Por Pedro Henrique Gomes
Winfried (Peter Simonischek) resolve ir visitar a filha Ines (Sandra Hüller), que há anos deixou a Alemanha para ir trabalhar na Romênia. A sua empresa é responsável pela consultoria de risco de imagem de grandes companhias que resolvem tomar decisões impopulares (demissões em larga escala, como é o caso do filme). Ela precisa construir um arcabouço mais ou menos justificável para as demissões que irão se seguir a terceirização de serviços. Ao chegar lá, Winfried, como Bartebly, resolver negar esse mundo. Acha melhor não. Utilizando nomes falsos, dentadura e peruca, ele cria histórias para conseguir penetrar no mundo da filha (e se chocar contra ele), fazê-la questionar. Mas já adiantamos, a sagacidade do filme consiste em compreender perfeitamente que as escolhas de Ines são absolutamente conscientes.
Antes de ser uma comédia, Toni Erdmann tem momentos de humor que irrompem o drama e proclamam uma independência dentro da narrativa dramática maior (e mais fundamental): a práxis que se evidencia na relação do pai com a filha. O pai é um performer crítico, supostamente consciente de sua objetividade social, homem que conhece a natureza e a sociedade, que aprendeu a deslizar pela complexidade do sistema cultural que habita sua filha (e, claro, ele também), mas que não pensa em transformar outro mundo que não seja o seu: o da experiência cotidiana, da vida, de suas emoções diárias.
Esse personagem e essa relação dão o pontapé inicial no conflito de um ser com outro, um desafio nem tanto de conscientização, mas de re-conhecimento. Do quê? Do sujeito que o trabalho, tal como posto e levado a cabo, busca constantemente anular, deixar aos pedaços, reduzido em si mesmo e separado daquilo que lhe pode fortalecer. Isto, claro, como a mão, é uma estratégia invisível.
“Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia”
É lógico, no entanto, que Ade reconhece a ingenuidade daquilo que coloca em cena, isto é, da caricatura que cria do universo das finanças, haja vista o franco deboche que ela deixa vazar das reuniões de negócios, dos coquetéis de luxo, independentemente da presença do pai, o que clarifica que ele não é o centro do humor (todos vimos a cena da masturbação sobre os quitutes no hotel e a mais larga duração da sequência da festa no apartamento) do filme e, consequentemente, que o próprio humor não é aleatório, mas objetivo.
Tal qual um elemento detonador de certo terrorismo cultural, o humor faz intervenções que são antes de tudo desafios de encenação, ao que parece ser a mais potente obsessão de Maren Ade a se revelar agora: colocar na cena um conflito e então tencioná-lo, pelo exagero cômico, até o seu limite. Não é simplesmente transformar-se, mas derrotar, por metamorfose auto irônica, a inércia. Não há desespero, mas conflito, contradição. Sua filha vive o mundo das pessoas comuns, o mundo real, que é também o nosso. Um mundo que chamam de superficial, mas que é, em verdade, bem real e violento. As finanças, o marketing, a política internacional mediada pelas grandes corporações, nada disso é arbitrário no filme.
A financeirização engendrada pelo capitalismo globalizado mobiliza uma estética própria que a pureza não conseguiria alcançar (vide Costa Gavras, Ken Loach, Sérgio Bianchi e o time de cineastas críticos do sistema), pois prefere moralizar, esquematizar e se resguardar de todo o mal. Ade, ao contrário, se livra dos puros. Resolve deixar seu filme acontecer muito mais do que em todos os seus anteriores. Ela combina com absoluta inteligência cenas de genuína entrega emocional (onde o humor participa: vejam a cena em que Ines canta para algumas dezenas de desconhecidos em uma festa na qual ela entrou, com o pai, de surpresa) com momentos de exemplar dureza (a apresentação de um projeto para um cliente importantíssimo para a sua empresa).
Dividida entre o tempo em que trabalha e o tempo em que pensa no trabalho, Ines compreende os motivos da visita de seu pai desde o início, embora, ao final, mesmo senhora de sua consciência, sua vida seguirá. Ela sorri, chora e depois segue em frente. Real politik.
Toni Erdmann, de Maren Ade, Alemanha, 2016. Com Sandra Hüller, Peter Simonischek, Michael Wittenborn, Thomas Loibl, Lucy Russell, Hadewych Minis, Vlad Ivanov.
