Pedro Henrique Gomes

Crítica – Toni Erdmann

Pedro Henrique Gomes
17 de fevereiro de 2017

Por Pedro Henrique Gomes

Winfried (Peter Simonischek) resolve ir visitar a filha Ines (Sandra Hüller), que há anos deixou a Alemanha para ir trabalhar na Romênia. A sua empresa é responsável pela consultoria de risco de imagem de grandes companhias que resolvem tomar decisões impopulares (demissões em larga escala, como é o caso do filme). Ela precisa construir um arcabouço mais ou menos justificável para as demissões que irão se seguir a terceirização de serviços. Ao chegar lá, Winfried, como Bartebly, resolver negar esse mundo. Acha melhor não. Utilizando nomes falsos, dentadura e peruca, ele cria histórias para conseguir penetrar no mundo da filha (e se chocar contra ele), fazê-la questionar. Mas já adiantamos, a sagacidade do filme consiste em compreender perfeitamente que as escolhas de Ines são absolutamente conscientes.

Antes de ser uma comédia, Toni Erdmann tem momentos de humor que irrompem o drama e proclamam uma independência dentro da narrativa dramática maior (e mais fundamental): a práxis que se evidencia na relação do pai com a filha. O pai é um performer crítico, supostamente consciente de sua objetividade social, homem que conhece a natureza e a sociedade, que aprendeu a deslizar pela complexidade do sistema cultural que habita sua filha (e, claro, ele também), mas que não pensa em transformar outro mundo que não seja o seu: o da experiência cotidiana, da vida, de suas emoções diárias.

Esse personagem e essa relação dão o pontapé inicial no conflito de um ser com outro, um desafio nem tanto de conscientização, mas de re-conhecimento. Do quê? Do sujeito que o trabalho, tal como posto e levado a cabo, busca constantemente anular, deixar aos pedaços, reduzido em si mesmo e separado daquilo que lhe pode fortalecer. Isto, claro, como a mão, é uma estratégia invisível.

“Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia”

É lógico, no entanto, que Ade reconhece a ingenuidade daquilo que coloca em cena, isto é, da caricatura que cria do universo das finanças, haja vista o franco deboche que ela deixa vazar das reuniões de negócios, dos coquetéis de luxo, independentemente da presença do pai, o que clarifica que ele não é o centro do humor (todos vimos a cena da masturbação sobre os quitutes no hotel e a mais larga duração da sequência da festa no apartamento) do filme e, consequentemente, que o próprio humor não é aleatório, mas objetivo.

Tal qual um elemento detonador de certo terrorismo cultural, o humor faz intervenções que são antes de tudo desafios de encenação, ao que parece ser a mais potente obsessão de Maren Ade a se revelar agora: colocar na cena um conflito e então tencioná-lo, pelo exagero cômico, até o seu limite. Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia. Não há desespero, mas conflito, contradição. Sua filha vive o mundo das pessoas comuns, o mundo real, que é também o nosso. Um mundo que chamam de superficial, mas que é, em verdade, bem real e violento. As finanças, o marketing, a política internacional mediada pelas grandes corporações, nada disso é arbitrário no filme.

A financeirização engendrada pelo capitalismo globalizado mobiliza uma estética própria que a pureza não conseguiria alcançar (vide Costa Gavras, Ken Loach, Sérgio Bianchi e o time de cineastas críticos do sistema), pois prefere moralizar, esquematizar e se resguardar de todo o mal. Ade, ao contrário, se livra dos puros. Resolve deixar seu filme acontecer muito mais do que em todos os seus anteriores. Ela combina com absoluta inteligência cenas de genuína entrega emocional (onde o humor participa: vejam a cena em que Ines canta para algumas dezenas de desconhecidos em uma festa na qual ela entrou, com o pai, de surpresa) com momentos de exemplar dureza (a apresentação de um projeto para um cliente importantíssimo para a sua empresa).

Dividida entre o tempo em que trabalha e o tempo em que pensa no trabalho, Ines compreende os motivos da visita de seu pai desde o início, embora, ao final, mesmo senhora de sua consciência, sua vida seguirá. Ela sorri, chora e depois segue em frente. Real politik.

Toni Erdmann, de Maren Ade, Alemanha, 2016. Com Sandra Hüller, Peter Simonischek, Michael Wittenborn, Thomas Loibl, Lucy Russell, Hadewych Minis, Vlad Ivanov.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu, Daniel Blake

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2017
Eu, Daniel Blake (divulgação)

Por Pedro Henrique Gomes

Daniel Blake sofreu um ataque cardíaco. Segundo recomendações de seus médicos, está impossibilitado de trabalhar. Ele entra com um pedido de auxílio financeiro, que lhe é devido, junto ao órgão de Seguridade Social inglês, mas tem seu pedido negado: o Estado alega que ele está em condições de trabalho. Tenta recurso, desiste, encontra com as dificuldades impostas pela falta de dinheiro, conhece pessoas em situações semelhantes, ajuda como pode.

Eu, Daniel Blake, o novo filme de Ken Loach, Palma de Ouro no último Festival de Cannes, pretende que o espectador se indigne diante das dificuldades impostas pelo Estado para que um cidadão consiga ter direito a um benefício previdenciário básico.

Loach é daqueles cineastas que não abre mão do estilo e da determinação de sua militância. De suas imagens, a tradição do espírito operário resplandece. A mira, no entanto, nem sempre acerta o alvo. A sua agenda política (que em linhas gerais são justíssimas e compreensíveis) coloca seus filmes dentro de uma norma que ele próprio não consegue transpor para além de certo engessamento narrativo. Seus filmes, mesmos os melhores (Os Ferroviários, de 2002, por exemplo), travam na unilateralidade de suas observações, destituindo-nos daquele mistério contraditório e das tensões que propõem os grandes filmes baseados no “realismo social”.

Loach condena o cinema hollywoodiano (este dos grandes espetáculos) por seus esquemas estéticos e políticos, todavia permite que seus filmes se embriaguem em um nível de chantagem emocional estranho para um cineasta do seu timbre. Eu, Daniel Blake não foge ao riscado.

Ainda que engessado, ainda que repleto de atalhos discursivos e adaptações absurdamente pesadas para passar a mensagem necessária, Eu, Daniel Blake dá indícios, logo em seu início, de que Loach tentará olhar a complexidade do mundo (mesmo que seja do mundo em que ele se insere, ideologicamente falando) sem suas certezas habituais que resultam num enquadramento sociológico severamente limitado.

Que numa modernidade capitalista as individualidades sejam alçadas a um patamar primordial, que a competitividade do mercado e o alargamento dos espaços privados sobre os públicos sejam sintomas, que o Estado burocratizado em consórcio pútrido com o mercado seja um convite ao abandono dos populares, isto parece sensato dizer – e a obra de Loach nos diz.

Mas o filme não precisa necessariamente que o espectador compartilhe de suas crenças, pois nada muda: o seu prato já vem servido e não podemos acrescentar temperos. Resta observar a degradação humanitária da qual seu filme provavelmente se alimentará. A burocracia vence, derrotando a esperança. Há como reerguê-la?