Voos Literários

Rir é um ato de resistência (Parte 2)

Flávia Cunha
24 de maio de 2021

Prosseguindo na homenagem ao humorista Paulo Gustavo, que dizia que “rir é um ato de resistência”, hoje abordaremos o humor político da Era Vargas até os dias atuais. Nesse sentido, é bom esclarecer que é completamente de gosto pessoal esta seleção de três profissionais para destacar em um período cronológico tão vasto. Porém, encontro nessa escolha pelo menos um fator em comum: a subversão. Isso, claro, no melhor sentido deste termo, pois são pessoas que não se deixaram submeter à normas e regras de autoridades com perfis ditatoriais.

Um humorista contra Vargas

Dentro da História do Brasil,  sempre é importante lembrar que não somente de fardas e hierarquias militares se fizeram ditaduras. Entre 1930 e 1945, o civil Getúlio Vargas manteve-se no poder de forma autoritária. Nesse período, um de seus grandes opositores foi um humorista que resolveu se autodenominar nobre. O Barão de Itararé, um dos heterônimos do jornalista e escritor Apparício Torelly (1895-1971), era um aberto opositor do governo Vargas. Pelas suas atividades na imprensa, chegou a ser preso em 1932 e 1935. 

No jornal A Manha, um semanário carioca de sátira política, costumava se referir ao ditador como G. Túlio Vargas, criando histórias fictícias e cheias de ironia a respeito deste personagem. Um exemplo está na imagem ao lado, da capa de 9 de março de 1933, retirada da dissertação de mestrado Um nobre bufão no reino da grande imprensa, de autoria de Rodrigo Jacobus. 

Além de sua postura crítica perante a ditadura de Vargas, Apparício Torelly também promoveu campanhas antifascistas no periódico, mostrando que o humor político de qualidade sabe muito bem de qual lado do espectro político deve estar posicionado, independente do período histórico.  Após o fim da ditadura de Vargas e a posterior anistia política, que o beneficiou, comentou:

“A anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram.”
O humor político no combate à ditadura

Dentre todos os humoristas contrários à ditadura militar brasileira, escolhi o cartunista e escritor Henfil (1944-1988).  Começando a atuar profissionalmente em 1964, Henrique de Souza Filho ficou conhecido como um dos maiores inimigos do regime militar. Entre 1969 e 1970, essa posição fica mais evidente, em suas contribuições para O Pasquim e a revista Fradim.  Um exemplo do humor deste cartunista genial está na tirinha ao lado. Os personagens são crianças contando a profissão paterna, até chegarmos no último relato do primeiro quadrinho. Ali, a criança fala que seu pai trabalha como censor. A reação infantil de medo diz muito sobre o período de torturas e perseguições a artistas e jornalistas ocorridas naquela época.

Ainda muito lembrado nos dias atuais,  um dos trabalhos de Henfil que teve releituras realizadas recentemente é a série de cartuns que ficou conhecida como O Cemitério dos Mortos Vivos. Nestes quadrinhos, havia o enterro simbólico de personalidades consideradas por Henfil como apoiadoras da ditadura. 

Para quem quiser saber mais sobre o pensamento deste cartunista, em 1984, ele concedeu uma entrevista que virou o livro Como se faz humor político, relançado pela editora Kuarup. 

Rir é um ato de resistência (ainda hoje)

Não é à toa que destaco a cartunista Laerte Coutinho como representante da oposição ao governo Bolsonaro. Além de ser uma das quadrinistas mais reconhecidas em atividade no Brasil, seu trabalho é claramente político. Para completar, contribuiu, com material inédito, para a exposição Orgulho e Resistências, um recorte sobre a luta LGBT durante a ditadura militar. É sempre relevante enfatizar que, nessa tentativa atual de controle conservador por parte de uma figura autoritária – ainda que eleita por via democrática -, há uma perseguição à diversidade sexual e de gênero. Por isso, o engajamento da cartunista Laerte à luta LGBTQIA+ também é um ato politico de resistência nos tempos cinzentos no quais vivemos. 

 Para quem quiser conferir uma coletânea inédita do trabalho da cartunista, Manual do Minotauro está em pré-venda

O humor nos permite prosseguir

Em meio à uma crise política e sanitária sem precedentes, precisamos encontrar forças para continuar na luta, cada um à sua maneira. Outro humorista que recomendo é José Simão, que costumava dizer que o Brasil era o país da piada pronta. Recentemente, em sua conta no Twitter,  escreveu que “o Brasil virou o país da mentira pronta”.

É rir para não chorar.  De raiva.

Imagens: Reproduções/Internet

 

 

 

 

 

 

Voos Literários

Rir é um ato de resistência (desde sempre)

Flávia Cunha
17 de maio de 2021

O humorista Paulo Gustavo, recentemente falecido, disse em uma das suas últimas participações na televisão que “rir é um ato de resistência”. E como estamos precisando do riso no Brasil da pandemia, já que enfrentamos o luto coletivo e crescente das vítimas do coronavírus enquanto assistimos à CPI da Covid, que mostra a incompetência criminosa de um governo pouco preocupado com a vida da população. 

Junto às vítimas da pandemia, ainda precisamos lidar com perdas de personalidades relevantes no meio cultural, como a atriz Eva Wilma. Ela faleceu em decorrência de um câncer, mas nossas mentes cansadas da morte contabilizam tudo junto., em uma percepção generalizada de que 2021 é um ano muito desafiador para quem tem dentro si sensibilidade e humanidade.  

Neste contexto desolador, talvez pareça mau gosto falar em riso e humor. Porém, como bem lembrou Paulo Gustavo, rir é um ato de resistência, além de ser necessário para a nossa saúde mental. Sendo assim, é bom enfatizar o quanto o humor pode ser transgressor e incomodar quem está no poder. Afinal, quem já não viu bolsonaristas revoltados com alguma piada envolvendo seu “mito’? Historicamente, o recurso de usar o humor como uma forma de contestação política está presente no Brasil desde antes de o país ser uma república.

A resistência abolicionista

É o caso do trabalho de Angelo Agostini (1843-1910), considerado um dos precursores do humor político no país ainda no final do século XIX, Este italiano radicado em São Paulo e depois no Rio de Janeiro começou a atuar na imprensa brasileira em 1864. Era  um profissional bastante completo, sendo caricaturista e um dos inventores das histórias em quadrinhos, ao mesmo tempo em que era repórter e editor. Aliado a isso, foi militante político e um grande crítico do império e da escravidão.

Um exemplo de desenho de Agostini está ao lado, “A grande degringolada”, foi publicado na Revista Illustrada, do Rio, em 1885. Na legenda, um alerta: “Quando o país se resolver a quebrar os ferros e gritar liberdade!”. A caricatura é um apoio explícito à necessária revolta de negros e indígenas ao regime político opressor daquele época.  Para quem quiser saber mais detalhes da vida e obra desse pioneiro da caricatura no Brasil, a sugestão é o livro Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864 0 1888), de Marcelo Balaban.

A primeira mulher caricaturista

No início do Brasil República, uma mulher chamava a atenção por seu jeito controverso para seu tempo. Dentre suas ousadias, estava a de criar caricaturas e conseguir com que fossem publicadas no Brasil e Europa. Nair de Teffé (1886 – 1981), filha do famoso Barão de Teffé, é tida por muitos historiadores como a primeira mulher caricaturista do mundo. Assinando seus desenhos como Rian, seu nome ao contrário, teve seus trabalhos incluídos em revistas como O Malho, Fon-Fon, Le Rire e Excelsior.

Entrou de vez para o mundo da política ao casar com o então presidente Hermes da Fonseca, em 1913. O casamento não a impediu de seguir com suas caricaturas. Seus desenhos provocavam o pavor das senhoras da alta sociedade, que temiam o traço humorístico e satírico empregado por Nair. Dentre os políticos retratados pela caricaturista, estão Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fidel Castro e Ruy Barbosa. Este último foi um declarado inimigo de Nair, um conservador que achava desprezível uma primeira-dama que tocava, ao violão, músicas de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete. Os interessados em conhecer melhor a trajetória dessa mulher incrível podem ler a obra Nair de Teffé: Artista do Lápis e do Riso.  de Maria de Fátima Hanaque Campos. 

No próximo post, o humor político que criticou a Era Vargas, a ditadura militar e que prossegue no século 21.

Imagem:  Angelo Agostini – A Pátria repele os escravocratas/ Revista Ilustrada

Voos Literários

Paulo Gustavo, presente!

Flávia Cunha
10 de maio de 2021

A morte do humorista Paulo Gustavo contribuiu para entristecer ainda mais o já doloroso luto coletivo vivenciado há mais de 1 ano no Brasil. Ao morrer, aos 42 anos, de uma doença para a qual já existe vacina, Paulo Gustavo se tornou um símbolo do absurdo da pandemia brasileira. Ao não resistir a complicações da covid-19, sua perda também gera um alerta aos ainda negacionistas: o de que não é preciso ter comorbidades ou ser idoso para estar em risco. Sua perda pode ser, ainda, um necessário aviso aos mais ricos, que muitas vezes se acham imunes ao coronavírus, por terem garantido o acesso a atendimento hospitalar. 

Após a comoção gerada por sua morte, uma das perguntas que ficam é se o ator ainda estaria vivo caso tivesse sido vacinado. Para este questionamento, não há resposta. Mas, certamente, milhares de vidas teriam sido poupadas se a ação do governo  federal frente à pandemia fosse diferente. O próprio humorista, em suas redes sociais, lamentou diversas vezes a falta de vacinas para a população brasileira.

Luta contra o preconceito

Depois da imensa repercussão nacional e internacional da perda de Paulo Gustavo, precisamos agora reverenciar seus legados. Entre eles, a contribuição à luta contra o preconceito através de seu trabalho. É o caso de Dona Hermínia, seu personagem mais famoso. O fato de ser um ator abertamente homossexual vestindo-se de mulher para dar vida a uma mãe poderia provocar revolta entre os mais conservadores. Contrariando essa expectativa, Dona Hermínia foi um sucesso de público tanto no cinema como nos palcos. 

Humor político

Além disso, o comediante criou personagens com camadas de crítica social, mostrando que o humor de qualidade tem por característica ser político.

É o caso da esquete Senhora dos Absurdos, do programa 220 Volts. Nesse quadro, o ator mostrava o ridículo da elite carioca (e brasileira), de forma caricatural mas extremamente real. 

Atuação beneficente sem alardes

Afora seu legado artístico, Paulo Gustavo também deixa como inspiração a atuação beneficente. Fez a doação de oxigênio para hospitais em Manaus e destinou recursos para diversos projetos filantrópicos. Também ajudou financeiramente muitos colegas de profissão impactados pela pandemia. Uma comprovação, na prática, de que ser da elite econômica não significa ser egoísta ou alienado da realidade.

Paulo Gustavo em livro

Infelizmente, a incursão do ator no mundo dos livros é breve. Publicou, em 2015, Minha mãe é uma peça,  com histórias inéditas de Dona Hermínia. Na obra, a personagem dá suas opiniões ácidas sobre assuntos variados, que vão de religião a sexo. Dentre os projetos não concluídos pelo comediante, estava o de lançar um livro sobre sua trajetória. O amigo Giovanni Bianco, diretor de videoclipes de estrelas como Madonna e Anitta, promete levar a proposta adiante, como uma forma de homenagear o humorista. 

O riso como resistência

Prosseguindo as homenagens a Paulo Gustavo, que dizia que “rir é um ato de resistência”, a coluna Voos Literários vai fazer um resgate do humor político brasileiro. Serão duas postagens relembrando escritores, cartunistas e comediantes que incomodaram os poderosos da política nacional, em diferentes períodos históricos.     

Imagens: TV Globo e Multishow / Reprodução