Voos Literários

Mês Caio F. – Carta para muito além do muro

Flávia Cunha
26 de fevereiro de 2019

Impossível falar sobre o legado de Caio Fernando Abreu na literatura sem abordar seu hábito compulsivo de escrever cartas para amigos, familiares e pessoas do meio cultural. Era uma forma de desabafar, parabenizar outros escritores por suas obras, divagar sobre o seu processo criativo ou simplesmente expressar afeto pelos amigos que fez nas diferentes cidades e países por onde passou ao longo de sua vida.

Importante ressaltar que era uma época ainda pré-Internética, apesar do advento da informática ir avançando lentamente. Caio faleceu em 1996 e digitou seus últimos textos no Robocop, apelido carinhoso dado a um laptop que ele teve muita resistência em usar, por achar mais fácil seguir datilogrando sua querida máquina de escrever, batizada de Virginia Woolf. Hoje em dia, provavelmente Caio F. escreveria e-mails e mensagens frequentes  pelo whatsapp, porque o que importava para ele era comunicar-se.

Ítalo Moriconi, estudioso responsável pela publicação e organização do livro Cartas, lançado em 2002, considera que essa correspondência faz parte do trabalho de Caio como escritor, como comenta na introdução dessa obra:

Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais. suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário, ainda não revelado ao público. Tudo produto de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentado-se de vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza.”

Em uma carta escrita à amiga Maria Lídia Magliani, Caio F. antecipa o desejo de revelar publicamente seu diagnóstico de HIV positivo.

Logo em seguida a essa carta, o escritor utiliza sua coluna no jornal O Estado de São Paulo para informar aos leitores sobre o assunto, um fato ainda considerado tabu na década de 1990. Primeira Carta Para Além dos MurosSegunda Carta Para Além dos Muros e Última Carta Para Além dos Muros são crônicas cheias de coragem e lirismo. Os três textos podem ser encontrados no livro Pequenas Epifanias, uma coletânea com crônicas incríveis do escritor.

Mas é em sua correspondência que podemos ver seu primeiro movimento nesse sentido, o de não tornar a Aids um segredo. Na carta abaixo, publicada na íntegra, Caio Fernando Abreu já demonstra a forma como encararia seu diagnóstico: sem medo, com um certo bom humor e revelando a gratidão pelo carinhos dos que o rodeavam. E com um amor à Vida renovado:     

São Paulo, 16.8.94

Magli querida:

Pois é, amiga.

Aconteceu — estou com aids — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique…), te escrevo de minha suíte no hospital Emílio Ribas, onde estou internado há uma semana… Ah, Magli, que aventura. Voltei da Europa já mal — febres, suadores, perda de peso (perdi — imagina — oito quilos), manchas no corpo — e sem um tostão. Não vou te contar todos os detalhes dolorosos dos dois últimos meses — mas meu santo é forte e mandou aquele nosso velho anjo da guarda chamado Graça Medeiros, vinda de NY porque o irmão de S. […] está terminal […] Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente. Ligando pra família e amigos, no 3o dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de “um quadro de dissociação mental”. Pronto-Socorro na bicha: acordei nu amarrado pelos pulsos numa maca de metal… Frances Farmer, Zelda Fitzgerald, Torquato Neto: por aí. Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho um no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de “Callas”, em homenagem a Tom Hanks) etc. etc. Não tenho nada, só um HIV onipresente e uma erupção na pele (citomegalovírus) que cede pouco a pouco… Maria Lídia, nunca pensei ou sempre pensei: por contas e histórico infeccioso feito com o médico, tenho isso há dez anos. E pasme. Estou bem. Nunca tive medo da morte e, além disso, acho que Deus está me dando a oportunidade de determinar prioridades. E eu só quero escrever. Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto criativo tipo Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard. E estou cercado de anjos. Minha irmã Cláudia — sempre a mais brava e bela — veio de POA. Ficou dois dias. Todos da família lidam bem com a coisa. Nair, a espantosa, não ficou nada chocada: já sabia… só ela sabia. Mas nunca duvide de mães. E amigos ótimos, visita todas as tardes, muito amor, maçãs e chocolates.

Ganhando alta aqui, mais uma semana, vou para POA. Quero ganhar forças para enfrentar Frankfurt e dois congressos na França em outubro/novembro. Não sinto nenhum rancor, nenhuma mágoa. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Passeio pelos corredores da enfermaria e vejo cenas. Figuras estarrecedoras. Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. Te amo muito. […] Beije Marijô por mim (adoro escrever Marijot).

Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga. Quero ajudar a tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino. Mas creia, estou equilibrado, sereno, e às vezes até feliz.

Muito amor, seu Caio F. (finalmente um escritor positivo!)

PS: Ouço muito Maria Callas, sobretudo a ária final da Butterfly, que Augusto me deu. Difícil ouvir outra coisa. PS: Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito in… Só choro às vezes porque a vida me parece bela (O sol. As cores. As coisas). Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo. Love”

A coluna Voos Literários prestou, durante o mês de fevereiro, uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu. Foram textos que lembraram a trajetória do autor como cronista, contista e dramaturgo.

O assunto está longe de esgotar-se. Caio vive. Nas redes sociais, em eventos em sua homenagem e tendo cada vez mais leitores na nova geração.

Foto:  Reprodução/Internet

Voos Literários

Mês Caio F. – Um arco-íris em meio a dias nublados

Flávia Cunha
19 de fevereiro de 2019

Fevereiro é mês de homenagem da coluna Voos Literários ao escritor e jornalista Caio Fernando Abreu. Já abordamos Caio F. como cronista e contista. A obra do Caio dramaturgo talvez não seja tão pop nas redes sociais mas representa uma parte significativa de seu legado. O autor tinha uma relação muito íntima com o teatro, tendo chegado a frequentar – sem concluir – o curso de Artes Dramáticas da UFRGS (o mesmo aconteceu com a faculdade de Letras).

Ainda muito jovem, Caio F. chegou a atuar nos palcos e tinha uma relação muito próxima com diretores, atores e grupos teatrais. Por isso, nada mais natural que seus textos fossem encenados em diferentes ocasiões. Caio escreveu predominantemente para o público adulto mas me deterei em um texto aparentemente ingênuo destinado às crianças: A Comunidade do Arco-Íris.

O espetáculo estreou em Porto Alegre em 1979, sob direção de Suzanha Saldanha. A Comunidade do Arco-Íris é um refúgio para a Sereia, a Bruxa de Pano, o Soldadinho, a Bailarina, o Mágico e Roque, um guitarrista de rock n’roll. Todos vivem em harmonia nesse local idílico em meio à Natureza.

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Apesar de ter passado a vida garantindo não gostar de crianças (a quem chamava de “crionças”), Caio conseguiu abordar com habilidade para o público infantil assuntos complexos como ecologia, democracia e guerra, inserindo-os dentro da trama de forma convincente.

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Um exemplo dessas sacadas do autor em fazer conexões da fantasia com o mundo real é o momento dos personagens  explicarem porque resolveram morar na Comunidade. A Sereia aproveita para fazer uma crítica à falta de cuidado de empresas com o descarte de resíduos no meio ambiente:

– Eu estava cansada da poluição. Vocês sabem, essas indústrias e fábricas que vivem derramando porcarias nos rios e mares. Os meus primos peixes, coitados, estavam morrendo todos. Eu vivia suja de óleo. […] Agora, aqui, moro numa lagoa limpinha e sem poluição nenhuma.”

O Soldadinho justifica sua saída do Reino dos Homens por preferir a paz:

– Porque eu não tinha vocação nenhuma pra guerra. E lá tem guerra o tempo todo. Bombas, tanques, as pessoas se matando, um horror. O meu sonho era ser jardineiro. Aqui eu posso ter meu regador e molhar as flores todos os dias. Melhor do que ficar matando gente por aí, não é?”

Outro momento do enredo em que Caio F. aproveita para abordar cidadania com a criançada é depois da confusão provocada pela chegada ao local de 3 agitados macacos, que pedem para morar na Comunidade, porque não aguentam mais a bagunça da cidade. Os moradores da Comunidade do Arco-Íris demoram para chegar a um consenso, até surgir uma ideia:

 

SOLDADINHO – Desculpe, mas tenho uma solução democrática.

BRUXA – Demo o quê?

SOLDADINHO – De-mo-crá-ti-ca. Todo mundo tem direito de dar sua opinião. A maioria vence. Vamos votar?

OS TRÊS [macacos] – Isso mesmo! Democracia, queremos a democracia!

MÁGICO – Acho que é a solução mais honesta.”

A sugestão, banal para nossos olhos do século 21, pode ser vista como um pouco subversiva, já que em 1979 ainda estávamos vivendo sob um regime ditatorial no Brasil e nem todos os adultos achavam que a democracia era “a solução mais honesta” para o país.

A Comunidade do Arco-Íris tem uma reviravolta interessante em seu desfecho, mas não vou estragar a surpresa para quem ficou interessado em sua leitura. A obra foi lançada recentemente em uma versão ilustrada mas também pode ser lida também no livro Teatro Completo.

De 1979 até os dias atuais, o texto para teatro infantil de Caio F. ganhou diversas montagens, demonstrando a importância das temáticas abordadas. E também, o quão pouco evoluímos, por exemplo, no descaso de empresas com o meio ambiente (vide o descaso da Vale que resultou na tragédia de Brumadinho, só para ficar no episódio mais recente). E a democracia, exaltada pelos moradores da Comunidade do Arco-Íris, vem sendo constantemente ameaçada em pleno 2019, com muitos militantes dos direitos humanos tendo que autoexilar-se, com medo de serem mortos como Marielle Franco. Em momentos de desesperança, resta-nos a aposta nas futuras gerações. E é por isso que textos como esse de Caio F. são indicados sem moderação para a criançada.

Para fechar o mês de homenagens a Caio Fernando Abreu, na semana que vem recordaremos um dos hábitos mais célebres do autor: a escrita de cartas para amigos e familiares.

Foto: Darren Lewis / Public Domain Pictures

 

Voos Literários

Mês Caio F. – Sobrevivendo ao mofo

Flávia Cunha
12 de fevereiro de 2019

Em fevereiro, a coluna Voos Literários está prestando uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu, falecido em fevereiro de 1996. No primeiro texto, abordamos Caio F. como cronista. Porém, é impossível dissociar o autor do legado deixado por seus contos, em especial do livro Morangos Mofados, lançado em 1982. O nome da obra é uma referência a Strawberry Fields Forever, dos Beatles.

O livro é dividido em 3 partes, O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados (o conto-título em que um personagem solitário acredita ter uma doença grave, por sentir na boca um gosto acentuado da fruta mofada).

Um dos textos essenciais dentro desse livro é Os Sobreviventes, a história de dois ex-militantes do combate à ditadura militar no Brasil.

A partir do relato da personagem feminina, vemos todo o sonho de uma geração de jovens idealistas que tiveram que adaptar-se ao “sistema” para, assim, sobreviver.   Uma das primeiras pessoas a perceberem a qualidade literária da obra foi  a crítica literária e escritora Heloísa Buarque de Hollanda. O artigo Hoje Não é Dia de Rock publicado no Jornal do Brasil ainda na época do lançamento de Morangos Mofados foi tão emblemático que posteriormente foi incorporado a muitas reedições do livro.   No trecho abaixo, Heloísa destaca a importância do conto Os Sobreviventes dentro do conjunto de contos:

 Não há dúvida de que Caio fala da crise da contracultura como projeto existencial e político. […] Mas, insisto, a originalidade do seu relato nasce do partido que toma como autor e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de “sobreviventes” (que dão nome ao conto-chave do livro). Aqueles sobreviventes “vagamente sagrados” de Marx, Marcuse, Reich, Castañeda, Laing: “Bolsas na Sorbonne, chás com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, little darling-, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa sem conseguir engolir nem cuspir fora este gosto azedo na boca”.

 

A maior ironia talvez seja que nós, leitores brasileiros do século 21, estejamos, como os personagens do conto, tendo que lidar com militares no poder (ainda que agora seja pela via democrática das eleições). Como não ter um desencanto pelo momento atual? Como ter forças para seguir em frente?

Caio F. em sua sabedoria da década de 1980 de Os Sobreviventes, nos ensina:

[…] te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza […]”

Caio, tentaremos por aqui sobreviver da melhor forma possível. E seguiremos tentando lutar, com uma fé gigante em um futuro com mais Arte e menos armas.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários fará um resgate de Caio Fernando Abreu como dramaturgo, a partir da análise de A Comunidade do Arco-Íris, uma peça teatral infantil com abordagem ecológica.

 

Voos Literários

Mês Caio F. – A herança maldita da Ditadura

Flávia Cunha
5 de fevereiro de 2019

A coluna Voos Literários fará de fevereiro um mês para reverenciar o legado do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu. Gaúcho com projeção nacional e internacional (com edições especiais de seus livros para pelo menos 18 países além do Brasil), Caio F. como gostava de assinar em suas correspondências pessoais, partiu desse plano no já distante 25 de fevereiro de 1996. Escritor e cronista que acompanhava o seu tempo mas com o talento de mostrar-se eterno em suas reflexões, a obra de Caio é um prato cheio para podermos fazer comparações com o momento atual.

Se vivo fosse, não seria difícil imaginarmos como seus textos seriam enfrentativos (termo que ele gostava muito de usar) em relação à conjuntura sociopolítica brasileira do século XXI, com tanto conservadorismo, caretice e hipocrisia no ar.

Mas ao invés desse exercício de “acheologia”, prefiro mergulhar em um texto de Caio F. escrito na retomada do período democrático, após a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No panorama atual, em que figuras importantes do governo federal defendem cada vez mais sem pudores o revisionismo histórico em relação ao golpe militar, é importante analisarmos com cuidado o teor da crônica Um Prato de Lentilhas, que integra a excelente coletânea A Vida Gritando nos Cantos.

No texto publicado originalmente pelo Estado de São Paulo em 18 de fevereiro de 1987, o Caio-cronista faz um apelo aos governantes para que prestem atenção na situação crítica enfrentada pelo povo naquele período:

[…] Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se pode se chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nessa terra? Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? […] Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. [….] Em qualquer país decente (eu disse decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar – no braço, no dia a dia, o mínimo essencial para não morrer. […] Suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu to cobrando meus direitos. Porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. […] E não venham nos pedir paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados pra ter essa coisa mansa chamada paciência Era Brecht que dizia: ‘Trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral somente após comer.’ […] Quero meu futuro. Quero meus sonhos. […] Pra quem – desde que roubaram a minha juventude em 1964 –  eu posso reclamar?”

Após a leitura desse trecho da crônica, você aí pode argumentar: mas Caio Fernando Abreu estava se referindo ao governo Sarney, não tem nada a ver com a ditadura militar… Porém, assim como muitos atribuem a crise financeira enfrentada por Temer pós-impeachment de Dilma e agora por Bolsonaro à “culpa do PT, herança do PT”, como não pensar que o mesmo ocorreu a partir de 1985 com a saída dos militares do poder? O Brasil não era uma potência econômica com governantes fardados e virou um caos financeiro imediatamente após a entrada dos civis no governo. Por mais que os revisionistas de plantão tentem negar, a ditadura militar deixou como herança não apenas um rastro de tortura e censura, mas também uma dívida grande que foi enfiada goela abaixo dos brasileiros junto com a sonhada democracia. Meu conselho para quem encontrar pelo caminho alguma viúva da ditadura é mostrar textos como esse de Caio F., em que a desilusão pós-regime militar é palpável e inegável.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários analisará o teor contemporâneo do mais cultuado livro de Caio F., Morangos Mofados.  

Foto: Reprodução/Internet

Voos Literários

Quem duvida das ameaças feitas a Jean Wyllys?

Flávia Cunha
29 de janeiro de 2019

Quando saiu a notícia na Folha de São Paulo de que o deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, havia desistido de assumir o terceiro mandato e decidido por um auto-exílio em local ignorado no Exterior, meu coração se encheu de tristeza. Minha reação foi de alteridade. Tentar me colocar no lugar de um parlamentar de esquerda, assumidamente gay, que enfrentava há anos hostilidade e ameaças pesadas. Entre meus amigos, multiplicavam-se os comentários de apoio, perplexidade e compaixão.

Mas aí comecei a ver as reações de quem não concorda com Jean. “Não vai fazer falta”. “Já vai tarde.” O escárnio vinha com justificativas ideológicas ou com críticas – sem embasamento – à sua atuação como deputado. Mas sabemos que, em grande parte das vezes, o que existe mesmo é homofobia. Jean afronta os conservadores apenas por existir, como em geral ocorre com a população LGBT no Brasil. Não ser heterossexual  parece ser uma ofensa aos cidadãos de bem, que não se constrangem em sair por aí destilando veneno e ódio supostamente em defesa da família, dos bons costumes e da deturpação de preceitos religiosos.

Pessoalmente, considerei o pior comentário o de que as ameaças relatadas por Jean “deviam ser mentira”, mesmo após a execução da vereadora Marielle Franco, do mesmo partido, em 2018 (Marielle, presente!). Me parece que nada disso importa para quem tem o coração endurecido pelo preconceito.

Recorro ao próprio Jean Wyllys, no livro Tempo Bom, Tempo Ruim, de 2014, para tentar entender as causas desse cenário devastador que enfrentamos atualmente.

No capítulo Oriente-se, Rapaz, o agora ex-deputado relata o momento em que abriu o jogo sobre sua sexualidade com a mãe, aos 15 anos, e a reação dela, de ter medo de que o futuro do filho não fosse feliz:

Ela não estava totalmente enganada: num país preconceituoso como o nosso, há uma dificuldade maior para os homossexuais alcançarem a felicidade; todavia, parece-me mais difícil viver na vergonha, fechado no armário. À medida que nos assumimos gays, colocamos em questão a heteronormatividade vigente. Passamos da vergonha para o orgulho, ainda que não definitivamente: há quem se encontre no início desse processo, há quem esteja mais avançado, mas a verdade é que essa passagem nunca se dá por completo.  Expliquei à minha mãe que eu era um homem honrado e que ainda lhe daria muito orgulho, independentemente de minha orientação sexual. Depois dessa conversa, a confiança que ela me tinha aumentou, a ponto de transferir para mim a responsabilidade que deveria ser de meu pai — a função de ‘homem da família’.”

Cabe destacar que Jean Wyllys, oriundo de uma família pobre, estudou e chegou ao nível da pós-graduação, conquista alcançada por uma parcela ínfima da população brasileira. Se fosse heterossexual, certamente seria um exemplo de vencedor para a tradicional família brasileira. Mas como foge da norma vigente, é visto como uma ameaça e, por isso, enfrenta tantas críticas nas redes sociais.

Reproduzo na íntegra o capítulo Cultural Digital do Ódio, por considerar que esclarece muito o que acontece atualmente com o próprio autor do livro:

É chocante imaginar que por trás de sites, blogs, perfis de redes sociais e comentários que disseminam o ódio, a intolerância e o desrespeito, pode haver homens e mulheres que se apresentam como ‘gente de bem’ no espaço público, mas que escondem seus esqueletos no armário. Entretanto, o espaço virtual é feito por pessoas; é de se esperar que elas levem para lá também o que têm de pior. Sim, pois racismo e homofobia são manifestações daquilo que alguns homens e mulheres têm de pior: a vontade de negar a humanidade do outro, o desejo de exterminar o diferente. É preciso estar atento aos conteúdos veiculados na internet, porque o que parece uma brincadeira inócua pode ser a base ideológica para um ato criminoso, como tantos que temos visto por aí.

A afirmação, por parte dos homofóbicos, de que a ofensa aos LGBT corresponde ao exercício de sua liberdade de expressão, garantida como um direito, é uma falácia das mais perigosas que há. Viver em sociedade significa abrir mão daquela parte da liberdade individual que ameaça o bem-estar coletivo, ou, dito de maneira simples, há um limite para a liberdade individual e para a liberdade de expressão, que é a preservação do social e da convivência livre entre pessoas diferentes. Ofender uma pessoa por conta de sua orientação sexual ou gênero é ofender a dignidade da pessoa humana, cuja preservação está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecida pelo Brasil. Claro que, individualmente e num espaço reservado, uma pessoa pode alimentar seus ódios, se assim desejar; porém, ela não pode expressá-los publicamente, ou, se quiser fazê-lo, terá de pagar um preço por isso.”

Espero que Jean Wyllys tenha forças para seguir adiante, mesmo com tantas ameaças a sua vida e a de sua família. “Se fere qualquer existência, serei resistência”, diz uma frase propagada nas redes sociais. É uma comprovação de que a Internet pode ser usada para disseminar amor e nos proteger do ódio. Certamente, não estou sozinha na luta por uma sociedade com menos violência e discriminação, o que me conforta nesses dias difíceis para quem defende os direitos humanos e a igualdade.

Foto:  Cleia Viana/Câmara dos Deputados

 

 

 

Voos Literários

Uma merecida homenagem a Edgar Allan Poe

Flávia Cunha
22 de janeiro de 2019

“O romance policial é especialmente popular em momentos de inquietação, ansiedade e incerteza, quando a sociedade se depara com problemas que nem o dinheiro, nem as teorias políticas, nem as boas intenções parecem capazes de resolver e aliviar.”

Segredos do romance policial
P. D. James

O trecho acima demonstra o quanto esses enredos podem ser uma saída catártica para a atual conjuntura brasileira. E nada mais justo do que homenagear o criador desse gênero, destacando a realização de um evento temático realizado no último dia 19 em Porto Alegre. A data marca os 210 anos de nascimento do escritor-norte americano.

HorrorCon: Edgar Allan Poe foi um debate aberto abordando a obra do autor e sua influência na literatura, no cinema, música e cultura pop. E a coluna Voos Literários convidou um dos organizadores desse evento, Lupus Wolfang, para explicar melhor o que foi a atividade:

Edgar Allan  Poe é imortal, como as memórias de suas amadas etéreas ou o bater das asas de seu corvo. Seu trabalho segue influenciando gerações mesmo 200 anos após seu nascimento.

Os Loremasters prezam pela difusão cultural acima de tudo. Nossos eventos sempre visam esse objetivo e procuramos propagar essa difusão da maneira mais imersiva dentro de nosso alcance. E que melhor oportunidade de realizar essa imersão que fazermos um evento na data de seu aniversário?

Sempre foi um grande sonho fazermos um grande encontro na data do aniversário de Poe. Dessa vez, com as parcerias certas (o Mondo Cane, a autora Amanda Leonardi e os professores e pesquisadores Claudio Zanini e Elaine Indrusiak), esse sonho finalmente tornou-se realidade.

Fizemos juntos uma Descida ao Maelstrom, fofocamos sobre o Curioso Caso do sr. Valdemar, futricamos nas tábuas sob as quais dizem haver um Coração Delator e o fizemos sob a influência de um grande Barril de Amontillado… tudo isso antes que fosse tarde demais e viesse um Corvo dizer ‘Nunca Mais’!”

Para quem não pôde comparecer sentir o clima do evento, achei interessante finalizar esse texto mostrando a lista de drinques temáticos criados no Mondo Cane Bar especialmente para o evento em homenagem a Poe.

Torço para que mais eventos de homenagens a escritores sejam promovidos por aí. É de interesse de fãs de determinados autores mas também são uma forma de despertar o gosto pela leitura em não-iniciados.

Foto: Estátua de Edgar Allan Poe em Boston / Stefanie Rocknak

 

Voos Literários

Vamos ligar o f*da-se?

Flávia Cunha
15 de janeiro de 2019

“A futilidade é uma arma essencial para a sobrevivência nestes hard times.”

A frase de Caio Fernando Abreu é um dos meus mantras atuais. Precisamos de momentos de escapismo para conseguir levar a vida nessa conjuntura sociopolítica. As notícias ruins jorram à nossa frente e contaminam nosso dia a dia e é difícil fugir e alienar-se quando estamos sempre conectados.

Para preservar a minha saúde mental, tenho criado situações de pura futilidade, sem nenhum remorso. Do ponto de vista literário, desde a campanha política de 2018 tenho me jogado na leitura de obras “menores” e experimentado até um gênero visto com desprezo pelos intelectuais: autoajuda.

Com uma ressalva. O livro pelo qual eu me apaixonei é de “anti autoajuda”. A Sutil Arte de Ligar o F*da-se, de Mark Manson, nos alerta, por exemplo, que não somos tão especiais como imaginamos. E é isso é ótimo porque nos tira uma carga de responsabilidade imposta por nós mesmos. É difícil ser genial, afinal se todos fossem excepcionais o conceito por si só perderia sentido.

Contextualizando para o nosso Brasil atual, meu capítulo preferido é Rejeição Faz Bem:

Como extensão de nossa cultura positiva/consumista, muitas pessoas foram ‘doutrinadas’ na crença de que devem tentar concordar e aceitar o máximo possível. Este é um dos pilares de muitos dos livros que pregam o pensamento positivo: abra-se para as oportunidades, aceite, diga sim a tudo e a todos, e por aí vai.”

Esse trecho me fez refletir sobre que nem sempre concordar e dizer “sim” é positivo. Vamos aceitar para sempre um emprego com chefe abusivo? Vamos rir da piada preconceituosa para evitar desconforto de quem acha que isso é humor? Vamos concordar com a opinião dos parentes que propagam ideias fascistas de higienização social e depois vão à igreja sentindo-se perfeitos cristãos?

O autor prossegue sobre o assunto nesse mesmo capítulo:

O desejo de evitar a rejeição a todo custo, de evitar o confronto e o conflito, o desejo de tentar aceitar tudo igualmente e de tornar tudo coerente e harmônico, é uma forma profunda e sutil de arrogância. Pessoas que pensam assim acham que merecem se sentir bem o tempo todo, aceitando tudo porque rejeitar algo pode causar desconforto a elas mesmas ou a outra pessoa. E como elas se recusam a rejeitar qualquer coisa, levam uma vida sem valores, egoísta e voltada para o prazer. […] A honestidade é um desejo natural da humanidade mas um de seus efeitos colaterais é nos obrigar a ouvir e dizer ‘não’. Desse modo, a rejeição aprimora nossos relacionamentos e torna a vida emocional mais saudável”.

Por isso, não dá para ser isentão nesse Brasil de ânimos tão acirrados só para ser o bonzinho da turma de amigos ou da família.  Claro que podemos escolher que batalhas valem a pena ser travadas. E em caso de verificarmos que o fascismo alheio é incorrigível, talvez o ideal seja darmos um tempo no contato com essas pessoas. 

Para ligar o f*da-se em 2019, precisamos estar de olho em nosso autocuidado e sobrevivermos com um mínimo de sanidade nesses ‘hard times’, como falava Caio Fernando Abreu.  

Foto:  Reprodução/Pinterest – Madonna, a rainha de ligar o f*da-se desde a década de 1980 

Voos Literários

Chimamanda e a polêmica do azul e rosa no Brasil

Flávia Cunha
8 de janeiro de 2019

A fala da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos sobre “meninas usarem rosa, meninos usarem azul” gerou uma repercussão negativas na Internet mas obteve uma ampla defesa por parte do eleitorado alinhado com o atual presidente. Porém, considero que essa declaração vai muito além de ser apenas uma bobagem ou cortina de fumaça para encobrir ações mais relevantes do governo, como já li por aí . Por trás do empolgado grito de Damares Alves está o conservadorismo, que é contrário às causas LGBT e feminista. É também a dinâmica do novo governo: usar os costumes como ferramenta de coerção dos “diferentes” e, ao mesmo tempo, agradar a uma parcela da população que se incomoda com quem é fora do padrão.

Vou falar aqui hoje do ponto de vista feminista, por acreditar que ele abarca o respeito e a igualdade, que é o que todas as pessoas com o mínimo de bom senso deveriam querer para a nossa sociedade.

Para abordar o assunto escolhi dois livros da aclamada escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que tem obras traduzidas para mais de 30 idiomas e é um fenômeno mundial na área editorial e no ativismo feminista.

Em Sejamos Todos Feministas, a autora faz uma reflexão necessária sobre como seria libertador para todos alcançar a igualdade:

[…] meninas poderão assumir sua identidade, ignorando a expectativa alheia, mas também os meninos poderão crescer livres, sem ter que se enquadrar em estereótipos de masculinidade.”

O livro é uma adaptação de um famoso discurso feito por Chimamanda em um TEDx e também foi musicado pela cantora pop Beyoncé.

INFÂNCIA FEMINISTA

Porém, já que ao explicar posteriormente sua fala a ministra brasileira tentou remendar dizendo que o uso de determinadas cores deve ser aplicado apenas durante a infância, vou me deter mais na obra Para Educar Crianças Feministas – Um Manifesto.

Esse livro da escritora nigeriana foi inspirado na carta a uma amiga que fez o pedido à autora de conselhos de como criar uma criança dentro dos preceitos do feminismo. (Lembrando que trata-se de educar para a igualdade e não de mulheres terem mais valor do que homens.)

Para Educar Crianças Feministas tem várias respostas que podemos aplicar para o discurso e visão de mundo arcaica de Damares Alves.

Sobre a polêmica azul x rosa no vestuário infantil, Chimamanda comenta, ao falar sobre a busca de uma roupa em uma loja:

Na seção das meninas, havia umas coisas pálidas espantosas, em tons de rosa desbotado. Não gostei. A seção dos meninos tinha roupas num azul forte e vibrante. Como achei que o azul ia ficar lindo em contraste com a pele morena dela — e sai melhor nas fotos —, comprei uma roupinha azul. A moça do caixa me disse que era o presente ideal para um garotinho. Falei que era para uma menininha. Ela fez uma cara horrorizada: “Azul para uma menina? Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa dualidade rosa-azul. […] Por que não organizar as roupas infantis por idade e expô-las em todas as cores? Afinal, todos os bebês têm corpo parecido.”

Mais adiante, na mesma obra, a autora comenta sobre as brincadeiras serem separadas por gênero, o que ela também considera inadequado:

Os brinquedos para meninos geralmente são “ativos”, pedindo algum tipo de “ação” — trens, carrinhos —, e os brinquedos para meninas geralmente são “passivos”, sendo a imensa maioria bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não por gênero. Já contei sobre a vez que fui a um shopping americano com uma menina nigeriana de sete anos e a mãe dela? A menina viu um helicóptero de brinquedo, uma daquelas coisas que voam com controle remoto. Ela ficou fascinada e pediu um. “Não”, disse a mãe. “Você tem suas bonecas.” E a menina respondeu: “Mamãe, é só com boneca que vou brincar?”. Nunca me esqueci daquilo. A intenção da mãe era boa, claro. Era bem versada nas ideias de estereótipos de gênero — meninas brincam com bonecas e meninos brincam com helicópteros. Agora me pergunto, um pouco sonhadora, se a menininha não teria virado uma engenheira revolucionária se tivessem dado a ela a chance de explorar aquele helicóptero.”

Para quem me lê aqui e têm crianças pequenas por perto, sugiro refletir sobre como a questão de gênero ensinada durante a infância pode refletir durante a idade adulta, influenciando nos relacionamentos amorosos e, como Chimamanda mencionou acima, nas escolhas profissionais.

A organização doméstica ainda é uma atribuição considerada exclusivamente feminina em diversos países.

Chimamanda aconselha como sua amiga (e todos que têm filhxs) deve agir para mudar essa situação:

Ensine a ela que ‘papéis de gênero’ são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa ‘porque você é menina’. ‘Porque você é menina’ nunca é razão para nada. Jamais. Lembro que me diziam quando era criança para ‘varrer direito, como uma menina’. O que significava que varrer tinha a ver com ser mulher. Eu preferiria que tivessem dito apenas para ‘varrer direito, pois assim vai limpar melhor o chão’. E preferiria que tivessem dito a mesma coisa para os meus irmãos.”

E se mesmo depois dessa toda essas reflexões sobre gênero (que começa com a história do rosa e azul) vocês ainda acharem que o assunto é “bobagem”, atentem para os números de violência contra a mulher e para diversos feminicídios ocorridos nos últimos dias no Brasil. Por trás desse cenário de barbárie, há uma criação machista e patriarcal, que passa para os homens a mensagem de que suas esposas, namoradas ou amantes são sua propriedade e, portanto, não podem ter vontade própria e tomar a iniciativa de terminar um relacionamento, por exemplo.

Para mudar esse cenário, é preciso que comecemos, sim, desde a infância a mudar a mentalidade de meninas e meninos.

E, para encerrar o assunto de cor para menino ou menina, observem como nessa foto da infância de Chimamanda Ngozi Adichie ela está linda com um vestido AZUL e branco. Porque cor, meus amigos, nunca teve gênero.

O que existe por trás dessa polêmica é a normatização de comportamentos. Vamos lutar contra isso, porque também faz parte da resistência política darmos liberdade para cada um criar seus filhos dentro de seus valores, desde que eles não sejam perpetuadores implícitos de violência e preconceito, como os conservadores defendem.

Imagens: acervo/autora 

 

 

 

Voos Literários

O que o livro Bird Box tem a nos ensinar para 2019

Flávia Cunha
1 de janeiro de 2019
ALERTA: O texto a seguir contêm SPOILERS sobre o filme e o livro Bird Box.

Bird Box, o filme, uma das sensações atuais da Netflix, vem dividindo opiniões e causando debates nas redes sociais, com muito memes e discussões a respeito do enredo. A principal reclamação é de o final não trazer explicações a respeito do fenômeno que leva a morte das pessoas na história.

Com tanto alarde, fui atrás do romance Caixa de Pássaros, livro de estreia do roqueiro Josh Malerman, cantor e compositor da banda High Strung. A leitura foi rápida, em apenas algumas horas, e gostei bastante do conteúdo.

Poucos dias depois, mesmo após receber diversos comentários negativos sobre o filme em uma enquete informal feita no meu perfil pessoal no Facebook, fui assistir ao longa-metragem estrelado por Sandra Bullock, em busca de comparações e analogias. 

Acabei concordando com meus amigos virtuais: o filme é fraco e com um roteiro desconexo. Além disso, existem mudanças sem justificativa em relação ao livro. Aliás, todo o andamento do enredo é diferente. Muitos personagens do filme não existem no livro, as situações que envolvem a morte da irmã da protagonista são completamente diferentes, as circunstâncias que levam os personagens a se encontrarem na casa onde se passa a maior parte da trama são distintas.

Mas a maior diferença e o que pretendo me ater nesse texto é ao ritmo. No livro, a personagem principal tem tempo para refletir e pensar no que aconteceu. As situações não se passam de forma atropelada como na adaptação cinematográfica. Os meses se passam sem que a irmã da personagem tenha morrido. As duas acompanham juntas a cobertura televisiva sobre as mortes misteriosas e também os boatos que circulam a respeito do assunto na Internet.  

A barriga de Malorie já está aparecendo. Cobertores tapam todas as janelas da casa. A porta da frente nunca fica destrancada nem aberta. Relatos de acontecimentos inexplicáveis têm surgido com uma frequência alarmante. O que antes era manchete duas vezes por semana agora acontece todos os dias. Os porta-vozes do governo  são entrevistados na TV.

Com histórias vindas de todos os cantos, do Maine à Flórida, ambas as irmãs estão tomando precauções. […] Novas histórias aparecem na Internet de hora em hora. É a única coisa sobre qual as pessoas falam nas redes sociais e o único tema abordado nas páginas dos jornais. Sites recém-criados dedicam-se inteiramente a acompanhar o assunto.

[…]

Depois de três meses vivendo como ermitãs, o pior medo de Malorie e Shannon se concretizou quando seus pais pararam de atender ao telefone. E também deixaram de responder aos e-mails.”

Logo após a perda do contato com os pais, Malorie enfrenta a morte da irmã, que ocorre dentro da casa das duas. Aparentemente, o motivo é Shannon ter resolvido olhar para a rua, o que resulta em atitudes extremas, como tirar a própria vida.

A quina da janela está exposta. Uma parte do cobertor, solta, está pendurada. Malorie desvia o olhar rapidamente. Não há movimento no quarto, e um zumbido fraco vem da TV ligada no andar de baixo.

–  Shannon.

No fim do corredor, a porta do banheiro está aberta. A luz, acesa. Malorie vai até lá. Então prende a respiração e se vira para olhar.  Shannon está no chão, o rosto virado para o teto. Há uma tesoura enfiada em seu peito. Sangue formando uma poça nos ladrilhos do chão.”

Após a morte da irmã, há a decisão da protagonista, por impulso, de sair de casa, por não conseguir enfrentar aquela situação sozinha. Ela foge, de olhos tapados, para um refúgio anunciado nos classificados, quando ainda existiam jornais em circulação em sua cidade.  Ou seja, existe um motivo para reunir um grupo de pessoas que não se conheciam antes em um determinado local, já preparado para enfrentar aquela situação-limite, com alimentos estocados, por exemplo.

Com esse enredo melhor desenvolvido no livro do que no filme, fica mais fácil de entender porque as pessoas já sabem que precisam usar vendas nos olhos ao sair nas ruas. Houve tempo para essa preparação e avisos do governo nesse sentido. Por isso, a história torna-se muito mais verossímil.

Ninguém torna-se um sobrevivente da noite para o dia. O resiliência vem aos poucos, as formas de defender-se dos perigos também. Conforme algumas análises que li por aí, o enredo de Bird Box seria na verdade uma alegoria sobre a humanidade preferir tapar os olhos para os próprios medos. Outra interpretação possível é de um enredo que trate indiretamente sobre os temas da depressão e do suicídio, que vem atingindo níveis alarmantes na atualidade.

Porém, a leitura que fiz de Caixa de Pássaros – o livro – é de uma história de coragem.

De como uma mulher sozinha com duas crianças consegue enfrentar diversas dificuldades até libertar-se do sofrimento, como remar, em um rio, de olhos totalmente fechados.

Vale esclarecer que, no livro, Tom morre junto com os outros personagens da casa, deixando Malorie como única responsável pela criação de dois bebês em meio à possibilidade de ataque a qualquer momento das tais criaturas misteriosas. Essa desconexão com a realidade pela solidão seria o motivo dela não ter dado nome às crianças, que são chamados apenas de Menina e Menino.

A história dessa mulher também pode ser interpretada como uma jornada de superação, bem o que precisamos para encarar os desafios desse ano que começa nessa terça-feira.

Não podemos esquecer que 2019 será difícil para os brasileiros que acreditam em justiça social, cidadania e direitos humanos.

Acredito, porém, que enfrentaremos esse rio caudaloso de chorume político sem precisar usar vendas. Já enxergamos os monstros e sobrevivemos. Seguiremos lutando e resistindo!

 

Voos Literários

Jesus e os refugiados

Flávia Cunha
25 de dezembro de 2018

Agora que as celebrações de Natal passaram e a ceia virou só a lembrança de exageros gastronômicos típicos dessa época do ano, vamos a um assunto indigesto: o nascimento de Jesus, tal como está na Bíblia, nada tem a ver com presentes caros e pratos sofisticados.

Cristo, em sua trajetória expressa nas sagradas escrituras, pregava a simplicidade e a defesa dos mais pobres. Trago o assunto à tona porque achei muito interessante uma foto de uma família de refugiados que circula pelas redes sociais. A postagem alerta que a família de Jesus era igual, ao ser obrigada a ir para outro país em busca de segurança, com a decisão de Herodes de matar todas as crianças para não ter seu reinado ameaçado.

A polêmica de se Jesus era ou não um refugiado surgiu em plena campanha eleitoral, durante a entrevista do agora presidente eleito ao programa Roda Viva. Logo vieram textos de defesa a Jair Bolsonaro, alegando que não se pode misturar religião com geopolítica. (Interessante que a religião pode ser usada em outros contextos, mas para defender a boa acolhida a imigrantes de países pobres, não…)

Estou longe de ser uma especialista em teologia. Porém, é consenso que a Bíblia traz histórias de migrações e peregrinações pela região hoje conhecida como Oriente Médio.

Em um trecho do Velho Testamento, há uma passagem bem clara sobre o tema:

O estrangeiro resi­dente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.

Levítico 19: 34

Se a intenção para os próximos dias não é se meter em discussões bíblicas, o livro Mistério de Natal revisita o nascimento de Cristo de uma forma poética e envolvente, sem deixar de lado aspectos históricos. O enredo criado por Jostein Gaarder (mesmo autor de O Mundo de Sofia) conta a história de um menino que acompanha um grupo de peregrinos que voltam no tempo para homenagear um recém-nascido muito especial.

Encerro esse texto com um pequeno trecho da obra, com a fala de um dos Reis Magos:

Acima de tudo é importante ajudar os aflitos, os doentes, os pobres e os refugiados. Essa é a mensagem de Natal.”

Imagem: Pintura A Fuga para o Egito – Candido Portinari/Reprodução Internet