Voos Literários

A violência contra a mulher é diária

Flávia Cunha
5 de dezembro de 2020

Após um novembro marcado por manifestações e campanhas de combate à violência contra a mulher, começamos dezembro com a repercussão de diversas denúncias de assédio moral e sexual envolvendo o humorista e ex-diretor da TV Globo Marcius Melhem. O ator reconhece ter sido “um homem tóxico”, mas nega as acusações de violência sexual.

LÓGICA PERVERSA

Infelizmente, acusações de assédio e de outros tipos de violência contra a mulher em geral têm uma característica bastante perversa. Inverte-se o jogo e o relato da assediada é que necessita de provas, duvidando-se da veracidade de testemunhos e questionando-se o comportamento feminino.

INCISIVA

Refletindo a respeito do assunto, lembrei da leitura recente que fiz do livro de crônicas/contos Aqui Dentro, de Nathallia Protazio. No texto “Incisiva”, a escritora relata a história de uma mulher que vê-se obrigada a receber, à noite sozinha em casa, um ex. Este homem, alcoolizado, faz chantagens para dormir na casa da protagonista. Ela, exausta, cede, mesmo com medo. Enquanto seu assediador está na sala do apartamento, a personagem permanece no quarto, onde começa a fazer digressões sobre o que pode acontecer a seguir:

“Transformá-lo em criminoso me transformava em vítima e eu não queria ser vítima de nada. Ou pior, vítima-cúmplice, afinal, fui eu quem abriu a porta. Sem querer assumir a verdade que eu estava, sim, sendo uma vítima e sem encontrar uma forma de sair daquela situação, à beira do desespero psicológico eu chorei.”

VIOLÊNCIA DIÁRIA

Sabemos que a situação vivida pela personagem criada pela escritora Nathallia Protazio no texto “Incisiva” está longe de ser uma fantasia. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que 45% das mulheres em situação de violência são agredidas diariamente. Em média, a cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. 

No texto-título de sua obra, “Aqui Dentro”, Nathalia Protazio alerta para os inúmeros problemas enfrentados pelas mulheres:

“Cansada de amar o fato de ser mulher e viver num mundo contrário a isso. Todo mundo já enjoou de ouvir falar em como tudo é injusto. Feminismo. Machismo. Tudo que está errado. Salário mais baixo; mais títulos e menos carreira; violência doméstica; descaso governamental e preconceito institucional. A gente não pode se maquiar e colocar uma saia sem se lembrar que nascemos no planeta errado, e ainda tentam nos fazer acreditar que o que tá errado é o nosso gênero.”
Mas como Nathalia anuncia, no início do texto ‘Aqui Dentro”:  “Amanhã eu amanheço e renasço.”

Que tenhamos força para renascer, seguir resistindo (e tendo coragem para denunciar abusadores da vida real).

SOBRE A AUTORA E O LIVRO:

Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica e escritora. Já morou em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça. Hoje vive em Porto Alegre/RS, onde acaba de lançar o título Aqui Dentro, na coleção de bolso “A voz da Ancestralidade” pela Editora Venas Abiertas. O livro está disponível pelo Instagram da autora: @nathalliaprotazio.

Imagem de capa:  Nino Carè/Pixabay

Imagem da autora: Acervo Pessoal

Voos Literários

Por que tanto medo do comunismo?

Flávia Cunha
28 de novembro de 2020

O segundo turno das eleições municipais no Brasil tirou do armário de vez um monstro bem conhecido dos conservadores brasileiros: o fantasma do comunismo. Este monstro já foi usado como justificativa para o golpe militar de 1964, por exemplo. E voltou com tudo nos últimos anos, ganhando força na campanha presidencial de 2018. Surgiram, então, argumentos pouco lógicos, como o fato de as gestões petistas terem sido uma “ditadura comunista” no Brasil.

AMEAÇAS CÍCLICAS

Em entrevista à coluna Voos Literários, o historiador João de Los Santos comenta que o medo do comunismo como artifício político vem desde a época de Getúlio Vargas. “O golpe do Estado Novo foi dado a partir de uma suposta ameaça comunista. Podemos dizer que a cada 30, 40 anos existe o comunismo sendo usado como ameaça.”

ELEIÇÕES 2020

Em duas capitais brasileiras, o fantasma de roupa vermelha com o símbolo da foice e martelo aparece com mais constância durante a campanha eleitoral. Em São Paulo, Guilherme Boulos, do PSOL (Partido Socialismo e Solidariedade), volta e meia é taxado de comunista e há boatos de que imóveis residenciais serão invadidos, caso ele vença o pleito. Em Porto Alegre, a situação é ainda pior. A candidata Manuela D’Ávila, por ser PC do B (Partido Comunista do Brasil), é constantemente alvo de fake news. Entre as mais bizarras, estão a de que fechará igrejas e liberará o uso de drogas ilícitas se for eleita prefeita da capital gaúcha.

STÁLIN EM DESTAQUE

E o tema comunismo chegou a fazer parte de um debate realizado na televisão nesta sexta-feira, dia 27, em Porto Alegre. O candidato Sebastião Melo (MDB) acusou Manuela de ser “stalinista” por integrar o PC do B. A partir desse ataque de Melo, me vieram à mente três questionamentos:

O que isso traz de produtivo para o cenário eleitoral de 2020?

Quantos telespectadores realmente sabem quem foi Josef Stalin e sua atuação política na União Soviética?

Quem realmente entende o que é comunismo e socialismo aplicados à realidade atual brasileira?

O SURGIMENTO DO SOCIALISMO

Para refletir sobre o assunto, é interessante voltarmos às raízes do socialismo. A grosso modo, os ideais socialistas surgiram como uma reação à Revolução Industrial, que trouxe baixos salários associados a jornadas de trabalho de 14 horas diárias, entre outros abusos. Ou seja, a intenção era lutar contra a miséria reinante entre a classe trabalhadora naquele período histórico.

PC do B

Fazendo um corte para o Brasil atual o site do PC do B enfatiza a trajetória do partido, fundado em 1922, sendo a legenda mais antiga em atividade no país.  No texto institucional, são destacadas bandeira históricas comunistas:

“criação dos direitos sociais e trabalhistas (como a jornada de trabalho de 8 horas diárias, o direito a férias, aposentadoria, 13º salário, saúde, educação e previdência pública etc). O PCdoB também tem sido um intransigente defensor do Brasil, da independência e soberania da nação.”

PSOL

Já o PSOL, em seu site oficial, ressalta que em seus 15 anos de existência, segue no combate sem tréguas em defesa dos direitos trabalhistas, previdenciários, do serviço público e contra a agenda conservadora que ameaça mulheres, negros/as, a comunidade LGBT, os direitos indígenas, entre outros.”

MOTIVOS OCULTOS

Após analisar as propostas defendidas pelo PC do B e PSOL, fico aqui me perguntando a razão destas  lutas serem consideradas ameaçadoras para determinados setores da sociedade. Provavelmente, por interesses econômicos de parte da população. Na outra parcela, menos favorecida financeiramente, a desinformação me parece ser o motivo por trás de tanto temor.

PRIMEIROS PASSOS

E contra a desinformação, nada melhor do que a leitura. A série Primeiros Passos é um marco no meio editorial e acadêmico no Brasil. A coleção foi criada pela Editora Brasiliense na década de 1970 e seus livros de bolso marcaram gerações. A sugestão de leitura para ajudar nessa conjuntura politica são os volumes O que é socialismo? e O que é comunismo?, os dois escritos pelo sociólogo Arnaldo Spindel. 

Não sei se quem tem medo do comunismo vai se dispor a ler algo a respeito do tema, mas acredito que a tentativa é válida. Vai que a pessoa perceba que é impossível  implementar uma ditadura comunista em apenas uma cidade?

MEDO SEM SENTIDO

O historiador João de Los Santos concorda que este aspecto é inédito no quesito medo do comunismo. “Pela primeira vez, é uma ameaça em nível municipal. O PT teve a oportunidade durante 14 anos de dar um golpe de Estado comunista no Brasil. Isso não aconteceu. Mas quem vai dar esse golpe é uma prefeita de uma cidade em um estado conservador como é o Rio Grande do Sul atualmente?”, analisa, demonstrando o absurdo desse temor.  

Procurando ser otimista, espero que, com o tempo, esse pessoal que morre de medo da ameaça comunista perceba que o capitalismo é o verdadeiro monstro a ser combatido. Sigamos na luta, cada um a seu modo. Bom voto amanhã!

Imagens: Internet/Reprodução

 

Voos Literários

Por um mundo com menos racismo

Flávia Cunha
21 de novembro de 2020

Senti a sexta-feira do Dia da Consciência Negra como uma porrada na cara, por ser uma branca privilegiada, ainda que consciente do racismo estrutural existente no Brasil. De madrugada, recebi por whatsapp o vídeo de um homem negro sendo cruelmente espancado e a notícia de sua morte. Aos poucos, as redes sociais e os noticiários foram ficando repletos das revoltantes informações. Ficamos todos sabendo que João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi surrado até a morte por seguranças do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. O brutal assassinato de Beto gerou uma onda de protestos em diversas cidades brasileiras e teve repercussão internacional na imprensa. 

SENTI VERGONHA POR SER BRANCA

Enquanto me solidarizava às manifestações de repúdio a esse cruel assassinato de um homem negro, o lado tóxico das redes sociais me trouxe vergonha por ser branca. Em um dia em que permaneci trabalhando meio anestesiada em frente ao computador, observei relativizações do racismo envolvendo o caso, tentativas de culpar a vítima e defesa do Carrefour após protestos mais “violentos”. O patrimônio de uma empresa ser atingido durante protestos é pior do que um assassinato motivado por racismo? Para boa parte dos brasileiros, em especial brancos e de classe média, sim. Essas declarações míopes na Internet demonstram o quanto ainda temos a avançar enquanto sociedade.

MAS O QUE PODEMOS FAZER PARA COMBATER O RACISMO?

Em primeiro lugar, é preciso enxergá-lo:

“O RACISMO ESTÁ EM TODO O LUGAR
[…] Ele está na estrutura da sociedade. Para pessoas brancas, ele pode não estar tão claro. Mas para pessoas negras, ele é visível todos os dias. E,por conta dele, somos invisibilizados.”

O trecho acima é do livro Uma atitude por dia: Por um mundo com menos racismo, de Gabriela Oliveira. A escritora, designer e empreendedora concedeu uma entrevista para as redes sociais da minha produtora nesta sexta-feira. Gabriela começou a live com as seguintes reflexões:

 “O assassinato de João Alberto Silveira Freitas se soma, infelizmente, a muitos outros. Corpos negros, independente da idade, são alvos da violência gratuita motivada pelo racismo no Brasil.”  
“As empresas não pegam para si a responsabilidade sobre casos de violência como esse ocorrido no Carrefour. Tanto que a empresa só emitiu uma nota de repúdio. Isso não é suficiente.”

Durante a entrevista, Gabriela trouxe muitas sugestões práticas de como cada um, dentro de sua realidade, pode contribuir para combater o racismo. Precisamos, em primeiro lugar, fazer com que  as pessoas parem de negar sua existência. Evidentemente, isso é difícil em um país onde o presidente da República e seu vice fazem o desserviço criminoso de declarar que o Brasil não é um país racista. Aos brancos, como eu, cabe apoiar e engajar-se nessa luta, para mostrar que vidas negras importam.

Como Gabriela ensina, neste trecho de seu livro:

“Pessoas brancas precisam entender seu papel no combate ao racismo. Entender seu lugar de fala, agir a partir dele e se aliar de forma ativa e consistente. […] A luta antirracista é uma prática ativa. Um mundo com menos racismo é possível.”

Confiram  a entrevista completa de Gabriela Oliveira no canal da F Cunha Produtora:

Foto e charge gentilmente cedidas ao Vós por Repórter Popular

Voos Literários

Mulheres na política

Flávia Cunha
14 de novembro de 2020
QUEM É POLÍTICO NO BRASIL?

Confesso que eu, durante muito tempo, associei política a homens brancos, heteros e ricos, vestindo terno e gravata. Tanto que cheguei a escrever, há muitos anos, uma espécie de conto transformando em prosa a genial letra de Candidato Caô Caô, de Bezerra da Silva. 

Esses candidatos que remetem à música do sambista ainda estão por aí, espalhados pelas periferias das grandes cidades, buscando o voto dos mais vulneráveis economicamente e fazendo promessas que jamais cumprirão. O que precisa ficar evidente, cada vez mais, é que a política não precisa ser feita por esse tipo de pessoa. Mas, para isso, é preciso que os eleitores se disponham a mudar seu voto.

MULHERES NA POLÍTICA

Para começar, que tal escolher candidatas para o pleito deste domingo? Assim, conseguiremos reverter conjunturas como a do Congresso Nacional, onde as mulheres ocupam apenas 15% das cadeiras. Em nível municipal, a média nacional varia entre 10% a 15% de vereadoras. Por outro lado, mais de 50% da população brasileira é do sexo feminino. o que torna óbvia a falta de presença efetiva das mulheres na política.

REPRESENTATIVIDADE IMPORTA

Outra forma de conscientizar os eleitores sobre a importância da representatividade feminina na política brasileira é através de bons livros. Um deles é Mulheres no Poder – trajetórias na política a partir da luta das sufragistas no Brasil, de Shuma Schumaher e Antonia Ceva. A obra é para consulta constante, por ser uma publicação com mais de 500 páginas, com diversas informações relevantes sobre o tema.

NÃO BASTA SER MULHER

Porém, para que realmente aconteçam modificações relevantes na política e nas estruturas sociais, precisamos de prefeitas e vereadoras dispostas a lutar pelos direitos das mulheres.  Por isso, é urgente votar em mulheres feministas, negras e trans. 

INSPIRAÇÃO

Esse texto foi criado após assistir ao vídeo Vote em Mulheres!, do canal Seus Dados, da professora de jornalismo e doutora em Comunicação Marlise Brenol. A especialista estuda o uso e a apropriação de dados pelo jornalismo, Estado, iniciativa privada e terceiro setor, além de suas repercussões, significados e visibilidade no debate público.

PARA SABER MAIS

Marlise recomenda aos interessados em se aprofundar no tema mulheres na política, os materiais divulgados pela Gênero e Número. Trata-se da  primeira organização de mídia no Brasil orientada por dados, com o objetivo de qualificar o debate sobre equidade de gênero. 

POR FIM, MAS NÃO MENOS IMPORTANTE

Vote com consciência!!

Imagem: Arte sobre foto/Agência Senado

Voos Literários

A Culpa Nunca é da Vítima

Flávia Cunha
7 de novembro de 2020
“É assim que eu mato uma pessoa. Descubro seus hábitos, decoro seus horários. Não é difícil. A vida dele consiste em paradas rápidas na loja de tudo por um dólar, onde compra o mínimo necessário para manter seu ciclo capenga em movimento. […] O pão, o queijo, o vinho e as bolachas água e sal que às vezes ele esfarela e deixa para os pássaros — uma minúscula migalha de bondade que o torna ainda mais odioso. Porque se há uma versão sua que alimenta os passarinhos à medida que o inverno chega, há também a decência que ele prefere deixar de lado quando faz outras coisas. Outras coisas que também alimentam os pássaros. E os falcões. E os guaxinins. E os coiotes. Todos os animais que comeram bocados da minha irmã, destruindo qualquer chance de provar que foi ele quem a matou. Mas não sou um júri, não preciso de provas.”

Assim começa o livro A (R)evolução das Mulheres, da escritora norte-americana Mindy Mcginnis. A protagonista da história é Alex, uma adolescente atormentada pela falta de justiça para o assassinato brutal da irmã por um predador de mulheres. Convivendo com uma mãe desequilibrada e um pai ausente, a jovem direciona sua vida a promover uma vingança e, já nas primeiras páginas, ficamos sabendo que ela conseguiu atingir seu objetivo.

O que me chocou ao longo da leitura da obra, ocorrida há alguns meses, foi minha dificuldade em ficar contra a personagem. Afinal, ela matou uma pessoa e eu sou favorável aos direitos humanos.

Porém, quando o sistema não funciona e um predador está à solta, seria a vingança o único caminho?

Foi este questionamento que fiz nessa semana, ao me deparar com as repercussões do caso Mari Ferrer. Para além da sentença injusta, provoca revolta o vídeo da audiência, onde aparece a jovem sendo brutalmente humilhada pelo advogado de defesa do réu, sob a conivência do juiz.  O que o sistema judiciário parece querer ignorar é que a a culpa nunca é da vitima.

E foi justamente a audiência com clima de inquisição que gerou uma grande raiva em mulheres normalmente contrárias à violência. Além da sensação de impotência e tristeza enormes, por sabermos que muitas de nós ainda passarão, infelizmente, por situações de assédio e violência sexual sem a devida punição.

A CULPA É DO PATRIARCADO

A impunidade proporcionada pelo sistema garante que agressores prossigam com suas vidas normalmente e possam colocar em risco outras mulheres. Por isso, é mais do que urgente acabar com relativizações sobre o que é estupro e arcaicos argumento de que determinadas roupas ou condutas seriam a permissão para abusos.

PRECISAMOS NOS UNIR

Não defendo o justiçamento como a personagem Alex faz no livro A (R)evolução das Mulheres. Mas ao terminar a leitura de obras como essa, espero que as leitoras se sintam mais fortalecidas para lutar contra injustiças. Fazer manifestações é um caminho. Reivindicar um sistema judiciário menos machista e patriarcal é outro. Educar meninos para não abusarem mulheres também é uma forma de, ao menos no futuro, evitarmos a repetição dos erros do passado e do presente (como já escrevi aqui.) O que não podemos é ficar inertes.  Pois, repito, a culpa nunca é da vitima, por mais que as estruturas tentem colocar a responsabilidade na conduta da mulher.

#justiçaparamariferrer

Imagem: Capa livro A (R)evolução das Mulheres 

 

 

 

Voos Literários

Mulheres e caça às bruxas

Flávia Cunha
31 de outubro de 2020

Para além da tradição importada do Halloween e das fantasias usadas alegremente por crianças (e alguns adultos) mesmo em tempos pandêmicos, o Dia das Bruxas pode nos provocar reflexões mais profundas. Entre elas, questionar o que representava a perseguição a mulheres pela suposta ligação com demônios.

                                                                    IDADE MÉDIA

A professora e escritora italiana Silvia Federici descreve no livro Mulheres e caça às bruxas – Da Idade Média aos dias atuais como essas mulheres atrapalhavam a sociedade medieval e, por isso, eram perseguidas:

“Na figura da bruxa as autoridades puniam, ao mesmo tempo, a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças mágicas, que pressupunham a presença de poderes que não podiam controlar, e o desvio da norma sexual que, naquele momento, colocava o comportamento sexual e a procriação sob domínio do Estado.”
 A CAÇA ÀS BRUXAS NÃO ACABOU

Na mesma obra, a autora, militante internacional dos direitos feministas, traz à tona a volta de perseguição a mulheres a partir da década de 1990 até os dias, em países da África e na Índia:

“Mudanças em leis e regras de propriedade de terras e no conceito do que pode ser considerado fonte de valor parecem também estar na raiz de um fenômeno que produziu muita miséria para as mulheres […] a volta da caça às bruxas. [..] Outros fatores são a expansão das seitas evangélicas neocalvinistas, que pregam que a pobreza é provocada por falhas pessoais ou por ações maldosas das bruxas. Contudo, observa-se que as acusações por bruxaria são mais frequentes nas áreas destinadas a projetos comerciais ou nas quais processos de privatização de terras estão em curso (como nas comunidades tribais da Índia) e quando a acusada possui algum terreno a ser confiscado. Na África, em especial, as vítimas são mulheres mais velhas que vivem de algum pedaço de terra, enquanto as acusações partem de integrantes mais jovens das comunidades ou mesmo das próprias famílias, em geral jovens sem emprego que veem as idosas como usurpadoras.”
O LIVRO

A obra tem uma belíssima edição da Boitempo (clique em cima da imagem para ver algumas páginas do livro e as belissímas ilustrações do miolo do livro). Ao procurar no site da editora, a informação é de que o livro está indisponível. Porém, existem exemplares à venda na Estante Virtual, para quem se interessar em comprar a obra.  Aqui neste link podem ser conferidos vídeos da escritora falando mais sobre o assunto.

PERSPECTIVA BRASILEIRA

Aqui no Brasil,  é importante ficarmos atentos ao fanatismo religioso infiltrado perigosamente nos governos, com tentativas de interferir nos costumes e de ver como bruxas subversivas as mulheres livres e fortes.

UNIDAS E VISÍVEIS

Termino este texto com a inspiração de um poema da escritora norte-americana Amanda Lovelace, no livro A bruxa não vai para a fogueira neste livro, um brado pela união das mulheres “fora do padrão”, as bruxas do século 21:

“as mulheres 

bem 

gordas, 

as mulheres velhas, 

as mulheres pobres, 

e as mulheres trans, 

as mulheres sapatas, 

as mulheres judaicas, 

e as mulheres negras, 

e as mulheres do islã, 

as mulheres inválidas, 

as mulheres indígenas, 

as mulheres doentes mentais, 

as mulheres doentes crônicas, 

as mulheres neurodivergentes, 

& todas as pessoas 

às margens

desta página. 

juntas & somente juntas 

iremos finalmente 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. SURGIR. 

SURGIR. 

– nenhuma de nós será deixada nos cantos escuros e empoeirados.

Voos Literários

Dani Espíndola: “Tanto fiz que deu poema”

Flávia Cunha
24 de outubro de 2020
EXISTÊNCIA?

A existência me negou dotes próprios 

Não pude ser ofertada 

Nem fui notada 

Precisei parir-me para ser alguém 

Quebrei cascas 

Troquei de peles 

Fui além. 

Convenci-me de que para algo haveria de servir 

Pois que para tudo há um propósito, alguém me disse 

E travestida de ilusões 

Pude então seguir. 

O texto acima é de autoria de Dani Espíndola e integra o recém-lançado e-book Tanto fiz que deu poema, lançamento independente que pode ser baixado gratuitamente. A escrita surgiu de forma intensa na vida da autora depois de ser diagnosticada com Covid-19, no início da quarentena no Brasil, como relatei na coluna Voos Literários em 15 de agosto de 2020.  No total, o livro tem 30 poemas, acompanhados de uma seleção de obras de arte que “conversam” com a escrita da autora. 

UM MERGULHO NA POESIA E NAS ARTES VISUAIS

No poema Existência?, por exemplo, a obra escolhida pela autora é Retrato de Maude Abrantes, do artista italiano (radicado na França) Amedeo Modigliani. Pois o quadro em questão é de 1908, porém só uns 100 anos depois é que especialistas descobriram que o pintor havia usado a mesma tela para, anteriormente, pintar uma mulher nua, de chapéu. O curioso é que Modigliani não apenas fez outro retrato por cima, ele virou a tela de cabeça para baixo. Como se quisesse, talvez, mudar seu ponto de vista a respeito daquela figura feminina, que se tornaria uma de suas obras mais famosas. Descobri essa curiosidade na pesquisa para escrever o post e não sei se Dani Espíndola sabia dessa história ao escolher justamente esta pintura do artista plástico.

Ao acabar a leitura do livro, concluo que este acaba sendo mais um mérito de Tanto fiz que deu poema. Além de nos ofertar (gratuitamente) poesia de qualidade, a autora ainda instiga o leitor a querer saber mais sobre o mundo das artes visuais, no jogo de procurar entender o nexo entre texto e imagem. 

O livro Tanto fiz que deu poema pode ser baixado aqui.

Imagem: Capa do livro/Divulgação

Voos Literários

Com mãe feminista eu não cresço machista

Flávia Cunha
17 de outubro de 2020

A frase do título desse texto pode ser vista em camisetas infantis compradas por mães esperançosas em não propagarem o machismo estrutural existente na nossa sociedade. “Com mãe feminista eu não cresço machista”  é um bordão necessário para evitar que, no futuro, homens com dinheiro e fama ajam como Robinho. O jogador, incomodado com a repercussão negativa da sua condenação por violência sexual na Itália, preferiu criticar quem luta pelo fim da cultura do estupro:

“Infelizmente, existe esse movimento feminista. Muitas mulheres às vezes não são nem mulheres, para falar o português claro, e se levantam contra. Eu sou casado, se eu sair na rua e uma mulher me chamar de lindo, tem uma conotação. Se eu mexer com você (entrevistadora) com falta de respeito, é totalmente diferente”, afirmou o jogador. (Leia  matéria completa aqui) 
CASO PERDIDO

Depois de ler essa entrevista, eu não vejo uma solução para que Robinho deixe de ser o homem machista que é, assim como todos aqueles que o defendem ou relativizam seu crime. O jogador terá é que se acertar com a justiça italiana e, lá, de nada adiantarão lamentos contra o feminismo. O que me interessa mesmo é pensar no futuro.

O FUTURO PRECISA SER FEMININO

Nenhuma criança, independente do sexo, nasce achando que mulheres são objetos e merecedoras de agressões. Porém, dependendo do ambiente em que meninos são criados, passam a pensar e agir de forma tóxica e machista. Por isso, é preciso que sejam educados para respeitar todas as mulheres, e não apenas suas mães e irmãs. É necessário mostrar que eles não serão donos dos corpos femininos. Eles precisam ser ensinados, de forma direta e clara, sobre o que é consentimento e o quanto o abuso sexual é um crime horrível (e não motivo para se gabar entre seus amigos homens.)

UTOPIA OU UMA REALIDADE POSSÍVEL?

Pode parecer utópico, mas eu acredito no fim do machismo. Considero que um dos meios para atingirmos um futuro com menos masculinidade tóxica é através da leitura de livros infantis adequados. Existem obras feministas com enredos que vão ensinar as crianças sobre igualdade e respeito. Obras que mostram meninas como protagonistas de suas existências e não apenas como princesas que ficam em torres aguardando a chegada de príncipes salvadores. E quando vejo Robinhos da vida esperneando contra o movimento feminista mais me convenço que entrelaçar feminismo e literatura infantil é uma necessidade.  

CANTINHO DA LEITURA

Além dos textos da coluna Voos Litérários, o podcast Cantinho da Leitura é outro espaço de luta contra o machismo. E é por isso que o segundo episódio, que será lançado em novembro, trará sugestões de leituras feministas para crianças. O projeto, que estreou em outubro, foi contemplado em um edital emergencial para os trabalhadores do setor cultural do Rio Grande do Sul, chamado FAC Digital. Vocês podem ouvir o primeiro episódio aqui e seguir o perfil do podcast no Spotify. 

USE PRIDA

As fotos que ilustram esse texto foram cedidas por mulheres que acreditam  que “as crianças serão a revolução”, conforme destaca Maisa Sabino, mãe de Armando, de 7 anos, de Ponte Nova (MG). “Só vamos quebrar o patriarcado, o machismo, o sexismo e a cultura de violência de gênero por meio da educação. Meu filho é livre para brincar do que quiser, por exemplo. Tendo essa infância diversa, ele já sabe respeitar as diferenças.  Ajuda na cozinha, nos afazeres da casa. E nem cobro, Armando faz questão, porque já está crescendo com isso enraizado nele”, conta Maisa.

Bruna de Bem, mãe do pequeno Leonel de Bem Unser, de 8 meses, de Novo Hamburgo (RS), comenta que é motivo de preocupação pensar em como criar um filho não machista em um sociedade machista. “Acredito que será nas pequenas coisas do dia que ele acabará aprendendo a respeitar as mulheres. E, também, por viver em um ambiente onde não existem atitudes sexistas”, avalia.

Armando e Leonel vestem a marca  autoral Use Prida.  As imagens são do acervo pessoal das entrevistadas, de 2019 (Armando) e 2020 (Leonel).

 

 

 

Voos Literários

Retratos da Leitura: crianças são boa surpresa

Flávia Cunha
10 de outubro de 2020

Já escrevi porque aqui como acredito na Literatura Infantil como um instrumento de mudança social. O raciocínio é simples: crianças estão em um processo natural de aprendizado do mundo. Se durante esse período de desenvolvimento forem apresentadas a livros estimulantes e sem estereótipos, aumenta a possibilidade de, no futuro, essas pessoas serem menos preconceituosas e mais empáticas, além de terem mais vocabulário e capacidade de interpretação de texto. Ou seja, só há vantagens para quem é leitor.  

AUMENTO DAS CRIANÇAS LEITORAS

E uma boa notícia é que a criançada parece mais predisposta a gostar de ler atualmente. Pelo `menos é que aponta a 5ª Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada recentemente. Entre diversos dados preocupantes e pouco otimistas revelados pelo estudo, destaca-se o aumento do número de crianças leitoras no país de 40%, em 2015 (data do levantamento anterior) para 48%, em 2019. Além disso, quando a pergunta é a motivação para ler, a faixa etária que mais lê “por gosto”, conforme a pesquisa, é a que vai dos 5 aos 10 anos (48%). Esses percentuais vão, infelizmente, diminuindo conforme a idade. De 11 a 13 anos fica em 33%, de 14 a 17 anos, cai para 24%, ficando em percentuais entre 22 e 25% entre os 25 e os 59 anos.

FALTA DE TEMPO?

Esta queda do número de leitores “por gosto” pode ser atribuída, claro, à dedicação de tempo a obrigações acadêmicas e profissionais, que vão crescendo naturalmente com o passar dos anos. Porém, se levarmos em consideração o uso da Internet, as crianças e adolescentes também surpreendem. São a faixa etária que mais usa esse recurso tecnológico para ler livros: dos 5 aos 10 (11%) e dos 11 aos 17 anos (13%). Dos 18 até os 70 anos de idade esse percentual não chega a 6% dos entrevistados. Confira a pesquisa completa aqui.

ENCANTAMENTO PELOS LIVROS

A partir dessa análise por faixa etária da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2020 , podemos perceber o quanto é necessário que nós adultos busquemos formas do encanto infantil pelos livros manter-se ao longo da vida. E esse, sem dúvida, é um dos objetivos do podcast Cantinho da Leitura, que será lançado pelo Vós, em breve, no dia 12 de outubro. 

Os episódios trarão dicas de livros infantis e formas de estimular os pequenos a gostarem de literatura. Além disso, serão escolhidos temas urgentes e necessários para serem abordados com as crianças, como feminismo, democracia e antirracismo. Na estreia, como falar sobre coronavírus e luto com as crianças em tempos de pandemia. A ancoragem é de Geórgia Santos, editora-chefe do Vós, e os comentários são da colunista aqui. O podcast foi idealizado pela F Cunha Produtora, em colaboração com o Vós.

FAC DIGITAL

A estreia do podcast Cantinho da Leitura foi contemplada pelo FAC Digital, da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS), em parceria com a Feevale e Feevale TechPark. 

#culturaessencial #facdigitalrs #feevale #feevaletechpark

Imagem: StockNap/Pixabay

Voos Literários

Mafalda, ícone feminista

Flávia Cunha
3 de outubro de 2020

Questionadora, crítica e interessada por política. Assim é a pequena Mafalda, criação do genial cartunista argentino Quino. Certamente, ela pode ser considerada uma personagem com comportamento feminista, ao subverter o papel tipicamente atribuído ao sexo feminino. Um exemplo disso é o fato dela pouco se interessa por distrações tradicionalmente associadas a meninas, como brincar de boneca. Também não pensa em no futuro casar ou ser dona de casa.  Ela é o oposto de Susanita, a amiga da mesma idade que tem uma postura mais conservadora e fútil.

FEMINISMO NOS ANOS 1960/70

Se observarmos apenas a temática de questionamento do papel da mulher na sociedade, a criação de Quino já chama a atenção. O mérito é ainda maior por todas essas discussões terem começado em 1964, em tirinhas publicadas em jornais argentinos. Em 1966, um golpe de Estado deu início a uma ditadura militar na Argentina, que durou até 1973, mesmo ano em que Quino decide encerrar as publicações de histórias inéditas. Sendo assim, é bastante corajoso que o cartunista tenha abordado, por meio da menina feminista, temas como democracia, liberdade e desigualdade social em pleno período de ditadura. Talvez para abrandar eventuais censuras, o autor fazia uso do humor e trazia à tona outros assuntos, como o amor de parte dos personagens pelos Beatles e o ódio mortal de Mafalda por sopa.


MAFALDA E OS DIREITOS HUMANOS

Mesmo sendo raros os materiais inéditos da personagem após 1973, ela permanece um sucesso mundial, com as obras já tendo sido traduzidas para mais de 30 idiomas. Um raro exemplo de conteúdo produzido depois disso são desenhos que acompanharam uma campanha da ONU de divulgação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1976. O material é bastante difícil de ser encontrado na íntegra e localizei apenas algumas imagens esparsas em pesquisas na Internet., como essa.

NOVO LIVRO COM ABORDAGEM FEMINISTA

Ao longo dos anos, diversas coletâneas foram lançadas, inclusive no Brasil, onde os livros da personagem foram publicados pela primeira vez em 1982. Em breve, será lançada por aqui uma obra contendo somente tirinhas com conteúdo feminista. Em espanhol, a publicação dessa obra ocorreu no ano passado. O livro Mafalda: Feminino Singular, será lançado em dezembro de 2020, pela editora Martins e Fontes. Sem dúvida, uma boa notícia para os fãs de Quino e de sua criação mais famosa.

Esse texto é uma singela homenagem ao cartunista Quino, falecido nessa semana. Em 2017, a coluna Voos Literários também mencionou outros aspectos a respeito da personagem Mafalda.

Imagem: Contracapa livro Mafalda: Femenino Singular/Editora Lúmen