Reporteando

Meu relato sobre a Kiss

Renata Colombo
20 de junho de 2017

Vejo nas redes sociais uma hashtag #somostodospaiskiss. Não consegui ficar alheia, mas também não me engajei. Ministério Público está processando os pais das vítimas da tragédia na boate Kiss. Processando a quem deviam defender. Alguma coisa está errada. Muito errada…

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Naquele dia, em especial, tudo estava errado. Questionei mil vezes o que estava fazendo lá e nesta profissão. Acho que pela primeira vez vou escrever sobre isso depois de quatro anos.

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Eu estava dormindo quando o telefone tocou. Meu plantão era no domingo à tarde, se não me engano. Fiquei em casa no sábado à noite e dormi cedo – Deus costuma iluminar os repórteres. No meu caso, ele começou sua tarefa cedo também – por volta das 4h da manhã, a chefe de reportagem da Gaúcha me liga:

– Renata, preciso que tu vá para Santa Maria, teve um incêndio, o motorista te pega em casa. É grave. Ele já está chegando aí. Falamos no caminho.

Dei um pulo da cama, consegui lembrar de pegar uma muda de roupa e um protetor solar e desci. Passamos para pegar equipamento e saímos de Porto Alegre sabendo que um incêndio havia atingido uma boate chamada Kiss, que universitários costumavam frequentar em Santa Maria, e que cerca de 20 pessoas tinham morrido na tragédia. Eu não fazia ideia do que estava por vir.

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As primeiras informações

No caminho, rádio ligado, as informações começavam a apavorar. Eu era repórter há sete anos, já tinha visto algumas coisas chocantes, mas nada se comparou a este dia até hoje. De 20 para 30 mortos. Mais alguns quilômetros de estrada, sem comer, sobe de 30 para 40. Foi assim por mais de 300Km. Cheguei na Boca do Monte com 140 jovens vítimas do fogo que consumiu a boate. Ainda no caminho, quando o coração começou a disparar, rezei. Pedi muito a Deus pra me ajudar a fazer o trabalho da forma mais digna que pudesse. Prometi que não faria nada que causasse ainda mais sofrimento às famílias. Meu microfone não ia mirar nenhum pai, nenhuma mãe. A promessa seria cumprida.

Uma operação de guerra havia sido montada na cidade, que respirava tristeza. Estava calor, sol forte, mas meu protetor solar ficou na mochila. Nem passou na minha cabeça que tinha levado um. Primeiro, militares do exército auxiliavam no transporte dos corpos que os bombeiros retiravam dos escombros da boate. Eles era levados para um ginásio de esportes para a segunda fase da operação. Até remover todos, ninguém informava nada.

O problema é que em busca de informações e do paradeiro de filhos, irmãos, amigos, as pessoas estavam muito nervosas, quase derrubaram o portão que dava acesso ao ginásio. A multidão começou a crescer. Comecei a buscar informações ainda preliminares e entrava no ar o tempo todo com o pouco que conseguia descobrir.

Quando vi, eu era naquele momento uma das poucas fontes de informação que as pessoas tinham em tempo real e in loco. Os rádios dos carros estavam ligados na Gaúcha. O coração disparou de novo. A responsabilidade era ainda maior. O respeito e a cautela tinham que ser também.

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O contato com os familiares

Andava pela rua que contornava o ginásio, quando veio o primeiro baque: um pai pergunta onde estavam cadastrando familiares que buscavam vítimas. Eu respondi onde era e que estava indo até lá. Perguntei quem ele procurava, disse que podia me acompanhar. Ele respondeu que procurava os dois tesouros: suas duas filhas tinham ido à boate naquela noite. Fui eu que não o acompanhei. Achei que seria possível me controlar. Só achei.

Segundo baque foi quando o meu pai me ligou. Quando ouvi “Rê, como tu tá, mana?”, comecei um ciclo que duraria dias e eu demoraria a sair dele: chorava, respirava fundo, entrava no ar… chorava, respirava fundo, entrava no ar. Foi assim por um bom tempo.

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Vi pais descobrindo que tinham perdido filhos. Vi pessoas desmaiando de dor no coração. Vi sonhos destruídos. Vi colegas abalados. Vi solidariedade. Vi injustiças. Vi tristeza.

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E tudo relatei. Contava tudo o que via, mas nunca consegui sentir orgulho de ter feito aquele trabalho, de contar aquela história. Nem mesmo quando tive retornos de ouvintes que me confirmavam que a promessa que fiz lá no início havia sido cumprida.

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E entre tudo o que vi naqueles dias, duas imagens ficaram na minha memória e mudaram um pouco a cabeça desta repórter.

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Entrei onde não devia. Me infiltrei no grupo do ministério da saúde que faria uma inspeção no pavilhão de identificação dos corpos das vítimas. Passei despercebida. Fui. Nem pensei. Tive vontade de dar meia volta, mas fiquei. Meu relato durou 10 minutos. Mais de 240 corpos alinhados delicadamente no chão. Da cintura para baixo cobertos de lona. Um número identificava cada um. Parte de cima com roupas sujas de fuligem e cinza. Rostos jovens e tranquilos lembravam que a tragédia interrompeu a vida cedo demais. Passei este relato e saí correndo de lá. Voltei ao ciclo, a começar pelas lágrimas.

O dia estava terminando e a lista oficial das vítimas foi divulgada. Dividi a pior das tarefas com meu chefe na época, o jornalista André Machado, que segurou minha mão. Cada um lia um nome. Voz trêmula. Guardei, mas não consigo ouvir aquela gravação. A última imagem do dia e a segunda que ficou na minha memória: quando ouviu da minha boca o nome de uma das vítimas, uma menina magrinha, cabelo liso, blusa vermelha, que tinha parado do outro lado da rua para prestar atenção nos nomes, desabou no chão.

Nessa hora não chorei. Não podia. Estava na fase do ciclo de cumprir com meu papel. Cumpri. Cresci. Amadureci. Reconheço que não perdi o foco e nem o respeito. Mas não me orgulho.

Pronto. Consegui escrever. E não chorei.