Desmond Doss (Andrew Garfield), jovem do interior dos Estados Unidos, das profundezas da tradição. Sua fé o move indistintamente; na guerra (a Segunda Grande Guerra), decerto cegamente. Um purgatório terreno, real, cruel e violento, tudo isso o jovem assume para si, toma como missão. Cristão de ordem adventista (lembremos, apenas de passagem, que os Adventistas do Sétimo Dia, como é o caso do protagonista do filme de Mel Gibson, são esperançosos pelo advento de Cristo, que então retornaria), portanto protestante de seiva conservadora, Doss vai à guerra para salvar, não para matar. Ele não quer ser ímpio. Não pega em armas, se recusa desde o treinamento e acaba servindo como médico após uma guerra interna com o Exército do seu próprio país (seus superiores tentaram de tudo para impedir que fosse ao campo de batalha). Vai ao front para prover assistência médica, como diz o título do filme, Até o Último Homem.
Boa parte do filme se passa nesses momentos que antecedem o combate e o espetáculo edificante e bárbaro do indivíduo redentor, material que abunda sua metade final. Em geral são ruins e existem, grosso modo, para fornecer os motivos que reforçaram a fé de Doss (como se precisasse). Quando jovem, ele feriu gravemente o irmão após uma briga que, incentivada pelo pai, parecia fazer parte da educação dos meninos. Agressivo e alcoolista, o pai de Doss feria a todos, a ele, ao irmão e principalmente a mãe. História de redenção, trama de sacrifício: Mel Gibson não acha necessário, no entanto, se desculpar por seus motivos políticos, morais, religiosos e estéticos. Os clichês, internamente assimilados, se articulam simplesmente para que sua composição tome o efeito desejado: que nossos corpos se percebam paralisados ao final da sessão – se de amor ou ódio, pouco importa. Que muitos espectadores questionem os motivos ridículos de sua fé, isso ele conscientemente ignora, o que serve bem ao seu filme ao mesmo tempo em que o afasta de uma percepção mais complexa de sua abordagem. Mas ele não quer ir tão longe para não errar.
Até o Último Homem expõe a contradição, cinematográfica por excelência, da pureza da fé de seu protagonista com a sujeira do sangue que transborda do campo de batalha – e que Mel Gibson filma com despudor. Fé, como todas, que comporta uma contradição diante da qual o crente precisa se rebater para mantê-la. No caso de Doss, como fazer parte da guerra não fazendo?
Diferentemente de um Clint, vide Sniper Americano, o filme de Gibson é refratário de uma análise mais dura sobre o herói que filma, parece aceitar com muito mais facilidade e languidez a síntese que propõe. Isso se deve, talvez, ao fato de Gibson estar muito mais aferrado ao seu sistema de crenças do que Clint, o segundo mais cético e radical quanto à representação do “herói”, que também enfrenta dilemas morais de ordem patriótica e religiosa (só que, em Sniper, se mata para salvar). Questão imanente de fé.
Neste contexto, na Batalha de Okinawa, aos olhos de todos os personagens americanos do filme (com uma exceção importante e fundamental, a saber, o próprio Doss), é claro que os japoneses são monstros inferiores, nutridos apenas pela ânsia de matar. O americano bom, este não: Doss salva inclusive alguns soldados inimigos no front. Sua fé é acima de tudo universal. Todos os outros combatentes veem os japoneses como insetos, mas Doss não os menciona desse modo, sequer os menciona. Este é, portanto, o artifício que desencadeia a divergência. Doss é incapaz de odiar o inimigo, todos os outros querem vê-los dilacerados. Como pode um homem não querer matar enquanto seus colegas se sacrificam pela pátria? Gibson responde mostrando que seu personagem central está inspirado por Deus e, assim sendo, ele irá triunfar. Como? O que ele consegue, de fato, é salvar o fracasso de todos os demais.
Hacksaw Ridge, de Mel Gibson, EUA, 2016. Com Andrew Garfield, Vince Vaughn, Teresa Palmer, Sam Worthington, Hugo Weaving, Luke Bracey.
