Voos Literários

Maratona literária, uma forma de fugir da dureza dos dias atuais

Flávia Cunha
27 de julho de 2021

Maratona literária, vocês conhecem? Em tempos de Olimpíadas, resolvi falar sobre essa modalidade nada esportiva mas que encanta os apaixonados por literatura.  Para quem ainda não entendeu do que se trata, classifico como “maratonar um livro” a ação de começar e terminar a leitura da obra no mesmo dia. Sabem como é? Ficar grudado naquela história, sem conseguir parar até descobrir o final.

Por motivos de Brasil da pandemia, fazia muito tempo que não conseguia fazer uma maratona literária. Infelizmente, imagino não estar sozinha na falta de foco e concentração. Afinal, aos nossos problemas pessoais somam-se milhares de mortos, atraso na vacinação e a péssima gestão de Jair Bolsonaro no poder.

Jogos Olímpicos como evasão da realidade

Atualmente, outra alternativa muito usada para fugir um pouco da realidade são os Jogos Olímpicos. Por decisão consciente ou não, parte da população brasileira tem direcionado a atenção aos feitos de atletas, muitos deles de modalidades pouco aclamadas fora de eventos de proporção mundial. 

Porém, para mim, os jogos olímpicos não servem como evasão, pois o “fantasma” da política parece contaminar tudo. “Os atletas do vôlei são ou não bolsonaristas?” “Medina perdeu mas mereceu, pois tem até foto com o filho do Bozo!” “Vocês viram o deputado que defendeu trabalho infantil depois da vitória da Rayssa no skate?”

Uma fuga saudável 

Sendo assim, prefiro fugir mesmo de conexões com a dureza dos dias atuais, nem que seja por alguns momentos. Para esse distanciamento terapêutico da realidade, recomendo um bom livro de ficção. A sugestão é encontrar um estilo literário que prenda sua atenção o suficiente para não pensar qual será a próxima medida desastrosa do governo Bolsonaro. 

Advertência

No entanto, caro leitor, a recomendação é fazer uso de maratonas literárias com moderação. Pois a vontade de morar dentro dos livros e, não na realidade brasileira, pode ser irremediável. Por isso, o que precisamos é usar desse recurso para recarregar as baterias e seguir em frente, com a saúde mental em dia. Para, assim, permanecer com força e vontade de seguir lutando, seja da maneira que for. 

Livros que usei  para “fugir” do Brasil 2021

Jardim de Inverno, Zélia Gattai – Acompanhar as histórias de viagem de Jorge Amado e Zélia Gattai, o casal literário mais fofo da história brasileira, é uma fuga muito prazerosa. O estilo narrativo de Zélia é único, fazendo os leitores entenderem, com simplicidade, o contexto difícil do exílio, sem deixar de lado a intimidade em família, repleta de momentos engraçados.

Controle, Natalia Borges Polesso – A obra trata sobre uma história de amor entre duas mulheres, que se conheceram ainda na adolescência. Nanda, a protagonista, é apaixonada por New Order e as citações à banda inglesa encaixam-se ao enredo de forma muito natural.  A premiada Natalia Borges Polesso é, sem dúvida, uma das mais expressivas e talentosas escritoras da atualidade.

Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, Taylor Jenkins Reid – O romance é sobre um ícone fictício de Hollywood que, ao final da vida, resolve chamar uma jornalista para finalmente revelar sua turbulenta trajetória, iniciada nos anos 1950. Mas o livro é muito mais do que isso. É sobre poder, objetificação feminina, relacionamentos homoafetivos, amor e perdas. Da minha experiência como leitora, confesso que devorei as 360 páginas em poucas horas, na noite passada. E, por isso, resolvi escrever este texto.   

Imagem: Thought Catalog/Pixabay

 

Voos Literários

Hidra de Lerna, esquemas de corrupção e a CPI da Pandemia

Flávia Cunha
19 de julho de 2021

 

O que a Hidra de Lerna tem a ver com a CPI da Pandemia? Muita coisa, de acordo com o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O senador comparou o monstro mitológico aos múltiplos esquemas de superfaturamento de vacinas investigados pela CPI. Recordando a lenda, Randolfe explicou que a Hidra tinha muitas cabeças que, ao serem cortadas, regeneravam-se. Ou seja, quanto mais a investigação avança, mais indícios de corrupção aparecem, em diferentes “tentáculos”.

A Lenda

Nos dias atuais, a Hidra é mais lembrada por fazer parte da lenda dos 12 Trabalhos de Hércules (ou Héracles, para os gregos). O herói mitológico teve como segundo desafio matar o monstro com corpo de dragão e múltiplas cabeças de serpente – uma delas imortal. Para alcançar esse objetivo, ele usou de astúcia. Depois de cortar cada cabeça, cauterizava o local da ferida, impedindo sua regeneração. Já a cabeça imortal foi cortada e enterrada. Em cima, Hércules colocou uma grande pedra. De acordo com análises psicanalíticas, a cabeça imortal da Hidra representa os vícios humanos. Estes, mesmo controlados, ainda estão vivos e precisam ser vigiados. Se pensarmos na comparação recente, nada mais é recorrente (e imortal) que a corrupção brasileira. Presente em solo brasileiro desde antes do Brasil República, é insistentemente combatida e ressurge, igual a uma Fênix, outro ser mitológico.

Mais comparações com o Brasil 2021

Mas me permitam prosseguir nas comparações mitológicas. De acordo com versões mais consagradas, a Hidra de Lerna tinha três irmãos. Um deles era o cão Cérbero, guardião do portal do Inferno. Sua função era impedir a saída de quem tentasse fugir daquele lugar de sofrimento. Tal qual Jair Bolsonaro e sua equipe, que fizeram de tudo para dificultar o início da vacinação contra Covid no Brasil, postergando um cenário com milhares de mortes diárias. 

Outro irmão da Hidra era o cão Ortro, que tinha como função vigiar o rebanho de gado do gigante Gerião. Pois coube novamente a Hércules a tarefa de libertar o gado. Hoje, é de todos nós a missão de tentar esclarecer o “gado” bolsonarista, ainda apegado a um governo incompetente e corrupto.

O monstro da incoerência

Para completar esta família mitológica, vamos falar da terceira irmã da Hidra: Quimera. Este monstro é muitas vezes representado com corpo de leão, cabeça de cabra e cauda de dragão. Sua estranha aparência leva a um de seus significados mais usuais, o da incoerência. E nada mais incoerente do que os argumentos do presidente da República para refutar as inúmeras denúncias de irregularidades envolvendo seu governo.

Sem heróis

Por fim, é imprescindível que deixemos os heróis para as lendas mitológicas. Ninguém no Brasil 2021 deve esperar um Hércules para matar a Hidra de Lerna metafórica e outros monstros da má política. Precisamos mesmo é de conscientização e luta  por mudanças estruturais na sociedade. Estas, só virão com muita pressão e consciência de classe. E sempre é bom lembrar que, certamente, Bolsonaro nada tem de mito, como já abordei nesse texto.

Para ir além

Aos interessados em aprofundar o conhecimento sobre mitologia, sugiro duas leituras: Mitologia grega, de Pierre Grimal, e A sabedoria dos mitos gregos, de Luc Ferry.

Imagem: Pinterest/Reprodução



   

 

 

Voos Literários

Motociatas, o conservadorismo brasileiro sobre rodas

Flávia Cunha
13 de julho de 2021

Motociatas parecem ser o fenômeno bolsonarista de 2021. Já é a quinta vez que o presidente sem partido Jair Bolsonaro usa desse recurso: a convocação de integrantes de motoclubes para passeios exibicionistas. No último final de semana, a motociata foi realizada em Porto Alegre, cidade de onde escrevo esse texto. E, talvez pela proximidade geográfica com tamanha estupidez,  esta manifestação sobre rodas me entristeceu mais do que as outras.

Pensando de forma racional, a adesão ao ato em apoio a Bolsonaro foi ínfima, se comparada a manifestações de repúdio ao presidente. Porém, a verdade é que depois de tantas denúncias de irregularidades na condução da pandemia, parece um contrassenso que ainda existam pessoas demonstrando apoio a este governo. E por quê motociclistas estariam dispostos a isso?

O histórico do motoqueiro rebelde

Para começo de conversa, os apoiadores de Bolsonaro pertencem a associações, os chamados motoclubes. Esses grupos estabeleceram-se com mais força no Brasil em 1980 e 1990, muitas décadas depois de o motociclismo ter se consolidado nos Estados Unidos. Porém, foi a ficção a responsável por reforçar, no imaginário popular, a figura do motociclista como um rebelde em busca de liberdade e de uma vida fora dos padrões. Além disso, alguns episódios de violência também contribuíram para marginalizar o movimento. Olhando a superfície, parece não haver uma relação entre quem usa a moto como um estilo de vida e o bolsonarismo, tão imbuído de conservadorismo e falsa moral.

Masculinidade hegemônica

Mas, ao pesquisarmos o comportamento da maioria dos integrantes dos motoclubes brasileiros, passamos a entender melhor a existência das motociatas pró-Bolsonaro. No livro Isso é coisa pra macho – Masculinidades e Encontros Motociclísticos, o mestre em Antropologia Social Kleber Lopes da Silva reflete sobre os modelos conservadores presentes nos motoclubes mais tradicionais, citados em seu texto como “M.C.”:

“Estes modelos abarcam em sua essência comportamentos que ditam o conservador e o tradicional pautados em uma masculindade heteronormativa, a valorização de atributos socialmente reconhecidos como masculinos, como a racionalidade, a virilidade e mesmo a violência, são performatizados o tempo todo, base conceitual para composição dos M.C. tradicionais e para a maioria dos encontros de motociclistas. Os semblantes fechados, os braços cruzados, sempre em pé com olhares desconfiados, fazem parte dos comportamentos, principalmente, dos integrantes dos M.C. tradicionais que frequentam os encontros.” 

Bolsonarismo e Fascismo

Além disso, não podemos deixar de destacar o simbolismo fascista do uso de motos em manifestações políticas. Sem dúvida, o mais famoso ícone do conservadorismo sobre rodas é Benito Mussolini. Dentro dessa perspectiva, um livro que nos ajuda a entender esta relação é A linguagem fascista, de Carlos Piovezani e Emilio Gentile. Na obra, são comparados os discursos de Mussolini e Bolsonaro, contextualizados aos cenários políticos da Itália e do Brasil, com a devida perspectiva histórica.

 Já o livro Bolsonarismo: teoria e prática, organizado por Carlos Savio Teixeira e Geraldo Tadeu Monteiro, destaca a relação entre Bolsonaro e Donald Trump. Vale lembrar que o ex-presidente norte-americano contou com o apoio de motociclistas conservadores desde sua posse.

Motoboys antifascistas

Por fim, é importante assinalar a diferença entre os motociclistas apoiadores de Bolsonaro e os motoboys. Ao contrário de quem usa motos de luxo para passeio, os trabalhadores são, em sua maioria, contrários ao governo. Já abordamos o tema nesta coluna aqui

Para demonstrar essa diferença de alinhamento ideológico, uma ação alternativa foi realizada em Porto Alegre durante o ato pró-Bolsonaro. Motofretistas distribuíram refeições e arrecadaram cestas básicas, ajudando quem passa dificuldades durante a pandemia. Enquanto isso, o presidente transitiva pela capital gaúcha com seus apoiadores sem um objetivo específico, apenas parecendo celebrar os milhares de mortos pela covid-19.

Imagem: Isac Nóbrega/Fotos Públicas

Voos Literários

Gil do Vigor e a subversão necessária

Flávia Cunha
21 de junho de 2021

Gil do Vigor, ex-participante do reality Big Brother, virou um caso de sucesso no meio editorial brasileiro. Recentemente, o livro lançado pelo economista ficou na lista dos mais vendidos da Amazon Brasil. O fato provocou a alegria dos fãs e a ira de alguns intelectuais. 

Mas por que há ressentimento de parte da elite intelectual brasileira?

Para começar, o livro foi lançado em tempo recorde, pouco depois de Gilberto Nogueira sair do programa. e consagrar-se com o apelido Gil do Vigor. Sendo assim, o conteúdo da biografia seria raso ou escrito por um ghost writer enquanto o nordestino estava no ar na TV Globo. Apesar dessas ponderações me parecerem pertinentes, o êxito das vendas pode ser a verdadeira razão para criar um certo despeito dos críticos.

Porém, me pergunto se não seria o caso de apenas ficarmos felizes por tamanho interesse em um livro em um país reconhecidamente com baixos índices de leitura. De qualquer forma, Tem que vigorar despertou minha curiosidade e resolvi ler a biografia em questão.

Gil do Vigor – o livro

A obra é curta, com 128 páginas, com muitas fotos da infância e adolescência de Gilberto e sua família. Também conta com imagens de um ensaio fotográfico realizado especialmente para a publicação. No que se refere ao conteúdo, a linguagem é simples e direta, como era de se esperar de uma biografia destinada ao grande público.

Apesar dessa aparente superficialidade, há uma subversão permeando todo o conteúdo do livro. Isso porque o biografado tem uma trajetória que suscita a admiração dos libertários e pode despertar incômodo nos conservadores. Gil – negro, gay, religioso, nordestino e com uma infância miserável – conseguiu superar as adversidades através da educação. Mesmo com a fama instantânea conquistada após a participação no reality show, segue focado no projeto de fazer um doutorado nos Estados Unidos. Além disso, assumiu sua homossexualidade em rede nacional e permanece com sua crença cristã, defendendo que as religiões acolham pessoas LGBTQIA+.

Para completar os aspectos positivos que encontrei durante a leitura, há temas complexos abordados, com menções à economia, psicologia, política e saúde mental. Um dos trechos mais sensíveis diz respeito ao relacionamento de Gil com seu pai, um ex-dependente químico que agrediu sua mãe e transformou a vida familiar em um ambiente muito difícil para todos. O relato não esconde o ressentimento e a mágoa, mas há a ponderação necessária de que o vício em drogas é um problema de saúde pública e assim deve ser tratado. 

Posicionamento político

E se ainda restava alguma dúvida que um defensor da educação e da ciência seria contrário ao atual governo, confiram a explicação para o bordão “O Brasil tá lascado”:

  1. Encrencado; 2. País precisando de ajuda; 3. No programa, quando falei com a Lumena, era em relação à realidade do Brasil mesmo. Economia, educação, arte, esporte… Numa crise como a que vivemos, cortam verba justamente da educação. E isso é um absurdo, vira um poço sem fundo. Os recursos do país são escassos e, sem administração competente, a gente pode dizer que “o Brasil tá lascado”; 4. É um período de crise, um período complicado. Para sair da era lascada, temos que ter uma liderança firme, competente, centrada na ciência, em valores democráticos e no desenvolvimento sustentável. “

Por isso, se você está em uma busca de uma leitura leve para tentar superar o obscurantismo e o luto coletivo do Brasil da pandemia, essa pode ser uma boa opção. Mas fique à vontade para odiar a futilidade de um livro escrito por um ex-Big Brother. Só não vale criticar sem ler, pois daí é apenas preconceito literário.  

Imagens: Fanpage Gil do Vigor/ Reprodução

Voos Literários

Dia dos Namorados: prova de amor ou consumismo?

Flávia Cunha
12 de junho de 2021

O Dia dos Namorados como data comercial é uma criação publicitária de grande sucesso, desde 1949. Naquele ano, o pai do governador de São Paulo, João Dória, foi o responsável pelo lançamento de uma campanha para aumentar as vendas em junho. Então, produziu o slogan  “Não é só com beijos que se prova o amor”. Pelo jeito, era um publicitário que entendia mesmo de estratégias de consumo, já que até hoje, em pleno 2021 da pandemia, a comemoração segue firme e forte.

Agora, sejamos justos. Não há nada de errado em termos um dia especial para celebrar todas as formas de amar. Particularmente, acho louvável quando as marcas fazem campanhas que buscam combater preconceitos, mostrando, por exemplo, casais LGBTs. negros  e interraciais.

Dia dos Namorados é um problema?

Porém, a lógica capitalista embutida por trás da celebração nem sempre é conscientemente percebida pelo público. Afinal, somos bombardeados, por todos os lados, com anúncios que visam incentivar o consumo acima de tudo. Além disso, às vezes a falta de um presente considerado adequado pode gerar brigas. Provavelmente, porque a publicidade massiva contribui para uma expectativa grande em relação à demonstração de amor. Ganhou um anel de brilhantes? Amor eterno. O parceiro não lembrou nem da data? Relacionamento falido.

Mentes consumistas

No entanto, a verdade é que relações amorosas são muito mais complexas do que uma mera troca de presentes. Por isso, é perverso vincular amor a consumo, mas esta é a essência da sociedade capitalista na qual vivemos.  Quem tiver interesse em buscar uma visão mais crítica sobre o assunto, sugiro a leitura da obra Mentes Consumistas, escrito pela psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva.  A autora destaca a dualidade entre ser e ter: 

“Na sociedade consumista, o modo ser de existir é desestimulado de todas as maneiras, pois ser não demanda consumo nem a obtenção de lucro. Uma pessoa satisfeita com sua aparência, com seu ofício, com seus afetos e seus valores éticos não necessita consumir (de forma abusiva e/ou compulsiva) cosméticos, cirurgias plásticas, […]  Numa sociedade como a nossa, aprendemos, desde muito cedo, a paixão pelo ter; a competitividade que faz do colega um inimigo em potencial; o egoísmo que leva ao querer ter de forma exclusivista; a não partilhar; a não se importar… Enfim, a ser quase nada, mas com uma “embalagem” de ser humano amável, equilibrado, sorridente e muito produtivo. Viver essa dualidade constante entre o ser e o ter, mesmo que de forma inconsciente, contraria o próprio código genético da espécie humana, pois, como seres sociais, somos totalmente dependentes das nossas relações interpessoais para nos desenvolvermos como indivíduos e como espécie.”
Partilhar momentos e afetos

Sendo assim, considero que o mais importante é celebrar o Dia dos Namorados (e todos os outros dias do ano) partilhando afeto e momentos especiais com a parceria de vida. Além disso, não é necessário ser especialista em finanças para dizer que, caso o orçamento doméstico esteja apertado, não há necessidade de endividar-se para impressionar ou agradar o cônjuge. No entanto, se tem um dinheiro disponível para isso, pense onde comprar. Optar pelo comércio local e por pequenos empreendedores é uma forma consciente de consumo, hoje e sempre. Além disso, se puder distribuir afeto para mais gente, existem diversas iniciativas ajudando a quem precisa nesse triste momento de crise econômica e sanitária no país.  Até porque,  como garante Ana Beatriz Barbosa Silva, a solidariedade é inerente aos seres humanos, basta nos desprendermos dos valores capitalistas (e consumistas):

“[…] a cultura do ter, dominante em nossa sociedade consumista, influencia de maneira intensa e persuasiva nossa inteligência para que sejamos capazes de “tapear” a nossa natureza solidária, a fim de nos tornarmos peças eficientes em manter o sistema econômico vigente em pleno funcionamento. Com nossa inteligência “entorpecida”, vamos quase que roboticamente nos tornando consumidores contumazes, insaciáveis e com sentimento constante de ansiedade e insatisfação.”

Para quem busca opções de consumo consciente e com viés antifascista ainda para o Dia dos Namorados e em outras datas, uma boa sugestão é a página Esquerda Compra da Esquerda. Surgido em 2020, o grupo privado de vendas no Facebook já conta com mais de 164 mil membros. 

Imagem: Wichai Bopatay/Pixabay

Voos Literários

Quatro livros para refletir sobre o vexame de Juliana Paes

Flávia Cunha
6 de junho de 2021

Juliana Paes está entre os assuntos mais comentados dos últimos dias, ao postar um vídeo para rebater críticas por sua defesa à médica Nise Yamaguchi. Após a repercussão negativa da gravação, com muitas críticas e alguns famosos voltando atrás na defesa à atriz,  o tiro parece ter saído pela culatra. Mas o que podemos aprender com o vexame de Juliana Paes?   

Em uma gravação com pouco mais de cinco minutos de duração, a atriz destila um festival de falsas simetrias, ignorância política e argumentos vazios. A defesa falaciosa de não ter um posicionamento político é feita sob o argumento de não ser “bolsominion”. Em seguida, Juliana Paes garante não apoiar “os ideais arrogantes de extrema direita nem os delírios comunistas da extrema esquerda”. Também cita querer – sem dizer como – mais empatia entre as mulheres, uma máquina pública enxuta e Estado democrático. Além disso, faz uma estranha relação entre neutralidade e maturidade, sem justificativas que pudessem embasar o acerto da falta de posicionamento.

Empatia entre mulheres

Ao citar a sororidade entre seus ideais para um futuro melhor para o Brasil, a atriz parece ter dois alvos específicos. Primeiro, uma indireta à Samantha Schmütz, a colega de profissão a quem direciona o vídeo, sem citar o nome. Também poderia ser uma explicação por defender a médica Nise Yamaguchi, conhecida pelo apelido Doutora Cloroquina, de supostos ataques machistas durante a CPI da Pandemia. Porém, é sempre bom recordar que Juliana Paes não teve a mesma atitude solidária em relação a mulheres de esquerda que são agredidas com comentários misóginos, como a ex-presidente Dilma Rousseff. E mesmo dizendo-se isenta, a atriz compareceu abertamente a manifestações pró-impeachment de Dilma. Mesmo afirmando ser neutra, já deu entrevista dizendo ser contrária a excessos do feminismo. Sendo assim, a “empatia entre mulheres” desejada por Juliana parece mais um discurso sem embasamento do que algo realmente almejado. 

Para quem não quer cair nos mesmos erros da atriz, recomendo a leitura da obra Sororidade: quando a mulher ajuda outra mulher, escrito pela jornalista Paula Roschel. No livro, o conceito apresentado vai além da solidariedade e respeito entre mulheres. De acordo com a autora, a sororidade, ao ser posta em prática, resultaria na luta por equidade de direitos sociais, políticos e econômicos. Coisas que a atriz já declarou ser contrária: “Existe uma linha do feminismo com a qual eu não concordo muito. Acho errado esse desejo de igualdade com os homens a todo custo.”

Os delírios comunistas

Voltando ao vídeo polêmico, ao mencionar “os delírios comunistas da extrema esquerda”, a atriz propaga desinformação disfarçada de discurso isentão. Além da extrema esquerda não ter a força política apontada por ela, a ameaça comunista é um fantasma antigo. Juliana – e uma parcela de brasileiros que concorda com ela – precisa ir além das fake news. Para isso, é necessário conhecer fatos históricos, como o Plano Cohen. O documento, que continha um suposto plano para a tomada do poder por comunistas, foi forjado por Getúlio Vargas, em 1937. Como hoje se sabe, o objetivo de Vargas  com essa farsa era implementar um regime autoritário. Para saber mais detalhes sobre essa fraude, leiam a obra A ameaça vermelha: o Plano Cohen, de Hélio Silva. 

Porque repercutiu tanto

Além de irmos em busca de conhecimento sobre o passado brasileiro, precisamos estar conectados ao presente. E se você aí é do time que torce o nariz para influenciadores digitais e celebridades do meio artístico, saiba que é importante nos informarmos a respeito deste fenômeno de comunicação. Apesar de Juliana Paes não ser uma influencer surgida nas redes sociais, tem quase 30 milhões de seguidores apenas no Instagram, onde postou o vídeo que virou notícia. Justamente por seu poder de influência foi criticada por Samantha Schmütz, que tem procurado demonstrar como os famosos podem ajudar a pressionar por mais vacinas e também incentivar, quem puder, a ficar em casa.

Para entender melhor esse fenômeno, nada melhor do que uma fonte segura de informação. É o caso do livro De blogueira a influenciadora, de Issaaf Karhawi. Esta obra, resultado de uma pesquisa de quatro anos feita na Universidade de São Paulo, é a primeira no país sobre a profissão digital.

Efeitos da pós-modernidade?

Aos leitores que seguem avessos a redes sociais ou reviram os olhos para influencers, acreditando ser um efeito colateral do século 21, saibam que o culto aos famosos não é nada recente. É o que comprova o livro A invenção da celebridade (1750-1850). Na obra, o francês Antoine Lilti desvenda como era a fama vivida por personalidades históricas como Maria Antonieta, Napoleão Bonaparte, o filósofo Voltaire e o compositor Franz Liszt.

Sem neutralidade

Para além do caso específico da atriz Juliana Paes, o episódio demonstra o quanto a ignorância política é uma realidade assustadora no Brasil. Por isso, precisamos seguir batalhando para evitar a isenção dos abastados e a alienação dos mais pobres. 

“Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor.”

Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz de 1984 

Imagem: Instagram/Reprodução

Voos Literários

A grande mídia e os protestos contra Bolsonaro

Flávia Cunha
31 de maio de 2021

A grande mídia enfrenta, há algum tempo, uma crise de credibilidade perante uma parcela da sociedade brasileira. Enquanto isso, a maioria desses jornalistas insiste em tentativas frustradas de manter uma isenção falaciosa diante de fatos que possam denunciar posições políticas ou ideológicas. Porém, a verdade é que essa atitude pouco tem contribuído para mudar a opinião de espectadores de diferentes espectros políticos a respeito da atuação da imprensa.  E, ao conferir o noticiário a respeito dos protestos contra o governo Jair Bolsonaro no último sábado, a suposta isenção jornalística ficou gritante para mim.

Grande mídia isentona

Um exemplo assisti ao vivo na Globonews. Na emissora do grupo Globo, um jornalista, em tom de voz monótono, narrava as manifestações que foram realizadas em diversas cidades brasileiras. De forma protocolar, o repórter observava apenas se os manifestantes tinham ou não feito aglomerações. Depois, ressaltou que usavam máscaras, em sua maioria. Porém, o motivo dos protestos – a falta de vacinas para a população durante uma pandemia e um auxílio emergencial mais consistente do que o valor atual – não renderam observações mais elaboradas, comentários ou reportagens adicionais.

A escolha pela omissão

Mais grave ainda é o caso dos jornais O Globo e O Estado de São Paulo. Em uma escolha editorial para lá de questionável, decidiram não noticiar os protestos contra o governo nas capas de suas edições dominicais. Nas redes sociais, o episódio foi comparado à atitude da Rede Globo, na década de 1980, ao tentar ocultar dos telespectadores as manifestações pelas Diretas Já.  A diferença, no século 21, é de que com a instantaneidade da Internet é muito mais difícil esconder informações do público, passando a ser uma decisão ainda mais arriscada em termos jornalísticos.

Não precisa ser militante

Não estou aqui dizendo que os jornalistas dos veículos tradicionais de comunicação deveriam usar camisetas escritas “Fora Bolsonaro” ou serem claramente militantes em protestos. Porém, este é um momento histórico no qual a imprensa brasileira é massacrada por um presidente da República, Além disso, esta atitude lamentável conta com o apoio irrestrito de seus seguidores. Por isso, talvez seja a hora de usar as técnicas de jornalismo a favor do esclarecimento de fatos. Não é preciso declarar ser contrário a Bolsonaro. Mas demonstrar, através da verdade, os absurdos de um governo irresponsável. 

Existem acertos na grande mídia

Acompanhando a cobertura televisiva, dos grandes portais e da imprensa hegemônica a respeito do noticiário político em tempos de pandemia, não observo apenas erros. A Folha de São Paulo, por exemplo, colocou como manchete as manifestações, destacando a grande adesão em todo o Brasil. Porém, de uma forma em geral, em se tratando de atos promovidos por movimentos sociais e partidos de esquerda, seria urgente que os grandes veículos da imprensa dessem o braço a torcer e noticiassem essas manifestações de forma ampla. 

 No fim das contas, a minha crítica não é dirigida aos colegas de profissão. Pois a verdade é que existe um sistema consolidado de interesses comerciais e políticos na grande mídia, assim como em praticamente todas as empresas de grande porte. Contudo, algo precisa ser feito para alterar essas estruturas, pela sobrevivência do bom jornalismo.  

Uma nova ética é necessária

Nesse sentido, concordo com a visão do professor de Comunicação e jornalista Bernardo Kucinski no livro Jornalismo na era virtual – Ensaios sobre o colapso da razão éticaNo capítulo Uma nova ética para uma nova era, ele relata um incidente ocorrido durante a aula de um curso de pós-graduação. Quando comentou sobre a necessidade de ética jornalística na rotina das grandes redações, teve uma surpresa. Imediatamente, foi rechaçado pelos alunos, profissionais formados há cerca de 10 anos e atuantes no mercado:

“O mote geral era que eu estava exigindo posturas irreais, que em todas as redações o jornalista tem que fazer o que o patrão manda e o que a publicidade manda. E choveram relatos pessoais de incidentes de supressão de matérias, de opiniões, de trechos de pautas. […] Era a revolta de toda uma categoria contra a exigência de uma ética. Perguntei a eles: qual a diferença entre um médico que mata e um jornalista que mente? Ofendidos,  não responderam.”

Uma mudança de atitude 

Kucinski prossegue descrevendo o debate com seus alunos e conta que estes argumentaram precisarem ser jornalistas deixando, muito vezes, a ética de lado:

“Por necessidade de sobrevivência não sendo deles a culpa, e sim do sistema. […] Disse [a eles] […] que era um equívoco pensarem que a violência intelectual que cada um deles sofria no dia a dia das redações não teriam consequências de longo prazo.” 

Código de Ética

É sempre importante lembrar da existência do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. No capítulo 2, o artigo de número 6 destaca, como um dos deveres da profissão:

“opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.”

Por isso, defender a vacinação em massa contra a covid-19 e os protestos que exigem essa medida de saúde pública para os brasileiros deveria ser um dever de todo o jornalista. 

#forabolsonaro #vacinaçãojá  

Imagem: Ricardo Stuckert / Site Imagens Públicas

Voos Literários

Rir é um ato de resistência (Parte 2)

Flávia Cunha
24 de maio de 2021

Prosseguindo na homenagem ao humorista Paulo Gustavo, que dizia que “rir é um ato de resistência”, hoje abordaremos o humor político da Era Vargas até os dias atuais. Nesse sentido, é bom esclarecer que é completamente de gosto pessoal esta seleção de três profissionais para destacar em um período cronológico tão vasto. Porém, encontro nessa escolha pelo menos um fator em comum: a subversão. Isso, claro, no melhor sentido deste termo, pois são pessoas que não se deixaram submeter à normas e regras de autoridades com perfis ditatoriais.

Um humorista contra Vargas

Dentro da História do Brasil,  sempre é importante lembrar que não somente de fardas e hierarquias militares se fizeram ditaduras. Entre 1930 e 1945, o civil Getúlio Vargas manteve-se no poder de forma autoritária. Nesse período, um de seus grandes opositores foi um humorista que resolveu se autodenominar nobre. O Barão de Itararé, um dos heterônimos do jornalista e escritor Apparício Torelly (1895-1971), era um aberto opositor do governo Vargas. Pelas suas atividades na imprensa, chegou a ser preso em 1932 e 1935. 

No jornal A Manha, um semanário carioca de sátira política, costumava se referir ao ditador como G. Túlio Vargas, criando histórias fictícias e cheias de ironia a respeito deste personagem. Um exemplo está na imagem ao lado, da capa de 9 de março de 1933, retirada da dissertação de mestrado Um nobre bufão no reino da grande imprensa, de autoria de Rodrigo Jacobus. 

Além de sua postura crítica perante a ditadura de Vargas, Apparício Torelly também promoveu campanhas antifascistas no periódico, mostrando que o humor político de qualidade sabe muito bem de qual lado do espectro político deve estar posicionado, independente do período histórico.  Após o fim da ditadura de Vargas e a posterior anistia política, que o beneficiou, comentou:

“A anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram.”
O humor político no combate à ditadura

Dentre todos os humoristas contrários à ditadura militar brasileira, escolhi o cartunista e escritor Henfil (1944-1988).  Começando a atuar profissionalmente em 1964, Henrique de Souza Filho ficou conhecido como um dos maiores inimigos do regime militar. Entre 1969 e 1970, essa posição fica mais evidente, em suas contribuições para O Pasquim e a revista Fradim.  Um exemplo do humor deste cartunista genial está na tirinha ao lado. Os personagens são crianças contando a profissão paterna, até chegarmos no último relato do primeiro quadrinho. Ali, a criança fala que seu pai trabalha como censor. A reação infantil de medo diz muito sobre o período de torturas e perseguições a artistas e jornalistas ocorridas naquela época.

Ainda muito lembrado nos dias atuais,  um dos trabalhos de Henfil que teve releituras realizadas recentemente é a série de cartuns que ficou conhecida como O Cemitério dos Mortos Vivos. Nestes quadrinhos, havia o enterro simbólico de personalidades consideradas por Henfil como apoiadoras da ditadura. 

Para quem quiser saber mais sobre o pensamento deste cartunista, em 1984, ele concedeu uma entrevista que virou o livro Como se faz humor político, relançado pela editora Kuarup. 

Rir é um ato de resistência (ainda hoje)

Não é à toa que destaco a cartunista Laerte Coutinho como representante da oposição ao governo Bolsonaro. Além de ser uma das quadrinistas mais reconhecidas em atividade no Brasil, seu trabalho é claramente político. Para completar, contribuiu, com material inédito, para a exposição Orgulho e Resistências, um recorte sobre a luta LGBT durante a ditadura militar. É sempre relevante enfatizar que, nessa tentativa atual de controle conservador por parte de uma figura autoritária – ainda que eleita por via democrática -, há uma perseguição à diversidade sexual e de gênero. Por isso, o engajamento da cartunista Laerte à luta LGBTQIA+ também é um ato politico de resistência nos tempos cinzentos no quais vivemos. 

 Para quem quiser conferir uma coletânea inédita do trabalho da cartunista, Manual do Minotauro está em pré-venda

O humor nos permite prosseguir

Em meio à uma crise política e sanitária sem precedentes, precisamos encontrar forças para continuar na luta, cada um à sua maneira. Outro humorista que recomendo é José Simão, que costumava dizer que o Brasil era o país da piada pronta. Recentemente, em sua conta no Twitter,  escreveu que “o Brasil virou o país da mentira pronta”.

É rir para não chorar.  De raiva.

Imagens: Reproduções/Internet

 

 

 

 

 

 

Voos Literários

Rir é um ato de resistência (desde sempre)

Flávia Cunha
17 de maio de 2021

O humorista Paulo Gustavo, recentemente falecido, disse em uma das suas últimas participações na televisão que “rir é um ato de resistência”. E como estamos precisando do riso no Brasil da pandemia, já que enfrentamos o luto coletivo e crescente das vítimas do coronavírus enquanto assistimos à CPI da Covid, que mostra a incompetência criminosa de um governo pouco preocupado com a vida da população. 

Junto às vítimas da pandemia, ainda precisamos lidar com perdas de personalidades relevantes no meio cultural, como a atriz Eva Wilma. Ela faleceu em decorrência de um câncer, mas nossas mentes cansadas da morte contabilizam tudo junto., em uma percepção generalizada de que 2021 é um ano muito desafiador para quem tem dentro si sensibilidade e humanidade.  

Neste contexto desolador, talvez pareça mau gosto falar em riso e humor. Porém, como bem lembrou Paulo Gustavo, rir é um ato de resistência, além de ser necessário para a nossa saúde mental. Sendo assim, é bom enfatizar o quanto o humor pode ser transgressor e incomodar quem está no poder. Afinal, quem já não viu bolsonaristas revoltados com alguma piada envolvendo seu “mito’? Historicamente, o recurso de usar o humor como uma forma de contestação política está presente no Brasil desde antes de o país ser uma república.

A resistência abolicionista

É o caso do trabalho de Angelo Agostini (1843-1910), considerado um dos precursores do humor político no país ainda no final do século XIX, Este italiano radicado em São Paulo e depois no Rio de Janeiro começou a atuar na imprensa brasileira em 1864. Era  um profissional bastante completo, sendo caricaturista e um dos inventores das histórias em quadrinhos, ao mesmo tempo em que era repórter e editor. Aliado a isso, foi militante político e um grande crítico do império e da escravidão.

Um exemplo de desenho de Agostini está ao lado, “A grande degringolada”, foi publicado na Revista Illustrada, do Rio, em 1885. Na legenda, um alerta: “Quando o país se resolver a quebrar os ferros e gritar liberdade!”. A caricatura é um apoio explícito à necessária revolta de negros e indígenas ao regime político opressor daquele época.  Para quem quiser saber mais detalhes da vida e obra desse pioneiro da caricatura no Brasil, a sugestão é o livro Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864 0 1888), de Marcelo Balaban.

A primeira mulher caricaturista

No início do Brasil República, uma mulher chamava a atenção por seu jeito controverso para seu tempo. Dentre suas ousadias, estava a de criar caricaturas e conseguir com que fossem publicadas no Brasil e Europa. Nair de Teffé (1886 – 1981), filha do famoso Barão de Teffé, é tida por muitos historiadores como a primeira mulher caricaturista do mundo. Assinando seus desenhos como Rian, seu nome ao contrário, teve seus trabalhos incluídos em revistas como O Malho, Fon-Fon, Le Rire e Excelsior.

Entrou de vez para o mundo da política ao casar com o então presidente Hermes da Fonseca, em 1913. O casamento não a impediu de seguir com suas caricaturas. Seus desenhos provocavam o pavor das senhoras da alta sociedade, que temiam o traço humorístico e satírico empregado por Nair. Dentre os políticos retratados pela caricaturista, estão Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fidel Castro e Ruy Barbosa. Este último foi um declarado inimigo de Nair, um conservador que achava desprezível uma primeira-dama que tocava, ao violão, músicas de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete. Os interessados em conhecer melhor a trajetória dessa mulher incrível podem ler a obra Nair de Teffé: Artista do Lápis e do Riso.  de Maria de Fátima Hanaque Campos. 

No próximo post, o humor político que criticou a Era Vargas, a ditadura militar e que prossegue no século 21.

Imagem:  Angelo Agostini – A Pátria repele os escravocratas/ Revista Ilustrada

Voos Literários

Paulo Gustavo, presente!

Flávia Cunha
10 de maio de 2021

A morte do humorista Paulo Gustavo contribuiu para entristecer ainda mais o já doloroso luto coletivo vivenciado há mais de 1 ano no Brasil. Ao morrer, aos 42 anos, de uma doença para a qual já existe vacina, Paulo Gustavo se tornou um símbolo do absurdo da pandemia brasileira. Ao não resistir a complicações da covid-19, sua perda também gera um alerta aos ainda negacionistas: o de que não é preciso ter comorbidades ou ser idoso para estar em risco. Sua perda pode ser, ainda, um necessário aviso aos mais ricos, que muitas vezes se acham imunes ao coronavírus, por terem garantido o acesso a atendimento hospitalar. 

Após a comoção gerada por sua morte, uma das perguntas que ficam é se o ator ainda estaria vivo caso tivesse sido vacinado. Para este questionamento, não há resposta. Mas, certamente, milhares de vidas teriam sido poupadas se a ação do governo  federal frente à pandemia fosse diferente. O próprio humorista, em suas redes sociais, lamentou diversas vezes a falta de vacinas para a população brasileira.

Luta contra o preconceito

Depois da imensa repercussão nacional e internacional da perda de Paulo Gustavo, precisamos agora reverenciar seus legados. Entre eles, a contribuição à luta contra o preconceito através de seu trabalho. É o caso de Dona Hermínia, seu personagem mais famoso. O fato de ser um ator abertamente homossexual vestindo-se de mulher para dar vida a uma mãe poderia provocar revolta entre os mais conservadores. Contrariando essa expectativa, Dona Hermínia foi um sucesso de público tanto no cinema como nos palcos. 

Humor político

Além disso, o comediante criou personagens com camadas de crítica social, mostrando que o humor de qualidade tem por característica ser político.

É o caso da esquete Senhora dos Absurdos, do programa 220 Volts. Nesse quadro, o ator mostrava o ridículo da elite carioca (e brasileira), de forma caricatural mas extremamente real. 

Atuação beneficente sem alardes

Afora seu legado artístico, Paulo Gustavo também deixa como inspiração a atuação beneficente. Fez a doação de oxigênio para hospitais em Manaus e destinou recursos para diversos projetos filantrópicos. Também ajudou financeiramente muitos colegas de profissão impactados pela pandemia. Uma comprovação, na prática, de que ser da elite econômica não significa ser egoísta ou alienado da realidade.

Paulo Gustavo em livro

Infelizmente, a incursão do ator no mundo dos livros é breve. Publicou, em 2015, Minha mãe é uma peça,  com histórias inéditas de Dona Hermínia. Na obra, a personagem dá suas opiniões ácidas sobre assuntos variados, que vão de religião a sexo. Dentre os projetos não concluídos pelo comediante, estava o de lançar um livro sobre sua trajetória. O amigo Giovanni Bianco, diretor de videoclipes de estrelas como Madonna e Anitta, promete levar a proposta adiante, como uma forma de homenagear o humorista. 

O riso como resistência

Prosseguindo as homenagens a Paulo Gustavo, que dizia que “rir é um ato de resistência”, a coluna Voos Literários vai fazer um resgate do humor político brasileiro. Serão duas postagens relembrando escritores, cartunistas e comediantes que incomodaram os poderosos da política nacional, em diferentes períodos históricos.     

Imagens: TV Globo e Multishow / Reprodução