Igor Natusch

A batalha contra a corrupção acabou. E foi o sistema quem venceu

Igor Natusch
18 de outubro de 2017
Brasília - Senador Aécio Neves retoma as atividades parlamentares no Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A decisão do Senado de devolver mandato a Aécio Neves, mesmo com as volumosas e graves denúncias que o atingem, é desoladora para a política brasileira em diferentes níveis. A partir dela, consolida-se de vez uma leitura que já era possível antes, mas que agora torna-se inescapável: o lado corrompido do sistema político saiu do córner, a suposta luta contra a corrupção subiu no telhado e a lei, aquela mesma que o título do filme ufanista e delirante diz que é para todos, segue sendo uma gripe que pega em alguns, mas contra a qual outros estão permanentemente vacinados.

Muito se falou – e com plena justificativa – no esdrúxulo voto final da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, dando aos parlamentares a prerrogativa de derrubar as medidas cautelares que afastavam Aécio do Congresso. Foi um voto gaguejante, tropeçando na própria falta de convicção, e nem poderia ter sido diferente: ficou claro que nisso votou porque assim precisava votar, e nada mais. O Supremo contradisse sua própria leitura nos casos de Delcídio do Amaral e Eduardo Cunha – e, como bem apontado por Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha, a diferença entre antes e agora é que o PT não é mais governo, a maré virou e a direita fisiológica retomou as rédeas das instituições, controlando-as novamente a seu bel prazer.

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Falta respaldo ao STF para peitar o grupo que hoje detém o poder político: na mídia, nos supostos movimentos contra a corrupção, nas multidões que hoje não se preocupam mais em ir às ruas

Respaldo que sobrava quando o PT tinha o governo em mãos

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Tergiversações possíveis são muitas, mas os fatos estão na mesa, e não irão embora tão facilmente. Cármen Lúcia, que não é tola, percebeu isso, e preferiu ajudar a concretizar a profecia de Romero Jucá a declarar uma guerra que tinha pouca esperança de vencer.

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A corrupção nunca foi o problema; de fato, muitos desejam que continue sendo a solução

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Para esses núcleos, a eleição de Dilma era inaceitável desde o início, e a constatação nada tem a ver com simpatia pelo (muito ruim) governo da presidente deposta: é simples questão de desejar o poder de volta, depois de um empréstimo que havia sido vantajoso para todos, mas passava a ser cada vez mais difícil de sustentar. Ter o poder era importante, para fugir da cadeia e para garantir a benevolência dos detentores do poder econômico. Lançado o governo petista aos leões, e imolados os nomes com os quais a estabilidade seria mais difícil, a briga da nova aliança passou a ser jogar panos quentes na dita moralização do país. Assim foi feito. E o cafuné na cabeça de Aécio é só uma das manifestações mais visíveis desse grande e, até o momento, muito bem-sucedido acordo.

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Ler figuras importantes da Lava-Jato dizendo que a operação está sendo mutilada é um tanto tragicômico: estavam mesmo tão fascinados com as manchetes, tão absorvidos pela aura messiânica em torno de si próprios que foram incapazes de perceber que era justamente essa a ideia o tempo todo?

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Alertas não faltaram. Ainda falta a condenação em segunda instância de Lula, o grande prêmio dessa cruzada pela justiça seletiva e o ato final que amarra várias pontas da trama: impede a única candidatura petista viável, satisfaz de vez as massas que associam todas as mazelas do Brasil ao PT, oferece um apoteótico ponto final a uma operação que fez muito, mas que o novo-velho poder fisiológico não deseja mais que avance um palmo sequer. Lula ser ou não culpado é o que menos importa nessa trama: estaremos todos purificados, reconciliados com a ideia de que a lei é mesmo para todos, prontos para recomeçar exatamente de onde se parou.

A narrativa dos que encontraram no impeachment de Dilma Rousseff uma chance de salvação estará encerrada, provavelmente com sucesso. E aos integrantes da força-tarefa restará o papel com o qual concordaram e do qual, hoje, reclamam sem grande convicção. Ou então adotar de vez novos papéis, como novos atores no espetáculo renovado do toma-lá-dá-cá.

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Enquanto isso, os movimentos que nos queriam livres da corrupção seguirão gritando contra homens nus em museus, os patos gigantes seguirão desinflados, as panelas seguirão descansando nos armários das cozinhas, os editoriais seguirão tentando nos convencer que as coisas estão melhorando aos poucos

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Sem ter motivos para temer a opinião pública, o fisiologismo viceja, como uma erva daninha que se favorece do sol depois da tempestade. Tudo mudou, e tudo segue igual – pelo menos até as eleições do ano que vem. E já estão trabalhando nisso, é claro. É assim que deve ser. Agora vai.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Igor Natusch

Fala de Michel Temer não é sobre Deus, mas sobre quem pode mantê-lo vivo

Igor Natusch
28 de junho de 2017
Brasília - O presidente Michel Temer fez um pronunciamento no qual contestou a denúncia apresentada ontem (26) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Hoje, a política brasileira é um atoleiro, onde cada passo nos deixa mais cobertos de constrangimento e, por mais que andemos, parece impossível avançar. A cada minuto extra sendo governados por Michel Temer, um presidente acusado pelo Procurador-Geral da República de crime comum, cometido no exercício do mandato, mais fundo pisamos no barro pútrido, mais desastrosa se torna nossa jornada pela infâmia política.

E essa inundação parece ter alcançado um nível especialmente alto com o surreal pronunciamento de Temer, concedido na tarde de terça-feira, 27 de junho de 2017. Uma fala assustadora em vários níveis, que vão muito além do insólito “não sei como Deus me colocou aqui” – uma frase tão cara de pau que já virou meme, com toda justiça.

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Antes de tudo, um desafio de compreensão se impõe. A quem, no fim das contas, Michel Temer desejava falar?

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Ao povo brasileiro, junto ao qual goza de uma impopularidade quase sem paralelos no Brasil democrático, certamente que não. Afinal, em nenhum momento dirigiu ao povo palavras de tranquilidade, esperança ou convicção – aliás, quase poderíamos dizer que não dirigiu ao povo palavra alguma. Ao alto empresariado, talvez? Mas de que jeito, se mencionou as tão trombeteadas reformas apenas de passagem, se não trouxe nenhum indicativo de melhora econômica, sequer um dividendo positivo de sua tragicômica viagem para Rússia e Noruega foi capaz de enumerar?

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Pretendendo vender a imagem de estadista ultrajado por acusações falsas, Temer só fez desnudar sua incapacidade de liderar um Estado. Ou existe qualquer coisa de líder em alguém que, diante da angústia de uma nação, dedica toda a sua fala a, mal e porcamente, defender a si mesmo?

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Nada disso: o discurso de Temer só faz sentido quando se olha para o Congresso Nacional. É a ele, ou ao que resta de apoio dentro dele, que Temer dirigiu suas palavras de frágil defesa, ao mesmo tempo que posicionou-se de forma clara em uma guerra contra o Ministério Público e a Polícia Federal. “Querem parar o país”, disse o presidente, e ao dizer tal coisa falava não ao detentores do poder econômico, mas aos deputados e senadores que podem salvá-lo da investigação no Supremo. Estou com vocês, é isso que Temer quis dizer, o tempo todo, com tal ânsia que a mal-disfarçada mensagem saltava o tempo todo para fora das entrelinhas. Estou com vocês, meu inimigo é o mesmo, estejam comigo e juntos lutemos até o fim. Querem parar o país, ora pois.

Só assim faz sentido a ausência de justificativas ou perspectivas, as ilações que comete enquanto diz que não as cometeria, os torpes comentários sobre Rodrigo Janot, o procurador Marcelo Miller e a JBS. Não explica o conteúdo de sua conversa com Joesley Batista, não justifica ter sido flagrado em mentira sobre a viagem de jatinho com um “bandido notório”, não faz mais que tergiversar sobre a gravação que, segundo perícia da PF, não foi adulterada como alega. Não entra nesses méritos simplesmente porque não é essa sua estratégia.

A luta é outra: parar de derreter no Congresso, onde até companheiros de sigla (e não estou falando de Renan Calheiros) não se constrangem mais em avacalhá-lo publicamente.

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Sem a maioria na Câmara e no Senado, Temer não tem nada – e fala grosso para tentar deter a debandada, demonstrar que está pronto para brigar por si e, por tabela, em nome deles

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Chama uma claque um tanto patética para aplaudi-lo (com direito a ridículos gritos de “bravo!” por parte de Darcísio Perondi) e elogia o “quórum suficiente para uma sessão na Câmara”, agradecendo pelo “apoio extremamente espontâneo”. É falso e patético, mas não é desprovido de função.

O cadáver político que é Michel Temer vem apodrecendo em público desde a revelação devastadora da gravação feita por Joesley. Já são 40 dias em que sua presença é um misto de infâmia, desaforo e constrangimento. A disposição, evidente quando diz que a denúncia é “uma ficção” calcada em “provas armadas”, é insistir em submeter o país a uma presença que quase ninguém tolera mais, sem brandir sequer as tais reformas estruturantes como desculpa. A briga é para salvar a pele, e a instituições que funcionem no raio que as parta. Curioso perceber que, em meio a tanta dissimulação e delírio, a fala de Michel Temer não deixa de ter uma distorcida forma de sinceridade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Igor Natusch

NA GRAVAÇÃO DE TEMER, É PRECISO OUVIR TAMBÉM O QUE NÃO SE DIZ

Geórgia Santos
19 de maio de 2017
Foto: Beto Barata/PR (Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Beto Barata/PR

Não resta dúvida que, quando as manchetes dizem que o Presidente da República concordou com o pagamento de mesada a um político preso para que ele não faça delação, temos todos e todas que prestar muita atenção. A comoção em torno da afirmação foi tão grande que a revelação dos áudios da fatídica conversa de Michel Temer com Joesley Batista, presidente da JBS, acabou parecendo menos grave do que de fato é, já que o “tem que manter isso aí, hein” não é tão explícito e espetacular quanto as transcrições davam a entender.

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Verdade que, mesmo assim, Temer é um cadáver político e seu governo, seja lá a sobrevida que eventualmente tenha, está em processo visível de decomposição pública – e não vai ressuscitar, a não ser que apareça um Jesus Cristo do céu dizendo “levanta-te e anda” para esse Lázaro coberto de vermes.

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Mas eu queria destacar outro elemento nessa gravação – que, ao contrário da satisfação do não-vice-presidente com Joesley estar “de bem” com Cunha, não fica preso a uma frase pretensamente definitiva, dissolvido que está em quase todos os momentos do diálogo. Joesley fala que está “segurando” juízes, que conseguiu “um procurador dentro da força tarefa” que está passando informações – e a essas afirmações chocantes Michel Temer reage com naturalidade, sem nenhuma surpresa, sem manifestar nem digo indignação, mas um toque que fosse de incredulidade.
O que interessa aí é mais o não dito do que o efetivamente pronunciado: não apenas o chefe do Executivo federal não demonstra reação diante desses absurdos (ao contrário, parece no mínimo desinteressado a respeito) como também não se sabe de qualquer ação posterior, que tenha pedido esclarecimentos sobre a situação, que tenha orientado algum ministro ou secretário para tomar alguma providência ou, no mínimo, buscar informações.
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Recebe um investigado, conversa furtivamente com ele na garagem do Jaburu, ouve que ele faz esforços hercúleos para corromper a investigação que o ameaça, não solta um gemido sequer de desagrado e volta para seu palácio, sem tomar qualquer providência. E querem me convencer que está tudo bem

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Eles, os mesmos que hoje ocupam o Planalto após condenarem os crimes do governo anterior – eles agora querem me convencer que Joesley falava e Temer ouvia, que não era um diálogo entre cúmplices que dividiam interesses, que essa fumaça tomando conta da casa é oxigênio colorido e não sinal de incêndio.
Já é possível localizar, em certos veículos de imprensa, o esforço de apagar as chamas, adotando rótulos como “inconclusivo” e outras contemporizações. Um esforço condenado ao ridículo, com encher baldes no chuveiro do banheiro para combater o incêndio que devora a sala e a cozinha. Já temos mais: a afirmação de que Temer pediu dinheiro para influenciar na posição das redes antes do impeachment de Dilma Rousseff, para a campanha de Gabriel Chalita em São Paulo, em 2012 e até para “despesas de marketing” contra ataques na internet.
A delação já está homologada e, ao contrário de outras tantas, vem acompanhada de evidências obtidas de forma controlada pela Polícia Federal – ou seja, não estamos apenas no terreno do dito contra o não dito, não está apenas no peso das palavras a doença que devora a carcaça do governo Temer. E que já devorou politicamente Aécio Neves, e que tem fôlego para deixar o sistema de Justiça de orelhas em pé – já que, como sabemos, apenas um dos homens no bolso de Joesley Batista está atrás das grades no momento. A promessa é de muito, muito barulho nos próximos dias – e o estrondo não está apenas no que se ouve, mas talvez ainda mais no que não se diz ou se tenta não dizer.
Foto: Beto Barata/PR
Reporteando

Silêncio também é furo jornalístico

Renata Colombo
18 de maio de 2017
(Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Alan Santos/PR

Vocês estão assistindo, meus caros, de camarote no cenário político brasileiro, a um exemplo do que chamamos de preservar o sigilo da fonte. Durante cerca de um mês, pelo menos cinco  instituições diferentes compartilharam das mesmas informações enquanto uma ação da Polícia Federal – nunca antes vista – estava em curso. NINGUÉM vazou sequer uma frase sem sentido. NADA veio a público até o momento certo.

Procuradoria-geral da República (Ministério Público Federal), Supremo Tribunal Federal, delatores da JBS, advogados da JBS, o jornalista Lauro Jardim. O que eles têm em comum? Guardaram um grande segredo durante o tempo necessário para que a operação Lava Jato chegasse ao presidente Michel Temer, ao senador Aécio Neves e a outros políticos do alto clero do governo federal.

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O segredo garantiu que a PF tivesse tempo para colocar carimbos em notas para pagamento de propina e chip rastreador nas malas, para que a corrupção transcorresse da forma mais tranquila possível para os envolvidos – sim, é isso mesmo

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Isso é muito raro, muito. Na maioria das vezes nós, repórteres, somos ansiosos, queremos garantir o furo jornalístico, não admitimos perder. Infernizamos a vida de advogados e assessores para conseguir vazar uma mísera informaçãozinha e eles fazem o mesmo conosco. Porém, segurar a ansiedade também nos permite contar histórias como esta e escrever uma nova versão do Brasil. Porque este livro está um pouco empoeirado, precisando de uma limpeza.

Foto: Alan Santos/PR