Reporteando

A notícia do outro lado do balcão

Renata Colombo
11 de outubro de 2017

Mesmo em lados opostos do balcão, sempre mantive uma ótima relação com os assessores de imprensa, independente de governo ou empresa. Também já “briguei” muito com assessor que não concordou com minha abordagem ou esperava pauta “chapa branca”, aquela que não problematiza. Mas tudo sempre baseado em muito respeito. Inclusive tenho amigos em assessorias que fiz depois de muito bater boca por causa de pauta.

Quando digo que “briguei”, por favor, entendam como “discuti com classe”. Inclusive vale um adendo: só perdi a calma uma vez, e foi no ar, ao vivo, com os chefes me olhando, porque o dono de uma empresa que eu provei que estava cometendo um crime tentou desqualificar meu trabalho.

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O fato é que nem sempre a sugestão que uma empresa faz à redação é pauta e nem sempre o assessor entende isso. A diferença está no que a gente faz com este entendimento divergente sobre o que é ou não notícia

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Semana passada recebi dados de uma pesquisa sobre a saúde dos caminhoneiros. Pedi pra enviarem mais informações sobre o assunto e usei em uma reportagem com os devidos créditos. Só que a pauta virou pra outro lado, foi ampliada, ganhou relevância nacional e acabei usando os dados da pesquisa para mostrar umas das consequências das dificuldades que os motoristas enfrentam em cumprir a lei por falta de estrutura nas estradas.

Eu não fiz a matéria conforme a empresa ofereceu. Eu não responsabilizei a empresa por nenhum dos problemas relatados. Eu não usei a empresa como case de bom exemplo porque ela é uma entre tantas outras Brasil afora. Por isso busquei entidades representativas e o governo federal.

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Mas o assessor de imprensa não gostou que não acatei a sugestão por completo. Veio me questionar, me esculhambou e disse que minha matéria é mentirosa

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Pra piorar, mandou uma sequência interminável de Whatsapps tentando interferir na condução da matéria e me convencer da abordagem que ele considerava correta. Depois de dizer que editor, chefe de reportagem e coordenador leram e ouviram a matéria, me limitei a um “ok”, ou então estaria até agora sendo esculhambada.

Desculpa, colega, mas o conceito de notícia é relativo e respeito sempre é bom, obrigada.

Reporteando

#JuntosContraoMachismo nas redações

Évelin Argenta
28 de setembro de 2017

Eu tinha um editor na antiga redação onde trabalhava que, por falta de noção ou caráter (nunca saberei), mantinha um blog com anotações e devaneios pessoais. A maioria dos textos girava em torno das personagens da redação, mulheres, quase sempre. Lá era possível ler fofocas e bastidores que somente os contemporâneos dele poderiam decifrar. Piadas internas, lembranças de fatos que provocavam gargalhadas entre o macharedo.

O fulano, aí já em tempos vividos por mim, começou a escrever sobre as estagiárias. Por desconhecimento ou medo de delatar esse tipo de comportamento na redação onde recém tinham sido admitidas (depois de um longo processo seletivo que inflou seus egos e murchou seus sonhos) nenhuma delatou. Eram tempos diferentes e essa juventude feminista ainda era tímida. Todo mundo dizia “ah, o fulano é louco”, “o fulano é um personagem”, “o fulano é doente”. Ninguém, no entanto, deixava de rir das piadinhas machistas do fulano.

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Pois bem, amigos, os tempos (graças às deusas todas) estão mudando. Hoje, uma coluna sobre a estagiária jamais passaria em branco. E não passou

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O desastre textual assinado pelo colega Guilherme Goulart, do Correio Braziliense, levantou a discussão e um grupo de jornalistas de São Paulo fez a discussão ganhar corpo, alma e voz.

Não é de hoje que as Jornalistas Contra o Assédio me orgulham. Além de amigas, talentosas repórteres, editoras, redatoras, âncoras premiadas, elas são o “sapato na máquina”, aquele que faz o trabalho parar e pensar que algo está sendo feito de forma errada. Essa semana, o coletivo lançou a campanha #JuntosContraoMachismo.

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A série de vídeos mostra homens reproduzindo frases que há anos são ouvidas por nós, mulheres, nas redações do país. A coleção tem pérolas como “a fulana trabalha como homem”,  “você saiu com algum diretor antes de virar apresentadora?” e por aí vai

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As frases – não que isso seja surpresa – foram ouvidas REALMENTE por colegas.  Elas surgiram a partir de uma consulta com um grupo de mais de cinco mil mulheres jornalistas de todo o Brasil. As profissionais foram consultadas sobre que tipo de assédio já tinham sofrido. O coletivo recebeu mais de DUZENTAS frases.

Participaram da #JuntosContraoMachismo nomes como Chico Pinheiro, Juca Kfouri, Fernando Rodrigues, Felipe Andreolli, Cazé, Mário Marra, Fábio Diamante, Marcus Piangers, Matheus Pichonelli, Abel Neto, Guilherme Balza, Cauê Fabiano, Nilson Xavier, Thiago Maranhão, Leonardo Leomil, Guilherme Zwetsch, Ricardo Gouveia, Fernando Andrade, Márcio Porto, Thiago Uberreich, Tiago Muniz, Rafael Colombo, Philipe Guedes, Chico Prado, Reinaldo Gottino e Haisem Abaki.

Os vídeos da campanha #TodosContraoMachismo estão disponíveis na página no Facebook do coletivo Jornalistas Contra o Assédio, no twitter e, espero, na tua rede social, também. A campanha vai até o dia 08/10.

O machismo é muito sério. Ele não diz respeito apenas a mulheres.

Somos #JornalistasContraoAssédio
E vamos #JuntosContraoMachismo

Reporteando

Jornalista é pessoa

Renata Colombo
28 de setembro de 2017

Não tem coisa que me revolte mais como pessoa do que violência, abuso, maus-tratos, abandono, enfim, tudo que envolva crianças. Ao mesmo tempo que me embrulha o estômago, desperta uma raiva que desconheço em mim.

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Engana-se quem acha que repórter é um ser frio, isento por completo ou que jamais se envolve com os fatos. Tem coisas que são difíceis demais de cobrir. Já até contei alguns casos aqui para vocês

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Pois bem. Esta semana ocorreu algo que não cobri, mas me revoltou e fez lembrar de outras coberturas. A história de uma guriazinha de cinco anos que teve uma baita coragem de, após um abuso em pleno supermercado de Porto Alegre, fugir do pedófilo e ainda contar para a mãe o que ocorreu.

Lembrei de uma semana há uns quatro anos. Era repórter em Porto Alegre e passei cinco dias cobrindo três casos de abuso sexual de crianças pelo interior do Rio Grande do Sul. Um delegado contou detalhes sobre um padre que abusava dos coroinhas da igreja. Foi insuportável de ouvir e nem tinha condições de publicar um relato tão escabroso. Os outros dois eram de pais que abusavam das filhas. Recordo bem de um em que a menina tinha somente dois anos. Eu disse dois anos.

É impossível ficar alheio ou não sentir nada diante de fatos como estes. Cada colega procura um meio de liberar sua indignação. Eu falo, escrevo, faço questão de publicar e publicar e publicar coisas como esta para que não se repitam. E que a atitude desta guriazinha sirva de esperança para que as futuras gerações tenham a coragem dela de lutar contra violências como esta. E com isso, quem sabe, as próximas nem tenham motivos para precisar de tanta coragem.

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A difícil missão de convencer que ser mulher, por si só, já é pauta

Évelin Argenta
2 de setembro de 2017

A semana que passou foi, talvez, uma das mais

enojantes que São Paulo viveu

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É difícil ser mulher na cidade que nunca dorme, mas cochila lindamente quando o assunto é garantir às mulheres seu pleno direito. Explico. Domingo, terça e quarta-feira, três mulheres, em situações bem parecidas sofreram agressões sexuais no transporte. Uma, em um Uber. Outras duas, dentro de um ônibus na Avenida Paulista, maior símbolo da diversidade paulistana. Em um dos casos um homem ejaculou – sim, GOZOU – no pescoço de uma passageira. A notícia, por si só, já seria terrível. Um componente, porém, a torna terrivelmente irônica.

Os crimes aconteceram na mesma semana que o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou uma campanha contra o assédio sexual no transporte público. A cabeça pensante desse movimento foi uma juíza, mulher, que no ano passado foi mantida refém por meia hora dentro do Fórum por um homem. Ele tinha audiência marcada por causa de agressões cometidas contra a esposa. A magistrada foi coberta com um produto inflamável e, de frente com o agressor, ouviu diversas vezes que seria queimada viva. Essa mulher juntou forças e, ao lado dos colegas homens, lançou a campanha, amplamente veiculada em rádio, TV’s e internet.

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A cerimônia foi conduzida por homens, protegidos por seus ternos suados na tarde paulistana mais seca de 2017. Seca também ficou a garganta de quem esperava, naquela tarde, ao menos uma manifestação das protagonistas da campanha

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No dia seguinte, mais uma vez, um homem ganhou as manchetes. O juiz que entendeu que o “ejaculador” da Paulista não cometeu crime e, sim, uma contravenção. O homem que gozou no pescoço da passageira, preso em flagrante, foi solto. O magistrado entendeu que, por estar sentada e não ter sido tocada pelo agressor, a vítima não sofreu “constrangimento mediante violência”, como diz o texto do artigo 213 do CP que tipifica o estupro. No momento dessa decisão, o agressor do segundo ônibus assinava um termo circunstanciado e era liberado de uma delegacia.

Se você, amigo, achou esse texto confuso e difícil de digerir, imagine as mulheres repórteres que, além de cobrirem esses casos, precisaram ouvir de colegas (em sua maioria homens) que:

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“ah, mas ele não chegou a estuprar”

“ah, mas não chegou às vias de fato”

“ah, mas eles estão amparados pela lei”

“ah, mas não vale matéria só pra discutir, temos que ter dados concretos”

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Imaginem como é, diariamente, tentar convencer que ser mulher, por si só, já é pauta.

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Quando o jornalista vira alvo da ira institucional

Renata Colombo
20 de julho de 2017
Cidade Linda na região do Bom Retiro Heloisa Ballarini/SECOM

Já relatei aqui para vocês os desafios de lidar com o poder público em tempos de redes sociais. Já falei aqui sobre a responsabilidade redobrada que um repórter precisa ter na hora de apurar uma informação, sobretudo aquelas mais polêmicas.

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Hoje digo a vocês que a relação entre repórter e poder público segue a mesma. É muito simples: jornalista denuncia e cobra, enquanto o poder público responde

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O problema é que as redes sociais tem dado um poder que permite que as pessoas, políticos, movimentos representativos, etc, falem o que quiserem, quando quiserem e da maneira que quiserem. Uma prática diferente daquela que se espera de um jornalista, que não deve falar o que quiser, quando quiser e da maneira que quiser.

Tudo isso pra dizer que minha colega da rádio CBN, aqui em São Paulo, não falou o que quis, quando quis e como quis. Ela divulgou uma notícia apurada e de maneira apropriada. Porém, ela está sendo esculachada nestas redes sociais simplesmente porque a prefeitura e seus seguidores não gostaram da notícia.

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O que fizeram: colocaram a culpa da carta indesejada no carteiro

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E digo isso com tamanha convicção porque não somente a repórter apurou como viu o que relatou. Nada mais, nada menos, do que servidores da prefeitura “espantando” moradores de rua das ruas a base de jatos de água fria em uma das manhãs mais geladas do ano até agora.

O prefeito foi para seu Facebook fazer vídeo, o Movimento Brasil Livre (MBL) foi para as redes publicar um perfil da jornalista como se a briga fosse pessoal, um vereador ligado ao prefeito replicou tudo isso como se fosse mentira ou “fake news”.

Então eu pergunto a vocês: onde está o respeito à liberdade de imprensa, quando os apontados puderam se defender – e o fizeram – mas não satisfeitos saíram por aí esculachando a jornalista como se a notícia fosse uma invenção da cabeça dela?

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O conto do meu amigo Brigadeiro Duar

Renata Colombo
29 de junho de 2017

Já contei aqui sobre situações constrangedoras, tristes, revoltantes. Mas todas servem de aprendizado E a grande burrice de um jornalista – e acho que de qualquer profissional – é quando ele se nega a aprender com as situações que vivencia.

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Pois esta repórter aqui aprendeu, a duras penas e às custas de muita piada  (dos outros) as patentes da aeronáutica

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Era repórter na Rádio Guaíba. Ficávamos na época numa redação minúscula antes da reforma interior do antigo prédio na Rua da Praia com a Caldas Jr, no centro de Porto Alegre. Prédio histórico, chamado de “esquina da comunicação”. O lugar é lindo.

Pois bem. Meu colega Samuel Vettori, grande repórter e amigo, aguardava retorno da assessoria de imprensa da aeronáutica para confirmar a fonte que daria entrevista a ele. Como estava ao telefone, pediu que eu atendesse e anotasse o nome e número da pessoa. Eis que entrego ao colega um pedaço de papel com o seguinte recado: “Brigadeiro Duar Fulano de Tal. Telefone tal”.

Eu, na minha mais tranquila versão, entreguei o bilhete. Samuel caiu no riso descontrolado. Todo mundo veio ver, querendo saber o motivo da piada. Eu não entendendo nada, achando que tinha anotado direito, afinal lá em Capão da Canoa tinha um cara chamado Duar, fiquei esperando a explicação.

Lição: um Brigadeiro na aeronáutica é Brigadeiro-do-Ar. O nome do oficial não era nada parecido com Duar, assim como não é brigadeiro destes de comer. Eu não fazia a menor ideia daquilo. Pra quem também não sabia, aí vai uma ajuda do Google: “Brigadeiro-do-Ar é o primeiro posto do generalato de oficiais aviadores na Força Aérea. Equivale a Contra-Almirante e General-de-Brigada”.

Curiosos se algum dia conheci o oficial? Sim! E não tive coragem de contar a história. Comecei a rir antes mesmo de me aproximar.

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Meu relato sobre a Kiss

Renata Colombo
20 de junho de 2017

Vejo nas redes sociais uma hashtag #somostodospaiskiss. Não consegui ficar alheia, mas também não me engajei. Ministério Público está processando os pais das vítimas da tragédia na boate Kiss. Processando a quem deviam defender. Alguma coisa está errada. Muito errada…

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Naquele dia, em especial, tudo estava errado. Questionei mil vezes o que estava fazendo lá e nesta profissão. Acho que pela primeira vez vou escrever sobre isso depois de quatro anos.

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Eu estava dormindo quando o telefone tocou. Meu plantão era no domingo à tarde, se não me engano. Fiquei em casa no sábado à noite e dormi cedo – Deus costuma iluminar os repórteres. No meu caso, ele começou sua tarefa cedo também – por volta das 4h da manhã, a chefe de reportagem da Gaúcha me liga:

– Renata, preciso que tu vá para Santa Maria, teve um incêndio, o motorista te pega em casa. É grave. Ele já está chegando aí. Falamos no caminho.

Dei um pulo da cama, consegui lembrar de pegar uma muda de roupa e um protetor solar e desci. Passamos para pegar equipamento e saímos de Porto Alegre sabendo que um incêndio havia atingido uma boate chamada Kiss, que universitários costumavam frequentar em Santa Maria, e que cerca de 20 pessoas tinham morrido na tragédia. Eu não fazia ideia do que estava por vir.

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As primeiras informações

No caminho, rádio ligado, as informações começavam a apavorar. Eu era repórter há sete anos, já tinha visto algumas coisas chocantes, mas nada se comparou a este dia até hoje. De 20 para 30 mortos. Mais alguns quilômetros de estrada, sem comer, sobe de 30 para 40. Foi assim por mais de 300Km. Cheguei na Boca do Monte com 140 jovens vítimas do fogo que consumiu a boate. Ainda no caminho, quando o coração começou a disparar, rezei. Pedi muito a Deus pra me ajudar a fazer o trabalho da forma mais digna que pudesse. Prometi que não faria nada que causasse ainda mais sofrimento às famílias. Meu microfone não ia mirar nenhum pai, nenhuma mãe. A promessa seria cumprida.

Uma operação de guerra havia sido montada na cidade, que respirava tristeza. Estava calor, sol forte, mas meu protetor solar ficou na mochila. Nem passou na minha cabeça que tinha levado um. Primeiro, militares do exército auxiliavam no transporte dos corpos que os bombeiros retiravam dos escombros da boate. Eles era levados para um ginásio de esportes para a segunda fase da operação. Até remover todos, ninguém informava nada.

O problema é que em busca de informações e do paradeiro de filhos, irmãos, amigos, as pessoas estavam muito nervosas, quase derrubaram o portão que dava acesso ao ginásio. A multidão começou a crescer. Comecei a buscar informações ainda preliminares e entrava no ar o tempo todo com o pouco que conseguia descobrir.

Quando vi, eu era naquele momento uma das poucas fontes de informação que as pessoas tinham em tempo real e in loco. Os rádios dos carros estavam ligados na Gaúcha. O coração disparou de novo. A responsabilidade era ainda maior. O respeito e a cautela tinham que ser também.

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O contato com os familiares

Andava pela rua que contornava o ginásio, quando veio o primeiro baque: um pai pergunta onde estavam cadastrando familiares que buscavam vítimas. Eu respondi onde era e que estava indo até lá. Perguntei quem ele procurava, disse que podia me acompanhar. Ele respondeu que procurava os dois tesouros: suas duas filhas tinham ido à boate naquela noite. Fui eu que não o acompanhei. Achei que seria possível me controlar. Só achei.

Segundo baque foi quando o meu pai me ligou. Quando ouvi “Rê, como tu tá, mana?”, comecei um ciclo que duraria dias e eu demoraria a sair dele: chorava, respirava fundo, entrava no ar… chorava, respirava fundo, entrava no ar. Foi assim por um bom tempo.

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Vi pais descobrindo que tinham perdido filhos. Vi pessoas desmaiando de dor no coração. Vi sonhos destruídos. Vi colegas abalados. Vi solidariedade. Vi injustiças. Vi tristeza.

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E tudo relatei. Contava tudo o que via, mas nunca consegui sentir orgulho de ter feito aquele trabalho, de contar aquela história. Nem mesmo quando tive retornos de ouvintes que me confirmavam que a promessa que fiz lá no início havia sido cumprida.

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E entre tudo o que vi naqueles dias, duas imagens ficaram na minha memória e mudaram um pouco a cabeça desta repórter.

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Entrei onde não devia. Me infiltrei no grupo do ministério da saúde que faria uma inspeção no pavilhão de identificação dos corpos das vítimas. Passei despercebida. Fui. Nem pensei. Tive vontade de dar meia volta, mas fiquei. Meu relato durou 10 minutos. Mais de 240 corpos alinhados delicadamente no chão. Da cintura para baixo cobertos de lona. Um número identificava cada um. Parte de cima com roupas sujas de fuligem e cinza. Rostos jovens e tranquilos lembravam que a tragédia interrompeu a vida cedo demais. Passei este relato e saí correndo de lá. Voltei ao ciclo, a começar pelas lágrimas.

O dia estava terminando e a lista oficial das vítimas foi divulgada. Dividi a pior das tarefas com meu chefe na época, o jornalista André Machado, que segurou minha mão. Cada um lia um nome. Voz trêmula. Guardei, mas não consigo ouvir aquela gravação. A última imagem do dia e a segunda que ficou na minha memória: quando ouviu da minha boca o nome de uma das vítimas, uma menina magrinha, cabelo liso, blusa vermelha, que tinha parado do outro lado da rua para prestar atenção nos nomes, desabou no chão.

Nessa hora não chorei. Não podia. Estava na fase do ciclo de cumprir com meu papel. Cumpri. Cresci. Amadureci. Reconheço que não perdi o foco e nem o respeito. Mas não me orgulho.

Pronto. Consegui escrever. E não chorei.

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Precisamos (?) ser mais versáteis

Renata Colombo
6 de junho de 2017

Sou contratada como repórter. É o que mais gosto e melhor sei fazer como jornalista. Seria muito feliz sendo repórter o resto da vida. Porém, de uns tempos pra cá venho observando que o mercado nem sempre nos leva pelo caminho mais romântico ou nem sempre conseguimos conduzir nossa carreira por ele. Precisamos ser, digamos assim, mais versáteis.

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A gente amadurece e é surpreendido a cada passo. Se descobre também. Vê que tem outros talentos. E isso também pode ser legal.

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Digo isso não pra jogar a toalha, mas porque as coisas estão mudando muito e toda esta movimentação das “placas jornalísticas” desperta o vulcão da reflexão sobre a necessidade de sermos cada vez mais versáteis e, no bom linguajar popular, “pau pra toda obra”. Um exemplo: a figura do repórter especial tem sido extinta aos poucos. Não encontramos mais nas redações um cara destacado somente para grandes matérias ou coberturas especiais.

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O repórter que consegue fazer pautas mais trabalhadas é o mesmo que apurou ocorrência policial a semana toda e que fez bico na produção quando o colega foi para o departamento médico.

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Outro exemplo: as editorias estão sendo extintas. O enxugamento das redações provoca a pulverização das pautas conforme a demanda e a equipe. Hoje eu cubro economia, amanhã me pautam para meio ambiente. Provoca também dança das cadeiras, o que nem sempre agrada a gregos e troianos. Mais um exemplo: oportunidades diferentes/inéditas surgem conforme o andar da carruagem. Quando menos se espera, vem o convite para cobrir uma editoria aqui, uma ancoragem ali, uma função nova acolá.

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Aproveitar estas janelas pode ser uma forma de descobrir novos talentos e aptidões.

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Último exemplo: a boa notícia desta movimentação é que ela abre espaço, e muito, para iniciativas e projetos inovadores dentro do jornalismo. Enquanto a mídia convencional está encolhendo, uma mídia ousada, em tempo real, também confiável, às vezes até bem segmentada, está crescendo.

Volto a dizer: não sou a favor de jogar a toalha e desistir de toda a estratégia inicial de jogo, mas voto na versatilidade. Aproveitar novas oportunidades não é perda de tempo. E repórter que é repórter vai ser sempre, porque isso tá no sangue.

Reporteando

Silêncio também é furo jornalístico

Renata Colombo
18 de maio de 2017
(Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Alan Santos/PR

Vocês estão assistindo, meus caros, de camarote no cenário político brasileiro, a um exemplo do que chamamos de preservar o sigilo da fonte. Durante cerca de um mês, pelo menos cinco  instituições diferentes compartilharam das mesmas informações enquanto uma ação da Polícia Federal – nunca antes vista – estava em curso. NINGUÉM vazou sequer uma frase sem sentido. NADA veio a público até o momento certo.

Procuradoria-geral da República (Ministério Público Federal), Supremo Tribunal Federal, delatores da JBS, advogados da JBS, o jornalista Lauro Jardim. O que eles têm em comum? Guardaram um grande segredo durante o tempo necessário para que a operação Lava Jato chegasse ao presidente Michel Temer, ao senador Aécio Neves e a outros políticos do alto clero do governo federal.

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O segredo garantiu que a PF tivesse tempo para colocar carimbos em notas para pagamento de propina e chip rastreador nas malas, para que a corrupção transcorresse da forma mais tranquila possível para os envolvidos – sim, é isso mesmo

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Isso é muito raro, muito. Na maioria das vezes nós, repórteres, somos ansiosos, queremos garantir o furo jornalístico, não admitimos perder. Infernizamos a vida de advogados e assessores para conseguir vazar uma mísera informaçãozinha e eles fazem o mesmo conosco. Porém, segurar a ansiedade também nos permite contar histórias como esta e escrever uma nova versão do Brasil. Porque este livro está um pouco empoeirado, precisando de uma limpeza.

Foto: Alan Santos/PR
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Checagem não é um palavrão

Renata Colombo
2 de maio de 2017
Marcos Santos/USP Imagens Tecnologia da informação

Jornalistas, repórteres e editores são seres humanos normais, e não robôs dotados de informação programada, caso ainda haja alguma dúvida. Aquele combinado de informações que chega até as pessoas foi escrito e apurado (guarde estas palavras: apuração e checagem) por uma pessoa como eu, como você, que erra, se confunde e, ao mesmo tempo, também tem ideias brilhantes.

 

Por que digo isto? Porque a apuração é o princípio mais básico dos básicos para um jornalista

Conheci, ao longo da carreira, muito repórter que divulgava informações que não havia apurado – que fazia uma reportagem com base em outros veículos, sem perguntar nada para fonte alguma. Conheci editor e produtor mais preocupado com o imediatismo da notícia do que com a divulgação correta da história. Conheci plantonista que matou o cara errado porque não checou duas vezes o que estava escrevendo.

 

 O problema é que, às vezes, o errado vira norma e a gente se vê no meio do turbilhão de equívocos

 

Em uma dessas situações, preocupada em não divulgar o que não havia apurado, me neguei a ler certa informação no ar – era uma notícia dada por outro veículo e da qual eu não tinha nenhuma confirmação com minhas fontes. Comprei uma briga por causa disso, mas dormi tranquila e aliviada. Horas depois da desavença, veio a publicação de uma errata a respeito da nota que não li. A informação estava equivocada.

 

O colega que errou era um repórter como eu, não era um robô com um big data no cérebro. Não sei se faltou checagem ou houve outro problema, essas coisas acontecem. Mas sei que se eu não me preocupasse com apuração, duas pessoas teriam errado

 

Me arrependo da briga? Lógico que não. Comprarei outras como esta? Óbvio que sim. Para o ouvinte, leitor ou telespectador, o que vale é o que chega até ele. A errata não tem garantia. Para ele fica a imagem de um jornalista confiável ou não. E não quero ser a segunda opção, já tem muitos por aí.