é sobre a obrigatoriedade do enfrentamento físico com fascistas:

“A grande maioria das táticas antifascistas não envolve nenhuma violência física. Os antifascistas realizam pesquisas sobre a extrema-direita on-line, pessoalmente e, às vezes, por meio de infiltração;  empurram os meios culturais para repudiá-los, pressionam chefes para demiti-los e exigem que casas noturnas cancelem shows, conferências e reuniões;  eles organizam eventos educacionais, grupos de leitura, de treinamento, torneios esportivos para arrecadação de fundos; eles escrevem artigos, folhetos e jornais, pregam cartazes e fazem vídeos; eles apoiam refugiados e imigrantes, defendem os direitos reprodutivos e enfrentam de forma constante a brutalidade policial. 
Mas também é verdade que alguns deles quebram a cara de nazistas e não se desculpam por isso.” 

O tema do antifascismo também foi abordado em um episódio especial do podcast Bendita Sois Vós.

Imagem: Editora Autonomia Literária

 

Voos Literários

Sugestões de livros para não pirar (tanto) na quarentena

Flávia Cunha
30 de maio de 2020

Vivemos uma crise política e institucional em meio a uma pandemia no Brasil. Notícias sobre crimes racistas aqui e nos Estados Unidos ferem ainda mais nossa sensibilidade aflorada pelo isolamento ou distanciamento social. Saber que existem muitas pessoas passando fome nas ruas e nem sempre poder ajudar também é um fator de angústia. Além disso, não podemos encontrar com nossos amigos, não podemos abraçar nossos parentes que moram longe. Estamos sobrecarregados trabalhando dentro de casa, estressados se precisamos trabalhar na rua ou preocupados com o desemprego. Quem mora sozinho, pode ter dificuldades em lidar com a solidão. Quem divide o ambiente doméstico com um parceiro ou família grande, pode estar sofrendo com a convivência intensa. 

FALTA DE CONCENTRAÇÃO

Nesse panorama tão difícil, muitas vezes nos falta concentração para ler. Nesses casos, pode-se buscar livros que não tenham a obrigação da leitura corrida ou que tenham sido criados com o intuito de serem consultados diversas vezes. Outra sugestão é ler por puro prazer, sem pensar em prazos ou metas a serem cumpridas. 

DICAS DE LEITURA

Com o objetivo de estimular a leitura e tentar ajudar a segurar a barra desse Brasil 2020, a coluna Voos Literários selecionou alguns títulos que talvez ajudem a enfrentar determinadas  situações.

Se o problema é solidão:

A Parte que Falta, de Shel Silvertein, é um livro infantojuvenil mas que aborda o sentimento de incompletude, que pode atingir todas as pessoas em diferentes fases da vida. É uma obra ilustrada e de fácil leitura, mas não se engane: a profundidade do texto é grande.

Se a sua dificuldade é a convivência intensa:

Comunicação não-violenta, de Marshall B. Rosenberg, é um manual para ser consultado muitas vezes. Sugiro principalmente para melhorar a relação com pessoas que amamos, nas pequenas divergências domésticas que podem ser amplificadas pela quarentena.

Se a intenção é tentar ficar um pouco menos estressado:

A meditação pode ser um caminho para buscar o equilíbrio mesmo em tempos tão difíceis. Para quem não é praticante, começar é um desafio. Um dos clássicos do gênero indicado por especialistas é Atenção Plena – Mindfulness, de Danny Penman e Mark Williams. 

Se os casos atuais de racismo mostram que é hora de se posicionar:

Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, é uma leitura obrigatória para quem quer aprofundar o conhecimento sobre temas como discriminação e racismo estrutural. São 11 capítulos curtos, em que entendemos que a luta precisa ser de todos e está em pequenas ações cotidianas.

Se estiver equilibrado para refletir sobre política:

Bolsonaro tem tirado o sono, a paciência e provocado sentimentos ruins, como raiva e indignação, em pessoas com ideias e ideais antifascistas. Mas vai que você aí ainda tem energia para tentar entender como um governante desse tipo foi parar no poder? Uma sugestão é Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, que examina as origens históricas de movimento totalitários, como o nazismo.

Se não entende as atitudes de bolsonaristas e negacionistas: 

Machado de Assis faz uma divertida reflexão sobre os limites da sanidade mental em O Alienista. Uma leitura curta e interessante sobre a percepção da loucura, que pode ser usada como um paralelo para o Brasil atual, com tantas atitudes tresloucadas do presidente e agressividade de seus seguidores com quem não concorda com as ideias de relativizar a pandemia.

VAI PASSAR

Por fim, se não estiver com vontade de ler nada agora, não se cobre. O momento é complicado mesmo e cada pessoa reage de uma forma. O principal é cuidar de si e de quem está por perto. Vai passar. 

 

Voos Literários

O cadete e o capitão, um livro necessário

Flávia Cunha
22 de maio de 2020

Estava lendo o livro O Cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel quando soube pelas redes sociais da morte do autor da obra. Luiz Maklouf Carvalho era jornalista e escritor, e trabalhava como repórter do jornal O Estado de São Paulo desde 2016. Morreu com 67 anos, depois de uma longa luta contra um câncer no pulmão. Mesmo antes de saber do ocorrido, eu pensava no trabalho exaustivo que o jornalista teve para chegar ao resultado de seu último livro, ao ter acesso à cópia do processo do julgamento de Bolsonaro no Superior Tribunal Militar, que resultou na ida para a reserva do então jovem capitão. 

O PROCESSO

Bolsonaro foi acusado de participação no planejamento de atentados a bomba, em 1987, como forma de pressionar por melhores salários para oficiais. Luiz Maklouf Carvalho ouviu diversas pessoas envolvidas de alguma forma com o caso antes de publicar a obra. Menos o protagonista da história, que sequer respondeu aos diversos pedidos de entrevista. Como o bom repórter que foi, o autor consegue contextualizar as circunstâncias do incidente que levou ao processo em âmbito militar, além de lembrar aos leitores mais jovens o contexto político da época. O presidente José Sarney governava um país recém-saído de longos anos de ditadura militar. O clima na caserna era de ressentimento não expresso em relação ao governo civil. 

E Bolsonaro aproveitou-se da situação para provocar tumulto. Um ano antes do vazamento do plano dos ataques com bombas, ele escreveu um artigo à revista Veja,  reclamando a respeito das condições salariais no Exército. Uma clara insubordinação à rígida hierarquia militar. Pouco tempo depois, é citado em uma reportagem sobre a ideia dos atentados e acaba processado. 

“SEM MÁGOAS, SEM MÁGOAS”

 A obra de Luiz Maklouf Carvalho vai e volta no tempo para nos mostrar como os incidentes da década de 1980 influenciam na política atual. O autor cita um relato de bastidores antes da entrevista dada pelo então candidato à presidência ao Jornal Nacional em agosto de 2018, aos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos> 

“O diretor de jornalismo Ali Kamel o conduziu à bancada minutos antes de entrarem no ar, para  que sentisse o ambiente e conhecesse a posição das câmeras, robotizadas. ‘Parece uma mesa para metralhadora’, ele brincou, fazendo o gesto de atirar. ‘Fique certo de que não é’, retrucou Bonner, brincando também.
[…] De repente ele se virou para o diretor de jornalismo Ali Kamel. ‘Ali […], a gente já se cruzou por telefone ali pelos anos de 1988, não?’ Quem viu a cena, conta que Kamel hesitou uns segundos – não esperava a pergunta -, e disse: ‘Sim, sim, eu tinha 25 e era chefe de redação da Veja no Rio.’ Bolsonaro respondeu: ‘Sem mágoas, sem mágoas.’ 
Kamel replicou, na hora: ‘Mágoas? Mas como assim? Foi depois daquela reportagem que o senhor se lançou na vida política!’. Bolsonaro riu, a seu estilo, e emendou: ‘É isso mesmo. Sabe que há uns dez anos eu encontrei num aeroporto a Cassia Maria Rodrigues. Eu não a reconheci, tinha muitos anos que não a via. Mas ela disse: ‘Deputado, sou a Cassia, aquela repórter da Veja que denunciou o senhor’. Eu disse para ela: ‘Que denunciou que nada! Você me catapultou para a política!”
LEITURA NECESSÁRIA

No momento, prossigo a penosa leitura do livro O Cadete e o capitão. Não por ser mal escrito, pelo contrário. O texto é fluido e não é nada entediante. Porém, as imagens mentais que faço do sorriso de escárnio de Bolsonaro durante a pandemia que vivemos me impede de avançar com mais rapidez.

De qualquer forma, aconselho a leitura da obra, lembrando a famosa máxima de Sun Tzu, em A Arte da Guerra:

“Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.”
TRAJETÓRIA DE LUIZ MAKLOUF CARVALHO

Em 16 de maio, a editora Todavia publicou em suas redes sociais essa nota de pesar:

“A Todavia lamenta profundamente a morte do grande jornalista e escritor Luiz Maklouf Carvalho. Um dos maiores repórteres do Brasil em atividade, Maklouf atuava no jornal Estado de S. Paulo desde janeiro de 2016. Passou pelas redações da Piauí, Veja, Jornal da Tarde, entre outros veículos. Apurador meticuloso e incansável, foi autor de livros e reportagens fundamentais.

Vencedor de dois prêmios Jabuti de livro-reportagem – “Mulheres que foram à luta armada” (Globo) e “Já vi esse filme: Reportagens (e polêmicas) sobre Lula e/ou o PT” (Geração Editorial) – , lançou pela Todavia, no ano passado, seu último livro: “O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel”, com uma apuração irretocável que revelou fatos controversos da biografia do atual presidente. 

Uma grande perda para o jornalismo e para a cultura brasileira.”

Imagens: Facebook Editora Todavia/Reprodução

 

 

Voos Literários

Lélia Almeida: Precisamos ler mulheres

Flávia Cunha
16 de maio de 2020

Por que devemos valorizar a literatura escrita por mulheres? Os motivos são inúmeros, mas podemos citar o simples fato de que livros de autoria masculina são consumidos por ambos os gêneros, enquanto as obras criadas por mulheres acabam sendo lidas apenas pelo sexo feminino. Uma espécie de misoginia literária, como se as mulheres não tivessem a capacidade de criar um conteúdo profundo e interessante o suficiente para agradar a exigência masculina. Outra razão, essa muito mais cruel e assustadora, é o fato da violência contra a mulher ter crescido muito, em nível mundial, nesse período de pandemia e isolamento social. Muitos homens seguem vendo suas parceiras como sua propriedade e não como seres humanos autônomos, independentes e protagonistas de suas histórias.

ENTREVISTADA QUE FOI ALÉM

Todas essas reflexões passaram pela minha cabeça enquanto entrevistava a pesquisadora e escritora Lélia Almeida na semana passada. Enquanto eu me limitava a fazer perguntas diretas a respeito da personagem Maria Valéria, de O Tempo e o Vento, Lélia ia além. A escritora fez reflexões sobre o quanto uma personagem feminina tem limitações ao ser escrita por um homem, por mais talentoso que Erico Verissimo fosse. E incluiu em suas respostas muitas informações relevantes sobre a literatura feita por mulheres e pontuou o fato de manter, há anos, um grupo permanente de estudos de literatura de mulheres. O resultado vocês conferem abaixo, na segunda parte da entrevista com a escritora.

VOOS LITERÁRIOS ENTREVISTA LÉLIA ALMEIDA

Escritoras mulheres como foco de interesse

“Faço há cerca de 30 anos um trabalho de leitura de mulheres e acabei sendo ‘alfabetizada’ nesse sentido. De ler obras sem o ponto de vista dos homens. Com o passar do tempo, fui me distanciando da pesquisa que fiz sobre O Tempo e o Vento, a ponto de chegar a recusar uma oficina que faria usando como ponto de partida as personagens femininas do livro de Erico Verissimo. Acabei indo por outros caminhos, então esse trabalho não me diz mais respeito.”

Crítica feminista

“Os primeiros estudos da crítica feminista trabalham com dois caminhos: um deles é analisar como as personagens femininas são representadas pelos homens. O outro caminho é a escrita das mulheres. Nesse sentido, acredito que exista uma limitação quando se lê personagens como a Maria Valéria, por ser uma figura feminina escrita por um homem. Apesar de que Erico Verissimo, talvez de forma até inconsciente, tenha conseguido captar algo diferente nessa personagem e colocado nela elementos fora do convencional, ao apresentar uma mulher que não casou mas tem autoridade dentro do enredo.” 

Mulher só, mulher maldita

“No grupo permanente de estudo de literatura de mulheres que mantenho, já estudamos a figura da solteirona. Essa personagem meio maldita, socialmente amaldiçoada, que não tem a proteção do pai e nem de um marido, como é o caso das heroínas góticas. São grandes personagens, cheios de pulsões, sentimentos e contradições. A figura da mulher só é interessante, pois ela se nega a cumprir determinações sociais, como ser esposa e mãe.”

O mito do amor romântico

“Toda a cultura feminina tradicional está baseada no mito do amor romântico. Essa ilusão provoca prejuízos às mulheres até hoje. A gente vê casos de mulheres muito empoderadas que se deixam abalar por uma rejeição masculina. Acredito que substituímos algumas armadilhas por outras. Antes havia a obrigação da virgindade, de casar de branco, de ter determinado número de filhos. Hoje, existe a obrigatoriedade do parto natural, da doula, da amamentação. As mulheres sempre acabam envolvidas por regras que ditam como elas devem viver e se comportar.”

Sexualidade feminina 

“Outro erro atual, na minha visão, é reduzir a sexualidade feminina à questão da violência. Enfrento muitas críticas quando falo isso, mas seguirei defendendo essa ideia. A minha geração [a escritora nasceu em 1962] brigou pela expressão da sexualidade tanto na literatura quanto na vida, pelo direito da mulher sentir prazer na experiência da sensualidade. A sexualidade é muito maior e mais abrangente do que apenas a violência, a vitimização e a cultura do estupro.”

Relações virtuais

“As relações por aplicativos e pela Internet também afetam as mulheres de uma forma que me surpreende. Vejo alunas minhas, na faixa dos 40 anos, fazendo confidências que vi em mulheres da geração anterior à minha. Todas com muitas dúvidas e inseguranças, temos muito o que avançar nesse sentido.”

Pelo direito de não ser mãe

“Uma das vertentes na literatura escrita por mulheres são obras que buscam garantir a possibilidade das mulheres não serem mães. Uma dessas autoras é a chilena Lina Meruane [autora da obra Contra os Filhos, um ensaio que questiona os modelos de maternidade e família]. Nessa obra, Lina cita diversas escritoras que foram contra a maternidade, como Virginia Woolf.

Cuidar dos outros ou de si?

“Para além da questão da maternidade, o que está impregnado nas mulheres é a cultura do cuidar do outro contra o cuidar de si mesma. O cuidar é sempre feminino. O problema é que em geral as mulheres esquecem de olhar para suas vontades ao se dedicarem aos cuidados e vontades de outras pessoas.”

Meninas más

“As mulheres não são sempre boazinhas na vida real. Por isso, admiro escritoras que saem desse padrão estereotipado. A espanhola Carmen Martín Gaite aborda no artigo La Chica Rara, no livro Desde La Ventana, as meninas más. Já a argentina Silvina Ocampo usa o termo “menina terrível” na antologia Cuentos de la nena terrible.

Preconceito literário

“Temos casos clássicos de mulheres transgressoras na literatura que acabam morrendo no final do enredo ou sofrendo grandes punições. Uma delas é Madame Bovary. Assim como a representação da loucura. Nos homens, é algo genial. Nas mulheres, sempre é apresentada de forma negativa. Tudo isso é estudado fartamente pela crítica feminista. Por isso, precisamos ler mulheres. Mas devemos ficar atentos, pesquisar e dar preferência para escritoras que não sejam machistas, que pactuam e reproduzem o discurso vigente. Outra barreira a ser rompida é a dos leitores homens. Por mais inteligentes e evoluídos que pareçam, dificilmente são leitores de obras escritas por mulheres.”

Livros de Lélia Almeida

Numa Estrada Sem Fim que Carrego Aqui Dentro

Antonia

Senhora Sant’Ana

As mulheres de Bangkok

50 ml de Cabochard

A sombra e a chama: (uma interpretação da personagem feminina n’O tempo e o vento, de Erico Verissimo)

Querido Arthur

As gregas do Mangue

As meninas más na literatura de autoria feminina

O amante alemão (Prêmio Açorianos de Literatura, 2013)

Este outro mundo que esquecemos todos os dias.