Voos Literários

Aderimos à campanha #dêlivrosdepresentedenatal

Flávia Cunha
19 de dezembro de 2018

A crise nas grandes livrarias, com pedidos de recuperação judicial e dívidas milionárias com editoras e outros fornecedores, expõe uma faceta até então pouco conhecida do mercado editorial brasileiro. Há algum tempo, as pequenas livrarias acusam a Saraiva e a Cultura da prática de dumping (colocar à venda produtos por um preço inferior ao de mercado). Já as editoras, sofriam com a demora no pagamento por parte dessas gigantes do setor livreiro. 

Pessoalmente, posso dizer que durante a prestação de serviços para uma editora de pequeno porte localizada no Rio Grande do Sul havia muita dificuldade na interação com as grandes livrarias. Desde a falta de interesse em vender nossos livros até a dificuldade na quitação de dívidas. Por outro lado, com muita frequência havia reclamações por parte dos consumidores, se os nossos livros não estavam à venda nos principais shoppings centers da cidade. Parecia de alguma forma ser errado expor a situação claramente para o público: as editoras – especialmente as menores – não tinham grandes vantagens nas negociações com essas duas livrarias, que agora estão expostas no noticiário devido à sua situação financeira.

Apesar disso, não  há unanimidade por parte dos analistas. Alguns falam de uma crise no setor livreiro de uma forma generalizada. Nessa visão, ignora-se que as livrarias de médio e pequeno porte seguem firmes, apesar dos pesares. Um projeto que está tentando ser colocado em prática é o de fixar, por lei, o preço único nos livros, fazendo com que lançamentos tenham no máximo 10% de desconto, para evitar concorrência desleal.

Campanhas online

Recentemente, surgiram duas campanhas online para fortalecer o comércio de livros: #vempralivraria e  #dêlivrosdepresentedenatal.

Sobre essa primeira campanha, destaco a atitude da Livraria Taverna, um dos estabelecimentos independentes mais atuantes nos últimos anos em Porto Alegre. Em uma postagem bem contundente em suas redes sociais, a decisão da Taverna foi aderir à iniciativa, mas deixando claro que as grandes livrarias estão longe de serem vítimas nessa história.

Já a proposta de sugerir livros como presente de Natal não tem como criticar. Já que o consumismo aparece bem exacerbado nessa época do ano, pelo menos que seja um consumo do bem, com produtos que abram a mente e o coração das pessoas.

Sugestões de presentes subversivos para esse Natal

Para “causar” nos eventos em famílias, que tal presentear aquele parente religioso mas que defende a pena de morte com o livro Jesus e os Direitos Humanos? Uma bela iniciativa do Instituto Vladimir Herzog, que merece ser amplamente divulgada.

Para quem tem familiares (ou amigos) com dificuldade de acreditar que o Brasil enfrentou uma ditadura militar, a sugestão é comprar o livro Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva. A obra narra a trajetória de sua mãe, Eunice, que precisou criar 5 filhos sozinha após o marido ser torturado, morto e dado como desaparecido, em 1971. Eunice faleceu na semana passada, no mesmo dia em o AI-5 completou 50 anos.

Para os amigos LGBT bem-humorados, a dica é oferecer o verdadeiro Kit Gay! Sim, ele existe! Ao menos na brincadeira genial proposta pelo selo Galera Record. São 3 romances juvenis de qualidade, com a temática LGBT. Uma ótima forma de sambar na cara dos criadores de fake news!

Sigam o exemplo da Islândia e transformem os livros no principal presente desse Natal!

 

 

Voos Literários

Maurem Kayna . O Conto da Aia e a distopia presente

Flávia Cunha
11 de dezembro de 2018

O Brasil atual e O Conto da Aia  guardam semelhanças assustadoras. A declaração de uma futura ministra de que “as mulheres nasceram para serem mães” é o símbolo do retrocesso que vivemos diariamente e conferimos nos noticiários.

A pedido da coluna Voos Literários, a escritora Maurem Kayna fez uma poderosa reflexão sobre o livro  da escritora canadense Margaret Atwood. O Conto da Aia também pode ser conferido em formato de série, sucesso de público e crítica. A segunda temporada estreou no segundo semestre de 2018 no Brasil.

Maurem define-se como “sempre curiosa, em geral um tanto perplexa com o mundo, permanece convicta de que a Literatura tem o poder de abastecer a Vida e mover rumos”. Para saber mais sobre a autora, acessem seu site.

Mas vamos ao texto. Boa leitura!

“Uma distopia presente”

 A diferença entre distopias e utopias não tem a ver apenas com o caráter negativo de um em oposição às expectativas positivas do outro. Tampouco com a suposta distância à frente no tempo. O mais aterrador é a diferença de probabilidade. Os fatos têm mostrado que as chances de concretização das distopias é bem maior que o das utopias, pelo menos até esse ponto da história.

Se pensarmos no tanto que há de 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldoux Huxley)  e 1985 (Anthony Burgess) no nosso cotidiano, o Conto da Aia fica ainda mais assustador. Aliás, ele é tão estarrecedor não porque suscita o temor de que as situações narradas nos assolem em um futuro indefinido, mas porque muitos dos absurdos vivenciados pela protagonista e por todas as mulheres do livro já acontecem hoje em alguma medida. Ditaduras vinculadas a correntes religiosas existem, países onde mulheres não tem nenhum direito também existem, a crueldade de mulheres com outras que vivem uma condição distinta da sua também existe, e nem precisamos cruzar fronteiras para ver isso acontecendo. Se tudo no livro parecer exagerado, é bom prestar atenção a um trecho dos primeiros capítulos:

As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser críveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas.

Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade.

Vivíamos nas lacunas entre as matérias.

Muito provavelmente a maior parte das leitoras (e digo assim no feminino porque mesmo que os leitores homens se sensibilizem com as desventuras das mulheres da narrativa, terão dificuldade de entender o que é sentir na pele algumas das situações narradas)  enfrentará uma leitura entrecortada de pausas e angústia. O livro todo é devastador, não porque apresente um cenário sanguinário – ainda  que haja algumas cenas de violência. A fonte de agonia do leitor é mais pulsante nos trechos onde o silêncio imposto molda os movimentos e decisões das personagens.

A aia, cujo nome não saberemos porque todas as aias perderam o direito a um nome próprio para serem referidas como uma propriedade de seus comandantes, é quieta e passa pela patrulha moral que qualquer mulher em nossa sociedade enfrenta.

Evito olhar para baixo, para meu corpo, não tanto porque seja vergonhoso ou impudico mas porque não quero vê-lo. Não quero olhar para alguma coisa que me determine tão completamente.

Há um ponto da narrativa que me tocou fundo. Quando a aia recorda o momento chave em que as perdas de direito das mulheres se estabeleceu, a reação do seu parceiro é muito significativa. Ele lhe pede calma e promete cuidar dela, enquanto ela reconhece estar sendo tratada como criança, ao mesmo tempo em que se recrimina, acusando a si mesma de paranoica por sentir o desconforto que sente.

Houve passeatas, é claro, muitas mulheres e alguns homens. Mas foram menores do que se teria imaginado. […]

Ele não se importa com isso, pensei. Não se importa nem um pouco. Talvez até goste disso. Não somos mais um do outro, não mais. Em vez disso, eu sou dele.

Os dois lampejos de esperança do livro, porém, tem a ver com o poder da amizade  e com as várias e sutis resistências à norma vigente. A força que o afeto por alguém pode nos insuflar é um alento. Seja a amizade, seja o afeto que se entrelaça no corpo por conta da atração sexual. A aia tem uma amiga indócil e deseja que ela não desista, que não se submeta, que consiga salvar a própria pele ao mesmo tempo que deseja na amiga uma bravura que não consegue localizar em si mesma.

Sob o tecido coeso da tirania, também há o bálsamo de uma rede de solidariedade, a forma mais robusta de resistir, que requer, algumas vezes, uma coragem quase.

Uma simbologia interessante do livro é que dos dezesseis capítulos, sete tem “Noite” como título. São tempos escuros esses narrados por Atwood. E depois de tanta escuridão, temos um epílogo cuja função talvez seja nos fazer suportar a história pela certeza da sucessão dos regimes, uma maneira de nos assegurar que o passar do tempo sempre desacomoda qualquer regime – para o bem e para o mal.

Quando terminei a leitura do Conto da Aia, estava em uma cidade com muitas muçulmanas e a cada uma que encontrava envolta em véus e aquilo que minha vivência ocidental só consegue nomear como aceitação, sentia recrudescer a angústia da leitura. E ao revisitar os trechos sublinhados novas perguntas e novas esperanças me invadem.

Tenho o pão suficiente de cada dia, então não perderei tempo com isso. Não é o problema principal. O problema é engoli-lo sem sufocar com ele.

 Foto: Site da autora

Voos Literários

Resistência cultural em debate

Flávia Cunha
4 de dezembro de 2018

Como ser oposição ao presidente eleito e seus ideais conservadores sem cair em discursos de ódio ou em utopias inalcançáveis?

O termo resistência, utilizado com o objetivo de unir os opositores ao futuro governo, independente de partidos políticos, enfrenta críticas dos eleitores de Bolsonaro. Mas desde quando resistir é algo pejorativo? Ou violento?

Um exemplo de que é possível reagir a momentos difíceis de maneira positiva encontra-se no livro A Resistência, do celebrado escritor argentino Ernesto Sabato, falecido aos 99 anos, em 2011. A obra, lançada em 2000, constitui-se de cartas com alentos e conselhos aos leitore, com um teor extremamente atual.

Na carta intitulada A Resistência, o escritor pondera como ter uma postura combativa em meio aos compromissos impostos pela vida cotidiana:

Acredito que é preciso resistir: esse tem sido meu lema. Hoje, contudo, muitas vezes me pergunto como encarnar essa palavra. Antes, quando a vida era menos dura, eu teria entendido por resistência um ato heróico, como negar-se a continuar sobre este trem que nos leva à loucura e ao infortúnio. Mas pode-se pedir às pessoas tomadas pela vertigem que se rebelem? Pode-se pedir aos homens e às mulheres do meu país que se neguem a pertencer a esse capitalismo selvagem, quando eles têm de sustentar os filhos e os pais? Se eles carregam tal responsabilidade, como poderiam abandonar essa vida?”

No trecho final da carta A Resistência, Ernesto Sabato aconselha a resistir por meio de pequenos atos e também dos afetos:

Os homens encontram nas próprias crises a força para sua superação. Assim o demonstraram tantos homens e mulheres que, contando apenas com sua tenacidade e sua valentia, lutaram e venceram as sangrentas tiranias do nosso continente. O ser humano sabe fazer dos obstáculos novos caminhos, porque à vida basta o espaço de uma fresta para renascer. […] Não deixarmos desperdiçar a graça dos pequenos momentos de liberdade de que podemos desfrutar: uma mesa compartilhada com pessoas que amamos, umas criaturas que amparemos, uma caminhada entre as árvores, a gratidão de um abraço. Gestos de coragem como saltar de uma casa em chamas. Não são atos racionais, mas isso não importa: nós nos salvaremos pelos afetos.

O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria.”

E é com muita esperança e afeto que convido a todos que estiverem em Porto Alegre (RS) no dia 17 de dezembro, às 20h, a comparecerem ao evento Resistência Cultural em Debate. Serei a mediadora da conversa entre três mulheres atuantes no meio cultural da cidade e do Estado: a cantora e jornalista Camila Toledo, a produtora-executiva de cinema Graziella Ferst e a atriz, diretora e produtora teatral Raquel Grabauska.

A ideia é fazer uma roda de conversa não apenas de produtores culturais e artistas, mas de todos aqueles que querem apoiar a Arte e a Cultura no Brasil.

O momento é de união, reflexão e apoio mútuo. Compareçam.

 

Voos Literários

Denise Cruz: Inspiração para o Novembro Negro

Flávia Cunha
27 de novembro de 2018

Este mês é dedicado à reflexão sobre racismo no Brasil, um fato que muita gente tenta relativizar e minimizar. O Novembro Negro é uma forma de dar visibilidade ao tema e contou com diversas atividades em diferentes cidades brasileiras. Começou a partir do Dia da Consciência Negra (20), uma homenagem a Zumbi dos Palmares e uma forma de evitar o apagamento da História desse guerreiro que lutou contra a escravidão do povo negro.

Para abordar o tema de uma forma inspiradora, a coluna Voos Literários convidou a jornalista e radialista Denise Cruz para escrever a respeito de suas leituras e vivências.  

Dona de uma das vozes mais marcantes do rádio gaúcho, –  atualmente trabalha na Rádio União FM – nesse texto Denise vai muito além da voz. Demonstra sua sensibilidade e sua visão de mundo, que também passa pelo universo acadêmico. É mestre em Psicologia e professora universitária na Unifin, onde coordena o curso de jornalismo.

Com a palavra, Denise Cruz:

Inspiração. Sempre que inicio a leitura sobre a biografia de alguém que admiro parto em busca de algo que faça sentido para a minha história. Entender a caminhada de outras pessoas torna a nossa estrada com curvas menos acentuadas ou, ao menos, aprendemos a dosar a velocidade nos momentos que as viradas acontecem de forma mais abrupta.  Foi assim quando li o Oprah – Uma Biografia, de Kitty Kelley (2010). Queria muito saber a trajetória dessa mulher, negra, fora dos padrões estéticos da televisão, vinda de família humilde que alcançou o sucesso não só nas telinhas, mas que virou referência para outras mulheres no mundo.

A história de Oprah não é diferente de muitas histórias que vemos/sabemos em vários cantos do Brasil.

A diferença está em como ela lidou com as adversidades. Vivendo situações semelhantes a que ela passou podemos nos colocar como vítimas de tudo e todos ou reunir sonhos e empenho para a transformação. Ela ficou com a segunda opção. Nina Simone (outra mulher negra agente da transformação) usou a música para cantar seus direitos e marcar o seu espaço. Aqui recomendo o livro Jazz Ladies – A História de uma Luta, de Stéphane Koechlin (2012).

Observando a trajetória dessas mulheres (citando apenas duas grandes protagonistas de suas histórias e com grande contribuição para a sociedade), entendo o quanto ainda estamos longe da real consciência da contribuição negra nas mais diversas áreas.

Através desses livros mergulhei em narrativas que me mostraram outra perspectiva para as minhas relações e ambições. Longe de qualquer comparação (até porque não existe um parâmetro mínimo para isso, mas como disse lá no início, a busca é pela inspiração) ao me posicionar como mulher negra na Comunicação vejo que minha caminhada ainda está nos primeiros passos e com algumas poucas curvas acentuadas.

Tenho muito que aprender e mais ainda a agradecer por todas as mulheres negras que lutaram pela minha voz. Pela nossa voz.”  

Foto: Acervo Pessoal

Voos Literários

A necessária criminalização da homofobia

Flávia Cunha
20 de novembro de 2018

Vivemos tempos difíceis no Brasil para os sonhadores e para aqueles que desejam viver de acordo com seus próprios anseios. Em nome de uma suposta liberdade de expressão, cada vez saí mais do armário o preconceito e o ódio contra a comunidade LGBTQ+.

E é por isso que aguardo com grande expectativa o julgamento no STF de duas ações pedindo a criminalização de atos de homofobia. Há quem diga que é “mimimi” (a expressão mais usada por pessoas sem empatia). Há também aqueles que consideram que o assunto é “menor” perante as dificuldades financeiras e sociais enfrentadas pelo povo brasileiro.

Porém, para termos uma sociedade mais humana e menos violenta, é preciso, sim, que homofóbicos entendam que estão errados. Compreendam que não existe “moral e bons costumes” que justifiquem bater em um casal do mesmo sexo que esteja se beijando em público, por exemplo.

Uma pesquisa recente aponta a morte no Brasil, em 2017, de 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais por crimes motivados por homofobia. E isso é muito grave e passa pelo preconceito pelo diferente e o medo de alguém da família “virar” gay.

Um livro muito sensível sobre o assunto é Um Milhão de Finais Felizes, de Vitor Martins. Apesar do gênero ser young-adult (para jovens adultos), a história de Jonas, o pós-adolescente que enfrenta o preconceito da família religiosa e encontra o amparo dos amigos, vai agradar a todos que tiverem alteridade e gostarem de um enredo que mescla momentos tristes com doses de humor.

Nos agradecimentos, o autor dirige-se diretamente aos leitores, no trecho que reproduzo a seguir, na esperança de que cada vez mais pessoas desenvolvam o entendimento sobre quem é diferente:

Eu espero que, de alguma forma, a história de Jonas tenha sido especial para você. Principalmente se você se identificou com a jornada do garoto que, infelizmente, não recebe amor e aceitação dentro da sua própria casa. Se você está passando por isso espero que Um milhão de finais felizes tenha te ajudado a acreditar que, em breve, vai ficar tudo bem. Dias ruins, infelizmente, vão existir, mas você não está sozinho. Nós somos uma família.

E se você nunca passou por nada parecido, mas quer ajudar, busque casas de acolhimento LGBTQ+ no seu estado e doe como puder. Doe dinheiro, tempo ou compartilhe informações nas redes sociais. O Brasil é um país cruel demais com quem nasceu diferente, mas, juntos, nós temos muita força.

E os finais felizes que a gente tanto quer são apenas o começo.”

O primeiro livro de Vitor Martins, Quinze Dias, também trata sobre aceitação e sexualidade. Um assunto que pode ser incômodo para os mais conservadores, mas que o autor aborda com leveza e lirismo.

  • Esse texto é uma homenagem à Parada Livre de Porto Alegre (RS), realizada no dia 18 de novembro, sem apoio do poder público e com forte teor político.

Foto de capa:  Dani Montano

Fotos da Parada Livre POA: Dani Montano e Instagram do evento

Voos Literários

15 de  Novembro – O golpe da República

Flávia Cunha
13 de novembro de 2018

A coluna Voos Literários pediu para João de Los Santos, historiador e idealizador da Lumia – Consultoria e Pesquisa Histórica, uma indicação literária que explicasse o feriado da Proclamação da República. O especialista foi além. Fez uma análise da conjuntura da época, sem deixar de lado as comparações necessárias com o período atual. A leitura vale muito a pena!

“Quase todos sabem que nessa quinta-feira, dia 15 de Novembro, será feriado. A maioria das pessoas não vai trabalhar. Alguns afortunados irão aproveitar e fazer um ‘feriadão’. Mas, afinal, o que foi a Proclamação da República, comemorada nesta data?

Já na segunda etapa do Ensino Fundamental fomos ensinados que no dia 15 de Novembro de 1889 o Marechal Deodoro da Fonseca se dirigiu à praça da Aclamação, atual praça da República, no Rio de Janeiro, e num ato apoteótico declarou que a partir daquele momento o Brasil deixava de ser uma monarquia. Ao menos era assim que nos ensinavam, nas aulas de OSPB ou Moral e Cívica, disciplinas que caíram em desuso e hoje não seriam mais adequadas para a nossa realidade. Mas isso é assunto para outro texto.

Em prol do advento da modernidade, militares, apoiados por latifundiários descontentes com o fim da escravidão e outros setores progressistas da sociedade, resolveram que era preciso inovar. Para garantir a liberdade de participação política de todos os brasileiros, maior autonomia das províncias, entre outros itens tão bem expressos na tão admirada constituição (norte-americana).

.

Podemos afirmar que a “inauguração” do Estado brasileiro foi feita através de um golpe militar

.

Conduzido por Deodoro e complementado por Floriano, teve seu cerne também nas diversas revoltas ocorridas (Inconfidência Mineira, Confederação do Equador, Guerra dos Farrapos, entre outras), ou seja, a República era oriunda  da insatisfação contra o poder centralizador da monarquia. No entanto, o poder que emana do povo não foi clamado por ele. Os que passeavam na praça naquele dia não faziam ideia do que estava acontecendo. Ao contrário dos outros golpes que viriam acontecer no Brasil, a cada 30 ou 40 anos, na média, este não teve chamamento ou apoio da grande massa.  As grandes questões que deveriam ser resolvidas como inserção dos negros na sociedade, distribuição de terras para incremento da produção e incentivo à indústria nacional, não foram resolvidas na República Velha. Muitas dessas questões até hoje estão em aberto.

No feriado da coisa do povo, não veremos procissões; não veremos desfiles, espartanos ou dionisíacos; no máximo ouviremos: “Interrompemos nossas transmissões para o pronunciamento do Excelentíssimo Presidente da República…”

P.S.:  Este texto contém ironia e não é didático. Seguem duas sugestões de leitura se você quiser se aprofundar no tema.

Livros: Para iniciantes, 1889, do Laurentino Gomes, é uma boa pedida. Embora receba críticas por focar em termos mais burlescos ao invés de uma análise mais aprofundada da economia, é extremamente bem escrito. Agora, se o interesse for aprofundar no assunto a referência é A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil, de José Murilo de Carvalho. A narrativa é mesclada com imagens de pinturas, ilustrações de revistas e monumentos, sendo que o autor utiliza-se destes recursos para compor um cenário da sociedade da época.”

Imagem:  Pintura Proclamação da República, de Benedito Calixto, de 1893 (Reprodução/Internet)

Voos Literários

Livro Livre . um slogan para a resistência

Flávia Cunha
6 de novembro de 2018

A Feira do Livro de Porto Alegre, um dos eventos literários mais tradicionais do país, vai até o dia 18 de novembro, no centro da capital gaúcha. A Feira, em sua 64a edição, é um exemplo de resiliência. Todos os anos é necessário um esforço para garantir sua realização, por meio de patrocínios, apoios e parcerias. Acompanho os bastidores do evento desde 2015, quando comecei a atuar na área editorial e conheci uma parte dos responsáveis pela organização da feira, que é uma das responsabilidades da Câmara Rio-grandense do Livro.

.

São pessoa apaixonadas pelo que fazem e que lutam contra a falta de recursos financeiros com jogo de cintura e  valentia

.

E foi preciso coragem (e diplomacia) para enfrentar a prefeitura de Porto Alegre, que queria cobrar uma taxa de milhares de reais pelo uso do espaço público, já que uma das características – e charmes – da Feira do Livro é ser realizada a céu aberto, em uma das principais praças do centro da cidade. Houve pressão por parte do meio cultural, além de  negociações diretas com o poder público. No fim, o prefeito Nelson Marchezan, do PSDB, cedeu e desistiu da cobrança. Na abertura oficial da feira, no dia 10, ele ironizou a situação e resolveu dar mais esclarecimentos, citando que em época de fake news era melhor deixar claro o que tinha ocorrido na época. ““A Feira do Livro é uma das poucas unanimidades que temos na nossa cidade. A partir de agora, o evento vai contar com segurança jurídica para acontecer todo ano, independente de vontades pessoais”, ressaltou.

Ele se referia à modificação de um decreto que tornou isentos de compensação financeira eventos que estejam classificados como bem cultural e de natureza imaterial.  É o caso da Feira do Livro de Porto Alegre, que já recebeu distinções como a Ordem do Mérito Cultural, em 2006, concedida pela presidência da república por ser um dos eventos culturais mais importantes do Brasil. Em 2005, foi declarada como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio Grande do Sul e, em 2010, passou a integrar o Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial da cidade.

Mesmo assim, foi necessária um embate com a prefeitura para que enfim não ocorresse essa cobrança que inviabilizaria um evento com 100% das atividades gratuitas. E são muitas. Nesse ano, serão mais de 700 sessões de autógrafos, de autores de todos os gêneros literários. E cerca de 500 atividades, como oficinas, mesas de debate, palestras e espetáculos teatrais.

Em meio a esses percalços, a organização seguiu com o planejamento das ações para a feira do livro de 2018. E criou uma campanha com um slogan que tem tudo a ver com o momento atual: Livro Livre – Um Mundo na Praça.

É necessário se falar em liberdade, quando muitos querem cercear a liberdade de professores em sala de aula, uma das profissões que mais podem incentivar a leitura no país. É preciso ter livros livres para que possamos ter senso crítico, inclusive para discordar de forma articulada e racional do que estamos lendo. É preciso interpretação de texto para evitar sermos enganados por notícias falsas, tão comum nos dias atuais.

E é preciso ter eventos culturais como esse. Livres e ocupando espaços públicos. Um dos exemplos do que estou me referindo foi um debate sobre a luta para o acesso a leitura promovido por representantes de bibliotecas comunitárias.

O Slam Conexões trouxe poesia para a praça, sem deixar de lado o engajamento político, com o coro de: “Racistas, fascistas, não passarão!”

Outro evento que merece destaque é a Mostra da Resistência, que contará com o lançamento de um e-book sobre o legado de Paulo Freire.

Pessoalmente, estou envolvida com duas atividades na programação oficial da Feira do Livro de Porto Alegre, o que me traz muito orgulho. Um é um evento cultural infantil chamado MúsicaLivro ao Vivo, no qual conto com a parceria generosa de músicos para fazerem essa conexão entre musicalidade e literatura.  Será nessa terça-feira, dia 6, no Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega.

No dia 8, quinta-feira, participarei de um painel com a jornalista de São Paulo, Gabriela Romeu, sobre produção cultural para a infância e seu espaço na mídia.  Gabriela também é escritora, documentarista e crítica de teatro infantil. Será um bate-papo em que o cerceamento à liberdade certamente virá à tona durante a conversa.

Sigamos livres!!

Foto de capa: Maria Ana Krack / PMPA

Foto – Evento bibliotecas comunitárias : Diego Lopes/Feira do Livro de Porto Alegre

Foto – Slam Conexões: Pedro Heinrish/Feira do Livro de Porto Alegre

Voos Literários

A Esperança e a Luta

Flávia Cunha
30 de outubro de 2018

Abre as tuas mãos sobre o infinito.

E não deixes ficar de ti

Nem esse último gesto!

O que tu viste amargo,

Doloroso,

Difícil,

O que tu viste inútil

Foi o que viram os teus olhos

Humanos,

Esquecidos…

Enganados…

No momento da tua renúncia

Estende sobre a vida

Os teus olhos

E tu verás o que vias:

Mas tu verás melhor…

… E tudo que era efêmero

se desfez.

E ficaste só tu, que é eterno.”

O trecho acima é do poema Tu Tens Um Medo, de Cecília Meireles, lido durante o Sarau da Esperança e da Luta, em Porto Alegre. O evento gratuito foi organizado pelo Sarau das Minas, um coletivo que se propõe a incentivar a literatura feita por mulheres.

Mas o que aconteceu na última sexta-feira, às vésperas do segundo turno das eleições, foi mais do que um encontro sobre literatura e cultura. Foi um espaço de acolhimento. Uma catarse coletiva para buscar inspiração. E resistir, insistir e seguir em frente.

Minha singela sugestão para a resistência cultural e intelectual é participar de eventos como esse. Procure nas redes sociais, tem muita gente legal e cheia de conteúdo disposta a compartilhar conhecimento e a propor amor e fraternidade em tempos difíceis.

Compre livros de escritores independentes. Prestigie as feiras do livro, que são mais do que locais de comercialização de obras literárias. São espaços em que a gente respira cultura. Vá em um show de uma banda de sua cidade. Lote os espetáculos teatrais feitos por pequenas companhias. Compareça à exposições de arte em museus e centros culturais. Não deixe para sair de casa apenas quando alguém famoso estiver em turnê pelo seu estado. Também não use como desculpa a falta de dinheiro, porque muitas das sugestões propostas nesse texto são gratuitas.

Vamos resistir. Sem perder a ternura jamais.

Voos Literários

“O que você faria, se não tivesse medo de nada?”

Flávia Cunha
23 de outubro de 2018

O poema impactante que dá título a esse texto foi apresentado durante a Oficina Formação e Mediação de Leitura em Literatura Marginal, ministrada pela professora de inglês e doutoranda em Letras pela FURG, Bianca Ramires. A autoria do poema é da página Um Poeta Louco, que não traz muitos detalhes sobre a biografia de seu autor, bastante ativo nas redes sociais. O conceito de “literatura marginal” é bem amplo e integra toda a literatura que foge do circuito tradicional de editoras e também do estilo literário canônico. Nesse sentido, textos literários escritos somente na Internet entram nesse gênero de “literatura marginal”.

O poema é extremamente atual. Vivemos com medo, independente do espectro social e político do qual fazemos parte. Tem quem medo da esquerda, como a atriz Regina Duarte. Tem quem receie a volta da ditadura militar com a guinada para a extrema direita. Os ricos morrem de medo de assaltos. Os pobres honestos, de serem confundidos com criminosos e acabarem sendo vítimas da violência policial.

Essa poesia bateu forte internamente, em especial por esse momento pré-eleições e da ansiedade sobre o que será das nossas vidas e do Brasil daqui para frente. Por isso, lá vai de novo a pergunta:

“O que você faria, se não tivesse medo de nada?”   

Um Poeta Louco sabe das coisas. Sabe como remexer com nossos anseios. Assim como a “literatura marginal” feita nos slams, competições de poesias próprias recitadas em plena rua, como uma forma de resistência e ocupação. No Rio Grande do Sul, os poetry slams têm grande engajamento em diferentes grupos, como o Slam das Minas, em que somente mulheres podem participar, como uma forma de garantir o protagonismo feminino.

A professora Bianca Ramires destacou, durante o evento do qual participei, a performance de Cristal Rocha, de 15 anos, durante um slam, falando sobre feminismo, racismo e estado democrático de direito.  Aqui tem um vídeo dela durante a Final Gaúcha de Slam 2018.

Por fim, vale destacar ainda a “literatura marginal” feita por mulheres negras, como Carolina Maria de Jesus (do agora cultuado Quarto de Despejo), Elisa Lucinda (também conhecida por seu trabalho como atriz e autora do expressivo poema Mulata Exportação que alerta: Porque deixar de ser racista, meu amor,  não é comer uma mulata! e Conceição Evaristo,  Conceição Evaristo, que recentemente tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras e recebeu apenas um voto. (Em seu lugar, foi eleito o cineasta Cacá Diegues.)

Mas como disse Bianca Ramirez durante a oficina, “se a Academia Brasileira de Letras for a favor, nós devemos ser contra (e vice-versa)”, parafraseando Leonel Brizola com sua famosa máxima a respeito da Rede Globo.

 

 

Voos Literários

Os eleitores e a roupa nova do rei

Flávia Cunha
16 de outubro de 2018

Estou pronto” – disse finalmente o rei, completamente nu. “Acham que esta roupa me assenta bem?” E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova. E os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo do chão e logo começaram a andar com as mãos no ar, carregando nada, pois também eles não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma. À frente o rei andava orgulhoso e todos os que o assistiam das ruas e das janelas, exclamavam: “Como está bem vestido o rei! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!!!” Nunca na verdade a roupa do rei alcançara tanto sucesso!! Até que subitamente uma criança, do meio da multidão gritou: O rei está nu!!! “Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente!” –observou o pai a quantos o rodeavam. Imediatamente o povo começou a cochichar entre si. “O rei está nu! O rei está nu!!” –começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: “O desfile tem que continuar!!” E, assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram, segurando a sua cauda invisível.”

O trecho acima é de uma das mais diversas versões existentes de A Roupa Nova do Rei, publicado em 1837. Esse clássico de Christian Andersen faz parte do gênero contos de fada, histórias originalmente escritas para adultos que foram adaptadas para crianças com o surgimento da literatura infantil.

Ao longo dos anos, essas histórias entraram numa espécie de inconsciente coletivo ocidental, por terem sido tantas vezes contadas e recontadas em livros e filmes. O que pode acontecer a partir disso é a criação de novos textos a partir desses outros  já existentes. O diálogo entre eles é a chamada intertextualidade. Esse recurso leva o leitor a ativar os seus conhecimentos do mundo, ao recorrer à memória para construir o sentido do texto. Dessa forma, a intertextualidade enriquece a leitura, no momento em que são percebidas diferenças e semelhanças entre textos de origem e suas recriações.

.

Voltando à Roupa Nova do Rei, permitam-me recriar mais uma vez essa história.

.

Digamos que o Rei fosse uma representação de uma grande parcela da população que acredita na candidatura de extrema-direita que está à frente nas pesquisas do segundo turno das eleições  presidenciais brasileiras.

Esses leitores estão encantados com a retomada da moralidade na política e o combate à corrupção propostos por Jair Bolsonaro. Essa é a roupa nova do Rei. O plano de governo do candidato é pouco crível, com informações equivocadas e com propostas nada claras. Mas os nossos reis do século 21 estão lá, nus, e jurando que estão vestindo a melhor candidatura.

Pode ser que ainda reste tempo para acreditarem em alguém que os alerte para o fato, como a criança tenta fazer no clássico conto de fadas. Porém, como vemos no trecho acima, o Rei prefere fingir que não percebeu ter sido enganado pelos tecelões que criaram a roupa imaginária. Continuou impassível seu desfile, tentando manter as aparências. Já em um pleito, o que normalmente acontece com eleitores arrependidos é a amnésia seletiva. Ou vocês conhecem alguém que admite publicamente (e com orgulho) ter votado em Fernando Collor de Mello para presidente da República?

Imagem: Reprodução da Internet