Pedro Henrique Gomes

Crítica – Até o Último Homem

Pedro Henrique Gomes
24 de fevereiro de 2017

Desmond Doss (Andrew Garfield), jovem do interior dos Estados Unidos, das profundezas da tradição. Sua fé o move indistintamente; na guerra (a Segunda Grande Guerra), decerto cegamente. Um purgatório terreno, real, cruel e violento, tudo isso o jovem assume para si, toma como missão. Cristão de ordem adventista (lembremos, apenas de passagem, que os Adventistas do Sétimo Dia, como é o caso do protagonista do filme de Mel Gibson, são esperançosos pelo advento de Cristo, que então retornaria), portanto protestante de seiva conservadora, Doss vai à guerra para salvar, não para matar. Ele não quer ser ímpio. Não pega em armas, se recusa desde o treinamento e acaba servindo como médico após uma guerra interna com o Exército do seu próprio país (seus superiores tentaram de tudo para impedir que fosse ao campo de batalha). Vai ao front para prover assistência médica, como diz o título do filme, Até o Último Homem.

Boa parte do filme se passa nesses momentos que antecedem o combate e o espetáculo edificante e bárbaro do indivíduo redentor, material que abunda sua metade final. Em geral são ruins e existem, grosso modo, para fornecer os motivos que reforçaram a fé de Doss (como se precisasse). Quando jovem, ele feriu gravemente o irmão após uma briga que, incentivada pelo pai, parecia fazer parte da educação dos meninos. Agressivo e alcoolista, o pai de Doss feria a todos, a ele, ao irmão e principalmente a mãe. História de redenção, trama de sacrifício: Mel Gibson não acha necessário, no entanto, se desculpar por seus motivos políticos, morais, religiosos e estéticos. Os clichês, internamente assimilados, se articulam simplesmente para que sua composição tome o efeito desejado: que nossos corpos se percebam paralisados ao final da sessão – se de amor ou ódio, pouco importa. Que muitos espectadores questionem os motivos ridículos de sua fé, isso ele conscientemente ignora, o que serve bem ao seu filme ao mesmo tempo em que o afasta de uma percepção mais complexa de sua abordagem. Mas ele não quer ir tão longe para não errar.

Até o Último Homem expõe a contradição, cinematográfica por excelência, da pureza da fé de seu protagonista com a sujeira do sangue que transborda do campo de batalha – e que Mel Gibson filma com despudor. Fé, como todas, que comporta uma contradição diante da qual o crente precisa se rebater para mantê-la. No caso de Doss, como fazer parte da guerra não fazendo?

Diferentemente de um Clint, vide Sniper Americano, o filme de Gibson é refratário de uma análise mais dura sobre o herói que filma, parece aceitar com muito mais facilidade e languidez a síntese que propõe. Isso se deve, talvez, ao fato de Gibson estar muito mais aferrado ao seu sistema de crenças do que Clint, o segundo mais cético e radical quanto à representação do “herói”, que também enfrenta dilemas morais de ordem patriótica e religiosa (só que, em Sniper, se mata para salvar). Questão imanente de fé.

Neste contexto, na Batalha de Okinawa, aos olhos de todos os personagens americanos do filme (com uma exceção importante e fundamental, a saber, o próprio Doss), é claro que os japoneses são monstros inferiores, nutridos apenas pela ânsia de matar. O americano bom, este não: Doss salva inclusive alguns soldados inimigos no front. Sua fé é acima de tudo universal. Todos os outros combatentes veem os japoneses como insetos, mas Doss não os menciona desse modo, sequer os menciona. Este é, portanto, o artifício que desencadeia a divergência. Doss é incapaz de odiar o inimigo, todos os outros querem vê-los dilacerados. Como pode um homem não querer matar enquanto seus colegas se sacrificam pela pátria? Gibson responde mostrando que seu personagem central está inspirado por Deus e, assim sendo, ele irá triunfar. Como? O que ele consegue, de fato, é salvar o fracasso de todos os demais.

Hacksaw Ridge, de Mel Gibson, EUA, 2016. Com Andrew Garfield, Vince Vaughn, Teresa Palmer, Sam Worthington, Hugo Weaving, Luke Bracey.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Toni Erdmann

Pedro Henrique Gomes
17 de fevereiro de 2017

Por Pedro Henrique Gomes

Winfried (Peter Simonischek) resolve ir visitar a filha Ines (Sandra Hüller), que há anos deixou a Alemanha para ir trabalhar na Romênia. A sua empresa é responsável pela consultoria de risco de imagem de grandes companhias que resolvem tomar decisões impopulares (demissões em larga escala, como é o caso do filme). Ela precisa construir um arcabouço mais ou menos justificável para as demissões que irão se seguir a terceirização de serviços. Ao chegar lá, Winfried, como Bartebly, resolver negar esse mundo. Acha melhor não. Utilizando nomes falsos, dentadura e peruca, ele cria histórias para conseguir penetrar no mundo da filha (e se chocar contra ele), fazê-la questionar. Mas já adiantamos, a sagacidade do filme consiste em compreender perfeitamente que as escolhas de Ines são absolutamente conscientes.

Antes de ser uma comédia, Toni Erdmann tem momentos de humor que irrompem o drama e proclamam uma independência dentro da narrativa dramática maior (e mais fundamental): a práxis que se evidencia na relação do pai com a filha. O pai é um performer crítico, supostamente consciente de sua objetividade social, homem que conhece a natureza e a sociedade, que aprendeu a deslizar pela complexidade do sistema cultural que habita sua filha (e, claro, ele também), mas que não pensa em transformar outro mundo que não seja o seu: o da experiência cotidiana, da vida, de suas emoções diárias.

Esse personagem e essa relação dão o pontapé inicial no conflito de um ser com outro, um desafio nem tanto de conscientização, mas de re-conhecimento. Do quê? Do sujeito que o trabalho, tal como posto e levado a cabo, busca constantemente anular, deixar aos pedaços, reduzido em si mesmo e separado daquilo que lhe pode fortalecer. Isto, claro, como a mão, é uma estratégia invisível.

“Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia”

É lógico, no entanto, que Ade reconhece a ingenuidade daquilo que coloca em cena, isto é, da caricatura que cria do universo das finanças, haja vista o franco deboche que ela deixa vazar das reuniões de negócios, dos coquetéis de luxo, independentemente da presença do pai, o que clarifica que ele não é o centro do humor (todos vimos a cena da masturbação sobre os quitutes no hotel e a mais larga duração da sequência da festa no apartamento) do filme e, consequentemente, que o próprio humor não é aleatório, mas objetivo.

Tal qual um elemento detonador de certo terrorismo cultural, o humor faz intervenções que são antes de tudo desafios de encenação, ao que parece ser a mais potente obsessão de Maren Ade a se revelar agora: colocar na cena um conflito e então tencioná-lo, pelo exagero cômico, até o seu limite. Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia. Não há desespero, mas conflito, contradição. Sua filha vive o mundo das pessoas comuns, o mundo real, que é também o nosso. Um mundo que chamam de superficial, mas que é, em verdade, bem real e violento. As finanças, o marketing, a política internacional mediada pelas grandes corporações, nada disso é arbitrário no filme.

A financeirização engendrada pelo capitalismo globalizado mobiliza uma estética própria que a pureza não conseguiria alcançar (vide Costa Gavras, Ken Loach, Sérgio Bianchi e o time de cineastas críticos do sistema), pois prefere moralizar, esquematizar e se resguardar de todo o mal. Ade, ao contrário, se livra dos puros. Resolve deixar seu filme acontecer muito mais do que em todos os seus anteriores. Ela combina com absoluta inteligência cenas de genuína entrega emocional (onde o humor participa: vejam a cena em que Ines canta para algumas dezenas de desconhecidos em uma festa na qual ela entrou, com o pai, de surpresa) com momentos de exemplar dureza (a apresentação de um projeto para um cliente importantíssimo para a sua empresa).

Dividida entre o tempo em que trabalha e o tempo em que pensa no trabalho, Ines compreende os motivos da visita de seu pai desde o início, embora, ao final, mesmo senhora de sua consciência, sua vida seguirá. Ela sorri, chora e depois segue em frente. Real politik.

Toni Erdmann, de Maren Ade, Alemanha, 2016. Com Sandra Hüller, Peter Simonischek, Michael Wittenborn, Thomas Loibl, Lucy Russell, Hadewych Minis, Vlad Ivanov.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O que está por vir

Pedro Henrique Gomes
10 de fevereiro de 2017
Divulgação

É sensível o grau de essencialidade que o cinema de Mia Hansen-Love vai assumindo. E não estamos pensando aqui na ideia de progressividade da obra, inclusive pois seu filme anterior, Éden (2014), é talvez o seu mais estridente – e por isso o seu pior. Pensamos na capacidade argumentativa de sua mise en scène. O que está por vir acerta, com um golpe mais certeiro do que o desferido em seus filmes anteriores, o desenlace de sua trama.

Enquanto seus outros filmes (Adeus, Primeiro Amor) parecem deixar os acontecimentos contarem a si mesmos de uma forma muito pouco orgânica, aqui se apresenta mais sóbrio. Os exageros de retórica travados pelos seus personagens, que volta e meia insistem em infantilizar a sua elegância, não lhe tiram lá tanta força, pois o filme vence a polarização. Suas personagens estão sempre debatendo, argumentando, e a cineasta muito habilmente evita a adesão a um corpo pronto de ideias. Seu filme é político, evidentemente, mas o é em função de seu arranjo narrativo e não em virtude de qualquer conteúdo ou discurso.

Uma sinopse bastante simples diria que uma professora de filosofia, interpretada por Isabelle Huppert (seguramente a mais poderosa de todas as atrizes em atividade), passa por uma série de crises íntimas, familiares, profissionais e intelectuais. Ela tenta seguir em frente confrontando cada uma com maturidade, embora com certo desnorteamento diante das situações.

Ela prefere, como boa filósofa, o confronto ético e estético ao político, isto é, abre caminho para que a imagem confesse o seu sentido de acordo com as circunstâncias dadas. Isso fica mais evidente nas cenas em que os estudantes discutem os motivos de uma interrupção das aulas para fortalecer um grupo de protesto contra aquilo que parece ser a reforma da previdência francesa (que fora iniciada pelo “conservador” Sarkozy e depois chancelada, com modificações, pelo “socialista” Hollande). Há quem queira protestar e há quem queira estudar. Discute-se a democracia (que é a vontade da maioria, diz um estudante) e logo depois temos a professora dando uma aula sobre o Contrato Social de Rousseau. Ela tem um ex-aluno anarquista que escreveu um livro sobre a Mínima Moralia de Adorno. Seu marido, também professor, não é senão um conservador de alta estirpe, embebido em receios e ponderações – ele é um formalista: não existe forma que não expresse a sua ideologia.

Para esta amarração, a pergunta: é possível se colocar no lugar do outro? Questão elementar para a relação espectador-filme, a interrogação que aparece logo no início demanda esse esforço de ambos. Em meio aos infortúnios que vão se impondo para a professora (aquilo que iria lhes salvar, isto é, a revolução, não veio a galope, deixando em seu lugar a melancolia e certa desolação; a perda de sua mãe, o marido que a deixou, a editora que sempre a publicou passa a negar os seus projetos e a alterar outros para torná-los mais comerciais), resta então desembaçar a vista para seguir em frente.

Confira o trailer do filme

O que está por vir (L’avenir) de Mia Hansen-Love, França, 2016. Com Isabelle Huppert, André Marcon, Roman Kolinka.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu, Daniel Blake

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2017
Eu, Daniel Blake (divulgação)

Por Pedro Henrique Gomes

Daniel Blake sofreu um ataque cardíaco. Segundo recomendações de seus médicos, está impossibilitado de trabalhar. Ele entra com um pedido de auxílio financeiro, que lhe é devido, junto ao órgão de Seguridade Social inglês, mas tem seu pedido negado: o Estado alega que ele está em condições de trabalho. Tenta recurso, desiste, encontra com as dificuldades impostas pela falta de dinheiro, conhece pessoas em situações semelhantes, ajuda como pode.

Eu, Daniel Blake, o novo filme de Ken Loach, Palma de Ouro no último Festival de Cannes, pretende que o espectador se indigne diante das dificuldades impostas pelo Estado para que um cidadão consiga ter direito a um benefício previdenciário básico.

Loach é daqueles cineastas que não abre mão do estilo e da determinação de sua militância. De suas imagens, a tradição do espírito operário resplandece. A mira, no entanto, nem sempre acerta o alvo. A sua agenda política (que em linhas gerais são justíssimas e compreensíveis) coloca seus filmes dentro de uma norma que ele próprio não consegue transpor para além de certo engessamento narrativo. Seus filmes, mesmos os melhores (Os Ferroviários, de 2002, por exemplo), travam na unilateralidade de suas observações, destituindo-nos daquele mistério contraditório e das tensões que propõem os grandes filmes baseados no “realismo social”.

Loach condena o cinema hollywoodiano (este dos grandes espetáculos) por seus esquemas estéticos e políticos, todavia permite que seus filmes se embriaguem em um nível de chantagem emocional estranho para um cineasta do seu timbre. Eu, Daniel Blake não foge ao riscado.

Ainda que engessado, ainda que repleto de atalhos discursivos e adaptações absurdamente pesadas para passar a mensagem necessária, Eu, Daniel Blake dá indícios, logo em seu início, de que Loach tentará olhar a complexidade do mundo (mesmo que seja do mundo em que ele se insere, ideologicamente falando) sem suas certezas habituais que resultam num enquadramento sociológico severamente limitado.

Que numa modernidade capitalista as individualidades sejam alçadas a um patamar primordial, que a competitividade do mercado e o alargamento dos espaços privados sobre os públicos sejam sintomas, que o Estado burocratizado em consórcio pútrido com o mercado seja um convite ao abandono dos populares, isto parece sensato dizer – e a obra de Loach nos diz.

Mas o filme não precisa necessariamente que o espectador compartilhe de suas crenças, pois nada muda: o seu prato já vem servido e não podemos acrescentar temperos. Resta observar a degradação humanitária da qual seu filme provavelmente se alimentará. A burocracia vence, derrotando a esperança. Há como reerguê-la?

Pedro Henrique Gomes

2016: os 11 melhores filmes do ano

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2017
Carol (divulgação) Carol (divulgação)

Por Pedro Henrique Gomes

Virada de ano religiosamente publico uma lista com os melhores filmes que vi. São 11, do goleiro ao atacante. Como é a primeira lista desta coluna, explico sumariamente o critério adotado: filmes que entraram no circuito de exibição a partir do primeiro dia do ano. O primeiro lugar deixei para Carol, esse filme grandioso do Todd Haynes. Nele, tudo é tão insólito que sem dúvida é real (Oh, Piglia!).

Sem muitos desdobramentos, eis os meus filmes favoritos de 2016:

1 – Carol, de Todd Haynes (EUA, 2015)

2 – Cemitério do Esplendor, de Apichatpong Weerasethakul (Tailândia, 2015)

3 – Elle, de Paul Verhoeven (França, 2016)

4 – Creepy, de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 2016)

5 – A Assassina, de Hou Hsiao-Hsien (China, 2015)

6 – Sinfonia da Necrópole, Juliana Rojas (Brasil, 2014)

7 – Sangue do Meu Sangue, de Marco Bellocchio (Itália, 2015)

8 – Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira (Brasil, 2014)

9 – Sully – O Heroi do Rio Hudson, de Clint Eastwood (EUA, 2016)

10 – Certo Agora, Errado Antes, Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2015)

11 – A Vizinhança do Tigre, Affonso Uchoa (Brasil, 2014)

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Duas vezes Bellocchio

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2017

O cinema sempre demonstrou dificuldades para filmar as realidades sociais. São poucos os cineastas ou movimentos que conseguiram compor um retrato capaz de alargar, para a realidade da câmera (que é uma realidade completamente diversa), as tensões que circulam na sociedade. A tarefa não é fácil e não se pode condenar os aventureiros. Pensador sofisticado, Bellocchio se serve bem neste terreno quando decide nele caminhar.

Entre os contemporâneos, é nome raro ao combinar um criterioso pensamento político, isto é, dos modos de ver as tensões sociais, com um delicado olhar histórico, isto é, no seu caso, uma observação sobre as tradições culturais (religiosas, por onde se deve entender católicas) e a sua relação com o nosso tempo. Sua obra recente o faz ora com mais liberdade poética (Vincere, 2009), ora seguindo os ordenamentos mais estritos da cena política italiana de seu tempo (Bom Dia, Noite, 2003, A Bela que Dorme, 2012).

Seus dois filmes mais recentes mantêm a escrita. Belos Sonhos e Sangue do Meu Sangue, ambos em cartaz até poucas semanas, viajam no tempo, para lá e para cá, para que suas histórias criem sentidos variados. O tempo flui exíguo na trama dos filmes, ciente de sua função transformadora. Essas passagens possibilitam uma reconfiguração, no presente, das percepções sobre os acontecimentos do passado. É impressionante como Bellocchio consegue equilibrar estes tempos e, ao fechá-los e fazê-los confluir, destacar o que interessa: as confissões. É o que está guardado, adormecido, subterrâneo, aquilo que se pretende lançar ao mundo novamente.

Cineasta livre de tudo o que não contribui ao seu trabalho, ao tratamento visual que pretende dar a cada imagem, ele nos faz lembrar, com Belos Sonhos, do seu primeiro longa-metragem, De Punhos Cerrados (1965).

Nos dois filmes, há uma sensação de instabilidade permanente que irrompe da tela e nos atinge com violência. O drama de seus personagens, além da relação com a mãe, parte da necessidade de encontrar a razão das coisas: da política, da religião, da cultura, da cidade, da família, de se adequar, de pertencer.

No entanto, nunca temos uma resposta simplificadora. É preciso confrontar as imagens. Bellocchio realiza o cinema politicamente. Um cinema feito politicamente é um cinema despojado de mensagens como recurso primordial. É um cinema que parte da imagem para dar sentido ao mundo. Neste domínio temos aqui em expoente.