Geórgia Santos

A materialização coletiva da dor

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2023

Eu não lembro de como eu soube, mas eu entendi rápido. Em algum momento da manhã do dia 27 de janeiro de 2013 – cedo, muito cedo -, depois de tatear à procura do rádio de pilhas e do controle remoto da televisão, eu olhei através do vidro da janela da sala e lá estava: o estado inteiro havia sido tomado por algo que eu só consigo descrever como a materialização da dor.

 

Fogo. O incêndio da Boate Kiss começou quando o vocalista da banda Gurizada Fandangueira disparou um sinalizador de uso externo dentro do ambiente fechado. A espuma acústica pegou fogo. O local estava superlotado, sem ventilação e só havia uma saída de emergência. Homens com camisetas amarradas no rosto carregavam tantas pessoas quanto conseguiam e tentavam derrubar as paredes com marretas. Os bombeiros foram acionados e chegaram rapidamente, mas não davam conta de controlar a situação a tempo de salvar a todos.

Perplexidade. Era inacreditável que aquilo estivesse acontecendo. Jovens estavam morrendo. Mas quais?

Nomes. Alan, Alexandre, Alex, Alisson, Allana, Anas, André, Andressas, Andrieli, Andrise, Angelo, Ariel, Augustos, Bárbara, Benhur, Bernardo Bibiana, Brady, Brunas, Brunos, Camila, Carolina, Carlitos, Carlos, Cássio, Cecília, Clarissa, Crisley, Cristiane, Daniel, Daniela, Daniele, Danilo, Danrlei, David, Débora, Deives, Diego, Dionatha, Douglas, Dulce, Driele, Elisandro, Emerson, Emili, Ericson, Érika, Evelin, Fábio, Felipe, Fernandas, Fernandos, Flávias, Francieles, Gabrielas, Geni, Gilmara, Giovane, Greicy, Guido, Guilherme, Gustavos, Heitores, Helena, Helio, Henrique, Herbert, Igor, Ilivelton, Isabela, Ivan, Jacob, Jaderson, Janaína, Jennefer, Jéssica, João, Josés, Julia, Julianas, Juliano, Karin, Kellens, Kelli, Larissas, Laureane, Leandra, Leandros, Leonardos, Letícias, Lincon, Louise, Luanas, Lucas,  Luciane, Lucianos, Luís, Luisa, Luiz, Luíza, Maicons, Manoeli, Marcelo, Marcos, Marfisa, Maria, Marianas, Mariane, Marinas, Martim, Marton, Matheus, Maurício, Melissas, Merylin, Micheles, Miguel, Mirela, Mônica, Murilos, Natana, Natascha, Nathiele, Neiva, Octacílio, Odomar, Pâmela, Paola, Patrícia, Paulas, Pedros, Priscila, Rafaéis, Rafaela, Raquel, Rhaissa, Rhuan, Ricardos, Robson, Rodrigos, Roger, Rogérios, Rosane, Ruan, Sabrina, Sandras, Shaiana, Silvio, Stefani, Susiele, Taís, Taíse, Tanise, Thailan, Thaís, Thanise, Tiagos, Ubirajara, Vagner, Vanderlock, Vanessa, Victor, Vinícius, Viviane, Vitória, Walter e Wictor.

Incredulidade. Eu conhecia um dos “Roger”, o Roger Dall’agnol. Filho da Nilvete e do Adão. Ela é dona de uma Floricultura na minha cidade, Paraí. A gente não compra flores na Anil, compra na Nilvete. É nesse ponto que a materialização da dor começa a se tornar coletiva, quando as vítimas passam a ter nomes, pais, irmãos, famílias, empregos. Quando os mortos passam a ter vidas.

Amigos. O nome Renata não estava na lista, mesmo assim eu pensei nela, na minha melhor amiga. Ela me telefonou à tarde, eu acho, já exausta. Ela estava de plantão na Rádio Gaúcha naquele final de semana e, se não me engano, viajou à Santa Maria ainda nas primeiras horas da manhã. Ela, jornalista experiente, chorava muito. Assim como eu não via o nome dela replicado, ela imaginava como teria sido reconhecer o meu e chorava, agradecida e assustada. Choramos as duas, abraçadas de longe, materializando na voz a dor de dezenas de amigas que precisaram reconhecer o corpo das suas.

Dor. À época, eu também era repórter da Rádio Gaúcha. A mim coube acompanhar o destino dos sobreviventes hospitalizados na capital, naquele dia e nos meses subsequentes. Era uma tarefa que eu não gostava de cumprir, conversar com as famílias. Era invasivo. Mas, aos poucos, estabeleci uma relação de confiança com alguns dos parentes que eram, pouco a pouco, consumidos pela dor. Foi no Hospital Cristo Redentor que uma mãe pediu pra ser entrevistada. Ela queria falar ao vivo e assim foi.

Eu não sabia o que ela queria dizer, mas o rosto dilacerado pelo pavor indicava uma reação visceral, uma acusação, provavelmente. Talvez clamor por justiça. Mas ao aproximar a boca da espuma do microfone, a expressão facial foi suavizada. Aquela mãe, que já não estava inteira, só pediu uma oração. Só isso. Não cabia mais nada dentro dela além da necessidade de ter vivo o filho de 21 anos. Mas não adiantou. O filho faleceu naquele mesmo dia e o vazio era avassalador. Era a própria tristeza emaranhada na carne daquela mulher, que aos poucos se transformava em uma estátua de sofrimento. A dor se materializava diante dos meus olhos de novo, e de novo, e de novo.

Morte. Eu nunca esqueci aquele dia 27 de janeiro de 2013 e acho que ninguém vai esquecer, mas a Justiça não respondeu. Ninguém foi responsabilizado. Ninguém foi preso. E a materialização da dor jamais será erodida.

Cléber Grabauska

Pelé, o Rei de todo o mundo

Cléber Grabauska
30 de dezembro de 2022

Pelé foi Rei. Pelé foi lenda. Pelé foi espetáculo. Pelé foi tudo no mundo do futebol. E fora dele também. John Lennon, certa vez, disse que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Quem sabe, nessa comparação, Pelé não merecesse ser incluído?

Pelé fez mais de mil gols. Conquistou três Copas pelo Brasil. Dois Mundiais pelo Santos. Introduziu o futebol, ou melhor, o soccer nos Estados Unidos. É nome de estádio. Marca de café. Personagem de história em quadrinhos. Foi o primeiro jogador intercontinental. Parou uma guerra. E, certa vez, na Colômbia, fez com que o público expulsasse de campo o juiz que se atrevera a lhe mostrar um cartão vermelho. 

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Pelé virou adjetivo. Pois, se você é craque no que faz, as pessoas dizem: esse é Pelé. Nós, brasileiros, costumávamos dizer que Michael Jordan, por exemplo, era o Pelé do basquete

Pelé sabia o tamanho que tinha. Era recebido por presidentes, papas, reis e autoridades. Era garoto propaganda de praticamente tudo. De refrigerante a cartão de crédito. Mas também era simples e atencioso no trato com as pessoas. Não negava uma paradinha para tirar uma foto ou assinar um autógrafo. Para ilustrar um pouco dessa humildade, recordo uma história contada por um outro grande ídolo que tenho: o fotógrafo Lemyr Martins, um dos pioneiros da Revista Placar.

Em 1973, quando Pelé ainda jogava no Santos, Lemyr recebeu uma missão da Federação Holandesa de Futebol: fotografar o Rei com todas as camisetas das seleções que já tinham enfrentado os holandeses ao longo da história. Essa publicação seria lançada no ano seguinte para marcar uma data especial referente ao futebol nos Países Baixos.

Numa época em que não existia photoshop, nem recursos gráficos e técnicos que pudessem facilitar a vida do fotógrafo, Lemyr precisava da boa vontade do maior jogador de futebol de todos os tempos para cumprir a sua difícil empreitada.  Ou seja, Pelé precisava vestir, uma por uma, todas as camisetas que foram enviadas pela Federação Holandesa. Sabendo que não seria fácil, Lemyr se mandou para Santos. Naquele tempo, trabalhar numa revista como a Placar abria muitas portas, e uma delas era a do vestiário da Vila Belmiro onde Pelé se encontrava para uma sessão de massagens. 

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Lemyr falou com Pelé e o seu pedido foi atendido: depois de várias horas de ensaio, ele conseguiu fazer Pelé posar com os uniformes de todas as seleções

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Tem Pelé com o fardamento da Islândia, da Bélgica, da Tchecoslováqia, Noruega, Argentina e inclusive da Holanda. E todo orgulhoso do seu trabalho, Lemyr mostrou a prova: um Pelé todo de laranja. O uniforme da seleção que revolucionou o futebol, foi a grande sensação da Copa de 1974 e acabou eliminando o Brasil naquele mundial que foi justamente o primeiro sem Pelé.

Lemyr Martins mostra a fotografia que fez de Pelé com a camisa da seleção holandesa de futebol durante o Sarau do Futebol, em Porto Alegre / Foto: Gustavo Fogaça

Imagina, nos dias de hoje, quem faria isso? Quem seria capaz de uma gentileza desse tamanho? Por isso não se pode medir Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo e os craques atuais com a mesma régua de Pelé. 

Os tempos são outros. O futebol é outro. Hoje se tem mais velocidade, mais força e mais trabalho tático. Mas também existe o cartão amarelo, o vermelho e o VAR. Pelé jogou praticamente toda sua carreira em um período em que os árbitros não possuíam cartões amarelos e vermelhos. Pois a regra só foi instituída na Copa de 1970, no México. Ou seja, até ali, a caçada a Pelé liberada. Basta você ver o que aconteceu contra Portugal na Copa de 1966, na final da Libertadores contra o Boca em 1963 e até mesmo na semifinal de 1970 contra o Uruguai.

Pelé passou por cima de tudo isso. E tentar dimensionar a sua grandeza é algo que nenhum de nós vai conseguir. Nós, brasileiros, que já diminuímos a genialidade de Garrincha, transformando-o num fanfarrão de pernas tortas, não podemos cometer o mesmo tipo de injustiça com Pelé. 

Por favor, parem de comparar Pelé com Maradona, Messi, Mbappe ou quem mais surgir. Pelé é só um. Pelé é Rei. Pelé é o Rei de todo o mundo. Pelé é eterno. Pelé é o próprio futebol.

Geórgia Santos

Aquela voz tamanha

Geórgia Santos
9 de novembro de 2022

Na adolescência, o meu primeiro namoradinho ria de mim porque eu ouvia o que ele chamava de música de velho. Um bobo, ele. Ninguém era velho há 20 anos. Mas eu entendo de onde vinha o estranhamento. Naquele período da vida, eu só não ignorava meus contemporâneos quando me equilibrava em cima de um salto alto e me espremia dentro de uma minissaia.

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Sozinha, sem maquiagem, eu ouvia apenas Chico, Bethânia, Caetano, Gil e Gal

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Eu lembro de ouvir o sussurro de Não Identificado ao me apaixonar pela primeira vez, por esse mesmo namoradinho que preferia ouvir System of a Down, e não entender muito bem o porquê de aquela  canção me comover daquela forma. Eu lembro de ensaiar Canta Brasil com exuberância para a semana da pátria, tentando emular uma expressão comovida e uma beleza que só vem com a idade e a rebeldia.

Eu lembro de me esforçar para conseguir cantar Festa no Interior sem desafinar, com seus babados, xotes e xaxados e me frustrar por não ser a melhor cantora do país, ignorando qualquer possibilidade de, talvez, só talvez, ter estabelecido um padrão muito alto. Mas eu também lembro de me redimir quando foi a vez de cantar Samba Rasgado, aquele cantinho no coração que até hoje gosto de imitar. Afinal, quem é que não admira uma cabrocha bonita, cantando e sambando? Aliás, eu lembro do primeiro carnaval com álcool de que participei e todos cantavam Balancê. Tá bem, era uma versão menos nobre, mas lá estava Gal.

Eu lembro, ainda, de causar surpresa ao escolher Divino, Maravilhoso como a minha canção de formatura no Ensino Médio, porque naquela época não era preciso estar atento e forte. Mas eu sempre soube que se trata de uma canção atemporal, feliz ou infelizmente. Ou não é disso que precisamos agora?

Aliás, eu lembro de levar essa mesma canção para a faculdade, com os olhos firmes para este sol e para esta escuridão, e passar noites inteiras ouvindo ao lado do meu melhor amigo. Nós bebíamos e dançávamos e fumávamos riscando DVDs com o uso, sabendo e ao mesmo tempo ignorando que tudo era perigoso, que tudo era divino e maravilhoso. Ali eu lembro de também ouvir Gabriela e me empedrar, consciente de que nasci assim e serei sempre assim.

Eu lembro de pensar que queria que meu casamento fosse igual a Chuva, Suor e Cerveja. A gente se embala, se embora, se embola, só para na porta da igreja. A gente se olha, se beija e se molha de chuva, suor e cerveja. Eu lembro de ser arrebatada pela potência de Vaca Profana e amadurecer com o leite das assombrosas tetas. Assim como lembro de agora, de respeitar minhas lágrimas, mas muito mais minha risada. E eu lembro por causa da voz dessa mulher sagrada.

Mas eu entendo de onde vinha aquele estranhamento do namoradinho apenas hoje, porque naquela época eu não entendia. Não entendia porque nunca vi essas pessoas como anteriores à mim, mas como parte de tudo o que a gente é. No presente, não no passado. E Gal, bom, Gal jamais seria anterior à mim, porque sempre esteve no futuro, mais livre do que toda a minha geração, por isso aquela voz tamanha.

Ela cantou tudo e todos. Ela provocava aquele povo com casaco de general, cheios de anéis, aos mostrar a virilha no biquíni vermelho da capa de Índia, em 1973. Ela libertava todas as mulheres e afrontava o conservadorismo quando usava batom vermelho e cantava com um violão na mão e pernas abertas. Ela segurava a onda tropicalista no osso quando os outros doces bárbaros estavam exilados em Londres. Ela fumava o que queria nas dunas que ficaram com seu nome. Ela enfrentava o autoritarismo na base do grito, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Ela escancarava a hipocrisia com o seio à mostra enquanto conclamava o Brasil todo a mostrar a cara, em 94. Ela foi nossa primeira diva pop, a Gracinha, a Gaúcha do Giló. Gal foi Legal, Índia, Tropical, Baby, Profana, Bem, Mal, Barato, Total, Plural, Fa-Tal. 

Gal Costa morreu hoje, dia 09 de novembro de 2022, aos 77 anos. Eu queria fazer uma canção pra ela, singela, brasileira, mas não sei como. Por isso, escrevo uma ode com a minha voz adolescente, juntando pedaços do quebra-cabeças da minha formação emocional. Não sei, comigo ainda não vai tudo azul, mas contigo, Gal, vai tudo em paz.

Geórgia Santos

Parece que faz 200 anos

Geórgia Santos
7 de setembro de 2022

 

O Brasil sempre teve essa cara e esse jeito de terra prometida. Como é que diziam, mesmo? “Brasil, o país do futuro”. Eu sou cria da democracia, tenho a mesma idade da Constituição, então, para mim, é fácil ver de onde isso vem: da esperança. Afinal, gigante pela própria natureza, belo, forte, impávido, colosso. Um país de dimensões continentais em que a diversidade se converte em força. Todas as estações, múltiplos biomas, toda a gente pode ser feliz. Tem água, tem sol, tem comida, tem cor.

Os portugueses sabiam disso. Foram chegando e se sentindo em casa, como se ninguém morasse aqui. Batizaram uma terra de que não era deles, pegaram ouro amarelo, madeira vermelha que nos empresta o nome e foram retalhando a terra verde. Mal deixaram o azul. E como produto final da apropriação, a aparência de liberdade também foi obra de um tuga. Pedro Américo até que tentou pintar como um momento heroico, mas a História já revela que o Grito da Independência se deu em meio de uma viagem no lombo de um burro, sem casaca e durante um intenso desconforto intestinal de Dom Pedro I. Independência ou morte, disse ele, aflito e suado. Que começo glorioso. Um país que mantinha pessoas escravizadas declarado livre pelo filho do Rei que passaria a ser o Imperador. Tudo em casa.

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A partir daquele 7 de setembro, a aparência de Independência foi se expandindo

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Brava gente brasileira. O Hino da Independência anunciava que havia raiado a liberdade no horizonte do Brasil. Passados cem anos, parecia que o país era outro. Em 1922, parecia que a escravidão havia sido abolida e que as pessoas negras estavam livres da opressão, inclusive, do Estado. Parecia que a República havia sido proclamada. Parecia que o país era uma espécie de democracia. A Semana de Arte Moderna trazia o Abaporu de Tarsila para o centro desse Brasil em ebulição, que parecia à procura de si. Parecia, parecia, parecia. Em 1972, então, no Sesquicentenário da Independência, parecia ainda mais.

Era o tempo do “Milagre Brasileiro”, do “ninguém segura esse país”, dos “90 milhões em ação”, aquela coisa toda. E para celebrar os 150 anos da Independência, os militares organizaram um torneio de futebol que ficou conhecido como Mini-Copa. Mas as comemorações eram muito abrangentes. Pontes e viadutos foram batizados com o nome do primeiro Imperador; os selos brasileiros, que eram os mais feios do mundo, foram repaginados e transformados em pequenas obras de arte, com imagens da terra; também foi em 1972 que aconteceu a primeira transmissão colorida na televisão; e o governo investia forte em propagandas belíssimas. Teve até filme com o galã Tarcísio Meira no papel principal. E não parou por aí, os despojos de Dom Pedro I foram trazidos de volta para o Brasil naquele ano – não, trazer o coração não foi novidade. Tudo parecia uma festa. Parecia, parecia, parecia. Só parecia.

Porque em 1872, quando se celebrou o cinquentenário do grito do Ipiranga, o primeiro censo realizado no país mostrou que as pessoas escravizadas respondiam por 15% da população.  O Brasil era quase todo católico e analfabeto. Nos 50 anos seguintes, pouco havia mudado de verdade. Os negros que haviam sido escravizados e os seus descendentes foram atirados à própria sorte e a proclamação da República foi um golpe que só permitia existir a democracia do café com leite. Mulher não podia votar, analfabeto não podia votar. Ditaduras se sucederam e em 1972, quando se cantava a marchinha de carnaval do sesquicentenário, a Ditadura Militar cassava mandatos, assassinava quem se opunha ao regime e esquecia das pessoas.

Mas a brava gente brasileira resistiu e em 1988 o Congresso paria a Constituição Cidadã. E parece que estamos em uma democracia há mais de 30 anos. Parece. Mas uma história construída na base de aparências é forjada por detrás de uma cortina muito frágil. Sempre há rasgos e buracos no pano por onde se pode espiar e enxergar a realidade.

Hoje, por exemplo, enquanto o Presidente da República chama a primeira-dama de princesa e grita da maneira mais vulgar possível que é “imbrochável”, os trabalhadores se levantam no Grito dos Excluídos para perguntar “200 anos de (In)dependência para quem?”. Aliás, na capa dos principais sites de notícias do país, há três tipos manchetes: “Bolsonaro usa 7 de Setembro para fazer discurso de campanha eleitoral”; “Ato na Paulista tem ataques ao STF e faixas antidemocráticas”; “Grito dos Excluídos distribui café da manhã a 5 mil sem-teto em SP”. Enquanto o Presidente da República sequestra os símbolos nacionais para satisfazer o delírio ufanista do séquito de seguidores, há mais de 33 milhões de brasileiros passando fome.

Enquanto eu paro para escrever sobre a Independência do Brasil, o incumbente se esmera para esfacelar a aparência da democracia no palanque. Basta olhar, sempre há uma brecha. A gente só precisa escolher se vai espiar pela fresta ou remendar o rasgo antes disso. A gente só precisa escolher se vai olhar pra os problemas reais do país, por mais dolorosos que sejam, ou viver mais 200 anos de aparências.

Geórgia Santos

A fé é morta

Geórgia Santos
31 de outubro de 2021

Uma mãe de três me disse que matou a fé. Para uma mãe de três que só pode beijar um, é mesmo difícil acreditar no abstrato. É praticamente impossível acreditar no intangível quando dois filhos recém saídos da adolescência são presos injustamente. E eu sei que esse é o grande teste da fé, acreditar sem evidências. Devoção incondicional. Mas quando a condição é saber que um dos teus morreu sob custódia do Estado, talvez seja pedir demais. Por que manter viva, a fé, se um dos guris já não está?

O que ela disse ficou comigo. Horas depois da entrevista, eu ainda digeria a morte da fé daquela mãe e tomava o luto para mim. Primeiro, porque não foi exatamente um sentimento novo. Eu sempre questionei a natureza dessa crença sem limites que me parece incompatível com o jornalismo. Quando eu ando com fé, é como se eu fosse menos profissional por acreditar em algo não verificável. Segundo porque eu não vivi as tragédias de Maria*, mas o Brasil, sim.

Os brasileiros estão sufocados por uma pandemia que já soma 600 mil mortos no país. Há, por aí, um vírus açodado em um lugar em que as autoridades não se importam. Os alimentos estão caros o suficiente para ter gente na fila do osso. Meninas não frequentam a escola porque não tem acesso a absorventes. Jovens são encarcerados porque pretos. Além de toda a sorte de ódio destilada sob a forma da liberdade de expressão quando o brasileiro não é livre nem para viver. Por que, então, manter a fé viva, se o Brasil já não está?

Veja bem, essa não é uma tentativa de reeditar Nietzsche, que matou Deus. Gott ist tot, disse ele. O que eu digo é muito pior. Porque eu não estou matando Deus diante da racionalidade iluminista. A morte da fé é prática, não é filosófica. O sentido da fé foi esvaziado porque, simplesmente, é pedir demais.

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Por que alguém precisa acreditar no invisível, se tudo o que se faz, no Brasil, é sofrer?

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Depois de quatro anos, os dois filhos da mãe de três foram absolvidos pela justiça. A vida deles mudou para sempre e, pra sempre, ela só poderá beijar dois. Mas como uma católica oscilante, foi o bastante para ressuscitar a fé. Ela respondeu à minha pergunta, semanas depois do primeiro contato, dizendo que a gente precisa acreditar no invisível porque, no Brasil, fé é sobrevivência. Se a gente não acreditar no intangível, sobra a morte. Gil bem que avisou que a fé tá na mulher, num pedaço de pão, na maré, na lâmina de um punhal, na luz, na escuridão, na manhã, no anoitecer. A fé tá viva e sã e tá pra morrer.

Talvez o Brasil precise menos de Nietzsche e mais dos seus. A fé não costuma falhar, dizem.

 

Imagem original: Mathias Faust / Pixabay

Colagem: Geórgia Santos

Geórgia Santos

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Geórgia Santos
4 de agosto de 2021

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Geórgia Santos, PodCasts

BSV Especial Coronavírus #45 O abandono da cultura

Geórgia Santos
17 de fevereiro de 2021

Chegando perto da marca de um ano desde a primeira morte por coronavírus no Brasil, resolvemos mostrar, com depoimentos e entrevistas, como essa pandemia afetou as pessoas de forma diferente. No último episódio, mostramos a situação precária dos motofretistas e entregadores de delivery.

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Nesta semana, vamos falar sobre os profissionais da cultura
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Os artistas são tratados por vagabundos pelo governo federal e apoiadores. Não é segredo para ninguém. Jair Bolsonaro disseminou muita desinformação sobre artistas e a Lei Rouanet – antes, durante e depois da eleição. Já presidente, acabou com o Ministério da Cultura. O terceiro secretário, Roberto Alvim, caiu porque fez um discurso praticamente plagiando Goebbels. Sim, o ministro da propaganda de Adolf Hitler. Depois, veio Regina Duarte com a missão de “pacificar” a relação entre a classe artística e o governo federal. Não funcionou.  Agora temos Mário Frias, o eterno galã de malhação. Apagado e que, para variar, também não faz absolutamente nada pela cultura do país ou pela classe artística.

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E com este governo ATENTO ao setor, não é surpresa que os trabalhadores da cultura estejam entre os profissionais que mais sofreram o impacto financeiro causado pela pandemia de coronavírus no Brasil
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E nós não estamos falando de Caetano, Zeca Pagodinho ou Roberto Carlos. Estamos falando de milhares de artistas, roadies, técnicos, operadores de som e luz e até motoristas que dependem da indústria da cultura para sobreviver e foram abandonados.

Para compreender melhor o cenário, ouvimos a assessora Bebê Baumgarten; a produtora cultural Luka Ibarra; o ator Alvaro Rosa Costa; e a cantadora Gabriela Lery.

Participam as jornalistas Geórgia Santos e Flávia Cunha, que também é responsável pela produção, ao lado de Igor Natusch. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #45 O abandono da cultura
Cléber Grabauska

Maradona entre o céu e o inferno

Cléber Grabauska
26 de novembro de 2020

Eu não sei se Maradona vai para o céu ou para o inferno. Caso seja enviado ao Paraíso, certamente fará reivindicações e reclamará da rotina e dos horários. Assim como fez na Copa de 1986, quando encarou os cartolas da FIFA afirmando que era desumano obrigar os jogadores a atuarem ao meio-dia do escaldante verão mexicano. Não é coincidência que Maradona só batia com a esquerda. Caso vá para o outro lado, porém, talvez aceite sem contestações, afinal, Maradona sempre foi pouco convencional.  Mas se não gostar, também vai dar um jeito. Provavelmente com um maravilhoso drible no capeta – uma “gambeta” como dizem os argentinos. Uma gambeta no capeta e sairá de lá dando risada e dançando daquele jeito estranho e engraçado com que costumava bailar.

Eu não sei se Maradona vai para o céu ou para o inferno. Mas sei que ele nunca teve medo.  Desafiou muito mais que adversários. Desafiou as regras dentro e fora de campo, desafiou a gravidade, desafiou a divindade e a humanidade. Desafiou a todos. E para desgosto dos conservadores, também desfilou. Desfilou ao lado de Fidel Castro com a tatuagem de Che em um braço, um boné verde oliva na cabeça e um charuto na boca.

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Durante muito tempo, brasileiros e argentinos discutiram quem era maior: Pelé ou Maradona. Mas isso não importa, agora. Aliás, as duas coisas que mais me sensibilizaram sobre Maradona foram ditas por brasileiros.

Uma delas pelo Careca, o “Carecôni”, que tinha seus gols do Nápoli narrados nas animadas manhãs do campeonato italiano pelo Silvio Luiz. O Careca foi um monstro e só não foi maior porque uma lesão o tirou da Copa de 1982 quando seria titular no lugar do Serginho. E esse brasileiro, que fez dupla com el pibe de oro no Napoli de 1986 até 1981, disse que Maradona foi o maior que ele viu jogar. E  nessa comparação com Pelé, ele não vestiu a amarelinha: “Pelé era mais completo, praticamente perfeito. Sabia chutar de direita, de esquerda e cabecear. Maradona era fantástico, um cara de circo. O que ele fazia com uma perna só era brincadeira. Ele não tinha perna direita e não sabia cabecear. Então, imagina se ele tivesse tudo isso”.

Já Casagrande enxerga o outro lado da vida do argentino. Casão também conhece o pesadelo da dependência química e se emocionou durante um depoimento ao vivo no dia da morte de Maradona. Por perceber que o argentino passou pelo mesmo que ele e teve uma trajetória brilhante e gigantesca mutilada: “Eu me tratei e sempre fiquei revoltado com quem estava ao redor dele, porque quem está do lado dele, está vendo que está indo para o fundo do poço, se destruindo. E ninguém fez alguma coisa para evitar o que aconteceu hoje. Para mim, é muito duro. Fico chocado pela perda de um grande jogador, por um cara que eu conheci, gostava muito e por ser um dependente químico.”

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Eu não sei se Maradona vai para o céu ou para o inferno. Talvez transite entre os dois como fez em vida. Afinal, ele esteve no paraíso quando venceu a Copa do México marcando o gol com a mão de Deus. E o inferno ele viu quando a performance de alto nível foi encurtada por causa das drogas.  De todo modo, o rei Pelé parece ter a resposta:

“Um dia, eu espero que possamos jogar bola juntos no Céu”, disse ele.

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Eu não sei, mas espero que ele esteja em um lugar especial reservado aos gênios do futebol. Talvez um lugar em que possa encontrar Garrincha, o anjo das pernas tortas que sucumbiu ao álcool. Um lugar em que possa encontrar Cruijff, que morreu em função de um câncer no pulmão por causa do cigarro. E Puskas, que não sei se tinha algum vício delirante, mas, certamente, como bom húngaro, gostava de uma vodka ou de um bom charuto. Espero que ele os encontre em um lugar reservado aos semideuses que só não foram perfeitos porque eram humanos. E que bom que eram humanos. De outra forma,  não seriam eles.

Como disse Victor Hugo Morales após narrar o segundo gol de Maradona contra a Inglaterra na Copa de 1986: “Obrigado, Deus, pelo futebol, por Maradona e por essas lágrimas.”

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*Montagem com foto de David Cannon/Allsport/Getty Images/Hulton Archive

Igor Natusch

Um dia de tédio no Judiciário de Alagoas

Igor Natusch
13 de outubro de 2020
23/08/2017- Alagoas- Lula recebe título de Doutor Honoris Causa da Uneal, em Arapiraca. Foto: Ricardo Stuckert

Há um lugar, em meio ao sobrecarregado Judiciário brasileiro, no qual a ausência do que fazer parece ter virado um problema desesperador. Na 4ª Vara Cível de Arapiraca (AL), o único movimento deve ser o das moscas, elas mesmas um tanto contagiadas pela pasmaceira que toma conta do ar.

Imagino os funcionários entediados, sentados o dia inteiro diante de mesas perfeitamente arrumadas, vazias de processos, petições, notificações. A única emoção, imagino, é levantar da mesa até o bebedouro, servir um pouco de água em um copo plástico, retornar ao escritório, voltar a sentar. Um cenário exasperante, o da 4ª Vara Cível de Arapiraca. Quase consigo sentir no ar a frustração por mais um dia ocioso, ouvir a respiração funda de homens e mulheres perdendo mais um dia de vida, todos e todas aguardando com sofreguidão que surja algo para fazer. Uma sentencinha que seja. Qualquer coisa.

Foi nesse cenário de desespero, imagino, que o juiz Carlos Bruno de Oliveira Ramos decidiu que era necessário anular, pela força de um canetaço, o título de doutor honoris causa que o ex-presidente Lula recebeu da Universidade Estadual de Alagoas em 2017. Olhou para os lados, viu a moral dos funcionários e assistentes lá embaixo, e decidiu: tenho que fazer alguma coisa. Um gesto de desprendimento, portanto. Uma atitude corajosa, pensando no coletivo, com o nobre objetivo de dar a uma equipe de desanimados alguma coisa com que se distrair.

Só pode ser isso. Afinal, utilidade e interesse público inexistem na medida; a coisa toda é tão inútil e vazia de mérito que o próprio Ministério Público, à época, pediu o arquivamento do processo. O ex-presidente segue cheio de títulos honorários (trinta e cinco agora, para ser mais preciso), e duvido que o cidadão comum sequer lembrasse dessa honraria específica, que dirá ansiasse por uma solução para um problema inexistente. Desperdiçar tempo e recursos com semelhante bobagem seria muito condenável caso a 4ª Vara Cível de Arapiraca estivesse cheia de coisas para fazer, de forma que só posso acreditar que não é esse o caso.

Além disso, a decisão do senhor juiz fere escandalosamente a autonomia universitária – uma coisa um tanto grave e, digamos, inconstitucional para se fazer. Imagino eu, do alto do meu respeito e admiração pelo senhor juiz Carlos Bruno de Oliveira Ramos, que ele só tomaria uma atitude dessas com o coração pesado, depois de pesar os prós e contras, premido pela mais absoluta necessidade. Não posso imaginar que fizesse uma ilegalidade dessas de forma irrefletida, movido por sentimentos menores. É claro que não. Que ideia!

Sim, tem que ter sido um gesto muito calculado e absolutamente necessário. Porque, se não acreditarmos que assim é, a porteira estará aberta para pensamentos um tanto inquietantes. Seremos levados a pensar, por exemplo, que o senhor juiz simplesmente não gosta de Lula e, movido por uma mesquinharia dessas, usou o poder de sua caneta de forma não condizente com a importância de seu cargo. Nos ocorreria imaginar, quem sabe, que o mundo dos doutores não admite ver um operário com título de doutor. E de jeito nenhum, o que é isso?, jamais poderíamos nos permitir semelhante pensamento.

Pior ainda: talvez nos passasse pela cabeça que ver um “bandido condenado” recebendo honrarias é algo que incomoda muito o senhor juiz e seus chegados, porque demonstra que não há nenhuma unanimidade em torno do julgamento que condenou o ex-presidente Lula. Talvez nos fizesse pensar que há gente no Judiciário que se preocupa mais com Lula do que com o resto das pessoas. Ao ponto de (o horror, o horror!) desejar ativamente que se pense mal dele, que nada de positivo a respeito de Lula possa prosperar. Ou seja, se não acreditarmos que a decisão contra o título de doutor de Lula foi absolutamente necessária, surge margem até para pensar que o juiz seria não apenas recalcado, mas parcial e movido por razões políticas.

Deus me livre, pensar uma coisa dessas. Deve estar faltando o que fazer na 4ª Vara Cível de Arapiraca, isso sim. Só pode ser isso.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

A respeito de cachorros comedores de ovelha

Igor Natusch
4 de abril de 2020

No Rio Grande do Sul (e em boa parte do Brasil, imagino), é comum o uso de cães junto a rebanhos de ovelhas – seja para ajudar no pastoreio, seja para manter predadores (e ladrões) afastados. O Estado tem até sua própria versão de cão pastor, o ovelheiro-gaúcho, talhado especificamente para esse tipo de tarefa. De modo geral, os animais gostam de se sentir úteis, e realizam as tarefas com grande dedicação. Alguns cachorros, porém, acabam se desviando: pegam gosto por caçar as ovelhas e devorá-las.

Esses, como diz o gaúcho do campo, só matando.

Lembro do meu pai contando, quando eu ainda era bem novo, sobre as experiências que tivera com cachorros comedores de ovelha. Ele morava na zona rural de São Gabriel, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, e dizia ter visto uma ovelha caçada por cachorro, ainda viva. O processo é tão brutal quanto eficaz: o cachorro corre, a ovelha tenta fugir, e o caçador, ao invés de atacar no pescoço ou no lombo da presa, apenas agarra a lã com os dentes, dando um puxão que, em meio à correria, acaba causando ferimentos graves. Às vezes, a ovelha consegue fugir mesmo assim; às vezes, não. A ovelha que meu pai viu quando garoto tinha fugido, mas estava mal: o puxão tinha arrancado um grande naco de carne, deixando as costelas à mostra.

Eu nunca vi um cachorro comedor de ovelha, mas quem viu diz que o bicho fica viciado – tanto na carne crua recém-abatida, quanto na adrenalina da caçada. Alguns caçam apenas por prazer, sem sequer devorar de fato a presa; outros, ao contrário, param de comer da tigela e recusam qualquer outra comida que lhes seja servida, só demonstrando interesse pelo gosto do sangue fresco.

Em qualquer caso, a sabedoria do gaúcho diz que só existe um jeito de evitar o prejuízo na criação: levar o cachorro ovelheiro para um lugar isolado e matá-lo. Mesmo que goste muito dele, mesmo que seja um animal fiel e tudo o mais. Porque cachorro viciado em ovelha não se emenda. Não presta para mais nada. Só matando.

Imagino que muitos gaúchos tenham, no decurso das décadas, tentado salvar a vida de cachorros viciados em ovelha. Às vezes os piás gostam do bicho, e o pai não quer deixar as crianças tristes. Às vezes o cão livrou o dono de situações difíceis, o que gera um sentimento de gratidão. Talvez, no passado, o animal tenha sido o melhor pastor de ovelhas da fazenda, e o dono sinta pena de se desfazer de uma criatura que foi tão eficiente no passado. Ou pode ser que o gaúcho rude simplesmente não queira a missão de abater um cachorro, um animal tão próximo, com que se desenvolve laços diferentes do que se tem por uma vaca, um porco, uma ovelha.

Um esforço quase bonito, dependendo do caso – mas, ainda assim, infrutífero.

É a vida, simples assim. Alguns não se emendam – sejam animais selvagens, domesticados ou seres humanos, mesmo. Para alguns indivíduos, o desvio é sua própria natureza: é o que os define, o comportamento mais natural, o resumo de tudo que são e ambicionam ser.

Eles caçam ovelhas, reais ou figuradas. Eles buscam o cheiro de sangue, sentem um impulso incontrolável pela destruição.

Um viciado em ovelhas, seja de que espécie for, pode tentar mudar a rota, sim. Pode tentar modular seu discurso, por exemplo. Mas funciona por um ou dois dias, no máximo: logo volta a espalhar dor e discórdia, a cometer gestos vis, dizer todas as barbaridades que habitam sua mente doentia.

Pode ser que o caçador faça sinais de conciliação, ou talvez ele prefira gritar aos quatro ventos seus delírios homicidas. Nesses casos, não se deve levar em conta a primeira fala, e é preciso prestar toda a atenção na segunda.

Você pode adestrá-lo, pode pedir que se controle, implorar que tome juízo. Pode torcer que o ambiente o eduque, que as pressões sobre ele consigam colocá-lo na linha, que o risco da punição definitiva seja suficiente para evitar que ele continue matando. Pode inclusive achar que, depois de devorar algumas ovelhas, ele vá ficar de estômago cheio e parar com a matança, ao menos por algum tempo.

Tudo ilusão: ele não vai parar. Nunca.

Diante da caça, o cachorro que devora ovelhas entrará sempre em frenesi. Não parará nem mesmo diante do fim, podem acreditar. Mesmo isolado, mesmo encurralado ou na iminência do tiro fatal, ele vai sempre lembrar do gosto do sangue. E vai arreganhar os dentes. Ansiando por mais.

Sou gaúcho, mas não sou do campo, como vocês sabem. Ainda assim, creio que a sabedoria de quem vive no pampa é correta: quando se conclui que o cachorro virou caçador de ovelhas, o tempo de esperar que algo aconteça já passou. Quanto mais rápido a gente se livra dele, melhor.

Foto: Pxhere / Creative Commons