Pedro Henrique Gomes

O Jovem Karl Marx

Pedro Henrique Gomes
16 de fevereiro de 2018

O Jovem Karl Marx mantém vaga a cadeira disponível para que uma cinebiografia honrosa do filósofo alemão possa enfeitar as nossas memórias. O filme de Raoul Peck é altamente contraditório no mau sentido, isto é, não no sentido de como a filosofia de Marx pensava o processo da história. Peck filmou uma estátua, não um homem. Não necessariamente por idolatrar Marx, pois não parece ser esse o caso, mas antes por não penetrar o seu pensamento e, neste processo, revelar um Marx menos repleto de jargões. Dificilmente este filme articula a ideia de uma encenação econômica a uma montagem novelística (que parecem ser propostas do cineasta), pois está baseado num ritmo estranho ao próprio objeto de sua investigação.

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Os primeiros contatos com Engels, apenas modestamente criativos tal como filmados, impossibilitam que os personagens estejam à altura de suas ideias

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Embora o didatismo seja uma escolha evidente da narração, Peck conduz seu filme movendo situações por atropelos para encaixar flashes das principais (as mais virais) ideias de Marx. Não resolve muito: a gênese do jovem Marx não está lá senão como encarnação publicitária do gênio revolucionário que ele significa para a esquerda mundial, apesar da grande caracterização pessoal que August Diehl dá a seu personagem, como grande ator que é. Publica-se a lenda.

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É período pleno da Revolução Industrial e lá está tudo o que ela representou e representa: as máquinas aumentam a produtividade do trabalho, produz-se mais riqueza social, mas esta produtividade aniquila os trabalhadores que enfrentam longas jornadas por salários miseráveis e que esta riqueza não fica com eles

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Engels, Marx, Proudhon, Stirner e outros estão vendo o que Adam Smith e David Ricardo não puderam ver tão claramente pois o objeto de suas pesquisas ainda estava em transformação. O filme expõe estes contatos, as divergências, as ideias teóricas de cada um apenas rapidamente para conseguir estabelecer um corpo básico de sequências, o que é tanto sua força quanto sua fraqueza. Força, pois há um nítido esforço de representar um período central da produção intelectual de Marx dos mais complexos (o da escrita de A Ideologia Alemã, 1845/46, e do Manifesto Comunista, 1848), que talvez pela própria impossibilidade da representação seja disperso e frenético. Fraqueza, pois este frenesi empresta a Marx uma frivolidade cartunesca e, paradoxal que seja, idealista.

Por óbvio, estão lá as críticas aos jovens hegelianos, aos anarquistas (da corrente de Proudhon), aos próprios socialistas; discursos mais ou menos efusivos contra a burguesia, os alentos quantos aos processos revolucionários, a organização de alguns de seus principais textos, a vida familiar com Jenny (sobre quem, aliás, se poderia fazer uma bela peça cinematográfica), enfim, vários momentos constitutivos da trajetória do jovem Marx.

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Acaba que, diante de tudo o que o filme quer mostrar, muito da força de O Jovem Karl Marx seja apenas picotado, fique de rebote daquilo que a ânsia em construir o mito deseja priorizar

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Em observação, parece relevante dizer que a expressão dos conceitos e das ideias de Marx são matérias de duro resgate – e o filme muito bem se esquiva de trazer para o cinema um Marx profeta. Se sempre o foram para os marxistas (e talvez principalmente para eles) e para seus detratores célebres (que em grande parte o leram mal), como não haveriam de ser para um singelo cineasta?

Le Jeune Karl Marx, de Raoul Peck, França/Alemanha/Bélgica, 2017. Com August Diehl, Stefan Konarske, Hannah Steele,Vicky Krieps, Olivier Gourmet.

Pedro Henrique Gomes

Os melhores filmes de 2017

Pedro Henrique Gomes
22 de dezembro de 2017

Como de costume, do goleiro ao atacante, a minha lista, absolutamente pessoal, é claro, é formada pelos onze filmes que mais me interessaram nesse ano. 2017 foi um ano mais de aprofundamento teórico que de exercício da cinefilia (mea culpa pela baixa frequência de postagens nesta coluna, aliás), o que se refletiu em poucos filmes vistos. Eis a lista.

1 Na Vertical, de Alain Guiraudie (França)
2 Beduíno, de Júlio Bressane (Brasil)
3 Na Praia à Noite Sozinha, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul)
4 Z – A Cidade Perdida, de James Gray (EUA)
5 Toni Erdmann, de Maren Ade (Alemanha)
6 O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (Portugal)
7 A Morte de Luís XIV, de Albert Serra (Espanha-França)
8 A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha (Brasil-Portugal)
9 No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Brasil)
10 Melhores Amigos, de Ira Sachs (EUA)
11  Silêncio, de Martin Scorsese (EUA)

Pedro Henrique Gomes

Crítica – No Intenso Agora

Pedro Henrique Gomes
25 de novembro de 2017

Como experiência histórica que reúne vários momentos cruciais em torno do ano de 1968, No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles, traz para o centro de suas questões as próprias condições de produção das imagens registradas na época, no calor dos acontecimentos. Seguindo as informações narrativas que o filme transmite, as imagens evocam expressões de relações de classe, de esperança, de angústia, de desilusão, de reviravoltas no jogo político. O ponto de partida é a imagem. Imagem que virou arquivo. Um filme absolutamente pessoal. No caso, registros da elite brasileira (em que esteve presente Elisa, mãe do cineasta) em visita à China, em 1966, alimentaram nele o desejo do filme.

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Que imagens surgem nos diferentes contextos, questiona Salles, da China maoísta, da França do maio de 68, das greves operárias e das revoltas estudantis, da ditadura militar brasileira e da Tchecoslováquia quando da chegada dos tanques soviéticos que iriam interromper a Primavera de Praga?

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No Intenso Agora ajeita, levanta e corta: o resultado estético dessas imagens carrega, para além do espírito do tempo e da urgência material delas, a estrutura moral e política que permitiu a forma mais ou menos exata com que foram feitas. As imagens respondem a procedimentos dados pelas restrições locais. Segundo o diretor, o filme quer saber quem filma e como filma numa democracia, em uma ditadura ou em um país militarmente ocupado pelo estrangeiro.

A tensão entre o não saber o que se está filmando é a posição por vezes incontornável a quem quer que se aventure com uma câmera (das filmagens amadoras ao documentarista/cineasta que tem no ato de filmar a sua profissão de fé), daí a dificuldade de, muitas vezes, e mesmo que o filme seja também sobre isso, estabelecer conexões entre os registros expostos. Trabalhando com arquivo a partir de longa pesquisa, o filme costura estes acontecimentos para questionar os seus sentidos e significados, as suas expressões e seus gritos. Penso que há inclusive exageros de interpretação (por exemplo, na cena da babá com as crianças), mas eles também corroboram e insistem em escrever os seus sentidos, pois olhar imagens não é outra coisa senão provocar-lhes fissuras no ato mesmo de descrevê-las.

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O filme é seu próprio crítico

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É curioso que somos tentados, decerto exageradamente, a traçar paralelos, também eles, baseados em experiências locais. Junho de 2013, por exemplo, junto de seus desdobramentos, uma vez que a ideia do filme é anterior às manifestações. Este aspecto perfeitamente explícito que o filme possui, seu caráter de análise sistemática dado pelo narrador, permitem também o alargamento dessas relações contextuais. O maio de 68 francês, por seu turno, foi imaginativo e convocou certa potência, mas não conseguiu desestabilizar as superestruturas do poder, sendo inclusive domesticado por ele. O filme comenta isso ao mostrar a lida do governo francês, na figura de Charles de Gaulle, com as manifestações que tomavam Paris: o poder logo sufocou a revolta. João Moreira Salles percebe que falar sobre imagens num filme é também criar outras sobre elas, num processo de autorreflexão visual continuado – e, talvez por isso mesmo, extremamente arriscado e delicado. Seu filme corajosamente toma o risco.

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No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Brasil, 2017).

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Jogo Perigoso

Pedro Henrique Gomes
3 de novembro de 2017

O jogo aludido pelo título nacional de Gerald’s Game, a bem dizer, dura muito pouco tempo. Casal de anos, Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie Burlingame (Carla Gugino) vão para uma casa distante de qualquer contato externo para retomarem o desejo um pelo outro, que parece adormecido. Gerald propõe imobilizá-la na cama utilizando algemas e toma alguns remédios para ganhar o ímpeto que lhe falta na vida cotidiana, e com a mulher com a qual partilha seus desejos. Ela, visivelmente constrangida, aceita, de início, a brincadeira. Acontece que o ato não se consuma. Após um desentendimento com os critérios do jogo, que oscila entre o desejo e o abuso, Gerald tem um ataque cardíaco fatal: está morto. Jessie fica então algemada num local totalmente isolado onde seus gritos não se farão ouvir.

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O jogo então passa da ação física para a ação mental

Jessie, sozinha, alucina

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Mike Flanagan, diretor de Jogo Perigoso, tem apreço pelo silêncio, inclusive visual, de sua encenação. Seu filme anterior, Hush (outro filme puramente mental, já que muitos sentidos faltam à protagonista), também se passa em um cenário isolado, também privilegia amplificar suas matérias de expressão a partir de uma figuração sóbria e de sets notavelmente discretos. É, ao que parece, esse o estilo do seu cinema. Ele tem, diga-se, boa noção do espaço onde busca instalar o medo, a estrutura da tensão e a dramaturgia, muito simples, que lhe convém. As evidências apontam para um cineasta pragmático (um tipo de pragmatismo narrativo que não existe em Stephen King, por exemplo, autor da obra na qual o filme se baseia; King é um escritor de floreios, de parênteses, de digressões).

O aprisionamento de Jessie, dadas as circunstâncias em que se deu, a faz retornar a memórias antigas, mais ou menos resolvidas, no entanto ainda certamente dolorosas. É na própria família que ela conhece a monstruosidade de um abusador – algo que vai carregar em seu olhar receoso diante das brincadeiras sexuais do marido. Incapaz de reagir agora, frágil demais para relutar quando criança é o que nos mostra a montagem dos acontecimentos que se dá em pelo menos três instâncias: o que ocorre de fato, o que ela imagina acontecer e o que é memória.

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As marcações que a estrutura narrativa do filme organiza apelam para ampla redundância discursiva

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A sanha explicativa, adotada no quarto final do filme, acaba sendo fatal ao encerramento dramático e, ao que me parece, até emocional: ela rompe com o aspecto figurativo que ele havia criado até boa parte de sua história, rompe com o ritmo de seu desenvolvimento, apressando-se em fornecer sentido ao mistério, a fazer passar a sua mensagem como um crente com seu livro sagrado.

O que faz desandar a sua habilidade de conduzir o mistério disparado inicialmente é sua narração altamente coercitiva – o seu Mal de Alzheimer narrativo: quer se fazer entender com absoluta rigidez, forçando explicações verbais (orais) tranquilamente dispensáveis uma vez que já estavam inscritas no filme visualmente – ou o contrário. Das duas, uma: ou Flannagan não confia na força das imagens que cria ou não confia nos espectadores que cultiva.

Gerald’s game, de Mike Flanagan, EUA, 2017. Com Carla Gugino, Bruce Greenwood, Carel Struycken, Chiara Aurelia.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Coração de Cachorro

Pedro Henrique Gomes
22 de setembro de 2017

Coração de Cachorro, filme da cineasta americana Laurie Anderson, começa pelo meio: é um ensaio, um floreio pelo pensamento da narradora. Lollabelle, sua cachorra, é a personagem central – ela morreu e o filme é dado em sua memória. A voz da cineasta, que acompanhamos atentos ao longo de todo o filme, parte desse indefinível momento que é a tentativa de descrição de um sonho.

A sua trama, alegórica e filosófica, possui também caráter evidente e autorreferido: é o que nos faz perseguir a leitura do texto, fixar a atenção nas imagens, buscar conexões, entender as sugestões que ela deixa.

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Seus personagens são seres vivos e ficções políticas, além de convenções sociais, objetos dessas convenções, ideias, conceitos, imaginação, sonho e fantasia

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Para ajustar a narratividade do filme, para que sua expressão “vingasse” como pensamento sobre as imagens e sobre o texto, Anderson adotou uma postura de aproximação e distanciamento simultâneos. Isso não neutraliza o impacto emocional do filme (se quiserem, o seu caráter poético) dado que seu texto cria, inventa, conta, recita, canta, sofre e alucina pois é um texto vivo que choca o espectador contra a sua angústia, num movimento de enfretamentamento literal. A cineasta reconhece a tensão entre, por um lado, a proximidade que o relato tem dela mesma e, por outro, o seu aspecto de sugestão, de ligação intersubjetiva.

Penso que o filme está inteligentemente possuído por algumas questões que vão além da narrativa pessoal diante de uma perda (“every love story is a ghost story”). Se há a pretensão de poetizar sobre dor, sofrimento e amor, há também uma ideia de pensamento estético que os envolve. Os elementos que o filme nos entrega pareciam me perguntar o tempo inteiro qual a relação possível que o espectador pode estabelecer com imagens assim. Quais os tipos de questões que o relato, ensaístico que é o deste Coração de Cachorro, pode colocar para qualquer pessoa que não seja a que as vivenciou (a narradora) e, no limite, produzir emoções. Só “afeto” e “discurso poético” não seriam suficientes. Não parecem ser estes, em si, os elementos de encantamento do filme. Sua força está em sua imaginação. O 11 de setembro, Kierkegaard, Wittgenstein, David Foster Wallace, o vigilantismo, eis suas referências.

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Em uma sociedade que controla (de modo notável, aliás, nos Estados Unidos), que vigia e que direciona culturalmente o pensamento e o imaginário ordenado, como reagir?

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Em tese, o 11 de setembro deu impulso a esse movimento vigilante (o intensificou, numa segunda onda de controle e paranoia; a primeira foi a detonada pela câmera de Abraham Zapruder quando esta filmou o assassinato de Kennedy e desencadeou a ficção paranoica que irrompeu no cinema americano a partir de então) numa sociedade que oferece, paradoxal que seja, liberdade e segurança como nenhum outro lugar no mundo. Essas imagens povoam o filme. Como o cérebro, que procede por livre associação, assim é a liberdade de Coração de Cachorro ao construir as suas ilações.

Heart of a dog, de Laurie Anderson, EUA, 2015. Com Laurie Anderson e Lollabelle.

Pedro Henrique Gomes

Cinema novo

Pedro Henrique Gomes
15 de setembro de 2017

Não há nenhuma dúvida de que vivemos um golpe. O golpe, no entanto, ao que me parece, não foi contra um partido político. Nós fomos os golpeados.

Semana passada a Cinemateca Capitólio exibiu uma mostra que desenhou, para quem ainda não entendeu, que a trágica evolução política brasileira desde o início do século passado tem poucas novidades. Seu roteiro, obscenamente previsível, está talhado na memória visual de filmes como os do Cinema Novo. A mostra Cinema Novo – Brasil em Transe trouxe alguns dos filmes que fizeram parte de uma geração de cineastas e obras que, na atualidade de seus temperamentos políticos, (ainda) falam do nosso tempo – visto que o autoritarismo e o baixo teor democrático que experimentamos até agora nos corroi por dentro e por fora. O enredo se repete primeiro como tragédia.

A mostra exibiu Os Herdeiros, de Cacá Diegues, Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Desafio, de Paulo Cesar Saraceni, Quem é Beta?, de Nelson Pereira dos Santos, Desesperato, de Sergio Bernardes Filho, O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, e Cinema Novo, de Eryk Rocha.

Teve de tudo. O poder político enredado ao econômico, a concentração da riqueza nacional, financeira ou não, as arapucas políticas, as sabotagens, os crimes, os golpes de Estado, a miséria dos populares, o populismo, a violência, as ditaduras, a tropicália, a Bossa Nova, as utopias, as desilusões, em suma, o sangue, o suor e as lágrimas. Para entender o cinema brasileiro e o Brasil precisamos passar por estes filmes, no que eles têm de envelhecido e de atual, na sistematização e no rigor formal das ideias de Glauber (como bom eisensteiniano) e na alegoria de Nelson Pereira.

Passadas décadas, ainda não aprendemos.

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Em cartaz, também na Cinemateca, está Coração de Cachorro da Laurie Anderson – que vale todas as nossas atenções. Publico hoje ainda as minhas impressões sobre o filme.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Rifle

Pedro Henrique Gomes
19 de agosto de 2017

A alegoria caprichada da paisagem campeira é um elemento sedutor de Rifle. Que tanto os elementos documentais se embaralhem com os ficcionais, assim como em Castanha, longa anterior de Davi Pretto, não chega a surpreender.

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É a atmosfera de um registro, que é a um só tempo puro e impuro, que Rifle busca captar

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O trabalho intelectual (força de conjunto) do filme é claramente entendido, principalmente a partir das soluções sonoras e visuais, cujas imagens decisivas são marcadas por uma trilha sonora alucinante, que golpeia, com elegante violência, os sentidos de quem as vê.

Ao combinar os elementos de uma tradição de imagens que está rigorosamente assentada em outra cultura visual (a cultura heroica e épica, da aventura e da tragédia dos desertos norte-americanos, do monument valley; desnecessário dizer, da linha do horizonte conceituada por John Ford), apropriando-se, portanto, de seu imaginário (de sonho e violência), Rifle conecta a trajetória de seu personagem aos elementos constitutivos do faroeste clássico americano, buscando, entre planos firmes do céu e da terra, aludir a esse universo sem sequestrar os seus significados.

Uma das características exemplares dessa tradição é a disputa territorial. No western, essa disputa se articula a partir de uma série de conflitos morais, econômicos, familiares, amorosos e raciais. Não que Rifle não os tenha, mas deles não se alimenta para que suas situações dramáticas se estabeleçam, isto é, não temos a necessidade premente de um justiçamento épico que, para o bem ou para o mal, viria postar o corolário sobre os bustos de seus homens combatentes. Justiçamento, nessa tradição, não é justiça. A atmosfera do filme, herdeira de uma cinefilia muito particular e híbrida, é também dona do pensamento sobre a história das imagens que busca tanto resgatar quanto discutir.

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Filme político, claro. Uma política sanguínea, cuja amarração, tensão e conflito estão projetados em torno de uma luta antiga, contra a qual é muito difícil triunfar

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Quando Dione, o protagonista discreto do filme, arma em punho, dispara contra vários carros que ameaçam se aproximar do espaço que ele representa, ele está nos dizendo claramente ao menos uma coisa: nós somos esta terra. Ex-militar, Dione trabalha para um fazendeiro de poucos recursos e o interesse de um grande proprietário naquelas terras surge como uma ameaça a qualquer coisa que eles possuam lá. Dione trabalha, ele também, para um proprietário, mas um decerto menos ambicioso – de acordo com a insinuação do filme.

O cotidiano muito tranquilo da fazenda se vê ameaçado pelo expansionismo comercial, descaracterizador das paisagens rurais desde sempre. O filme apenas incorpora os elementos simbólicos desse embate ao movimento interior de seu personagem central, que vaga solitário, centrado na atividade rural que lhe sustenta e, no limite, que lhe perturba, angustia e confunde. Dione e seu rifle respondem com disparos e estilhaços.

Rifle não se furta inclusive a arroubos moderadamente fantasiosos e delirantes (uma saída de roteiro ao psicologismo) que povoam a imaginação do protagonista. Para ele, malgrada a sua história militar, é muito difícil não pensar em partir para a luta armada. Como filho da península, como gaucho, como parte dos mitos populares e da tradição regional, Dione considera inaceitável sentar e negociar. Ele acha melhor não e por isso propõe uma ruptura violenta. Entende, institivamente, que ceder ao dinheiro seria ceder também a dominação como instrumento de conquista.

Rifle, de Davi Pretto, Brasil, 2017. Com Dione Ávila De Oliveira, Francisco Fabrício Dutra dos Santos, Sofia Ferreira, Evaristo Pimentel Goularte, Andressa Nogueira Goularte.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Central – o Filme

Pedro Henrique Gomes
21 de julho de 2017

As imagens de Central – o Filme carregam toda a carga de nossa relação, “nominal e real”, com a violência. Sabemos que ela existe, isto é um fato. Quando não a vemos nas ruas, o noticiário (inclusive o impulsionado por nós através das “redes”) golpeia o nosso pensamento. A tendência, mais à esquerda, é negá-las e evitá-las para não alimentar a “indústria do medo”. São imagens obscenas, que instauram uma lógica de reação violenta. À direita, a reprodução dessas imagens incentiva capsularmente a repressão e, voilà, a violência do Estado contra os indivíduos e da própria sociedade contra ela mesma.

Mas como, de fato, olhamos para tais imagens para compreendê-las fundamentalmente sem cair na negação e no discurso repressivo? O silêncio ensurdecedor dessa relação é o nosso paradoxo civilizacional. O documentário de Tatiana Sager e Renato Dornelles coloca o dedo nessa ferida.

Decerto a breve introdução acima amplia o escopo daquilo que o próprio documentário se propõe a discutir, a saber, a situação deplorável do presídio central de Porto Alegre e, no limite, do sistema carcerário brasileiro, mas não consigo deixar de vincular os modos de atenção destinados aos símbolos da violência à tendência autoritária tipicamente brasileira. Se é verdade que a violência se constitui a partir de vários eixos que subtraem a humanidade de todas as partes envolvidas, não é possível que possamos pensar em resolver a questão afastando-nos dela. Será que vemos o que as imagens nos dizem?

Blocos imensos superlotados de pessoas apartadas da sociedade parecem nos dizer pelo menos duas coisas: que a violência existe e que o pensamento sobre as suas causas ainda carecem de uma reflexão intelectual profunda e sistemática. Pelo visto, a terceira via nos diz que não estamos agindo da melhor forma para lidar com o problema. O Brasil não é para amadores, estava certo quem o disse.

O documentário se faz entender: o confinamento, a sujeira, a superlotação, a violência, o perigo iminente, a incerteza, enfim, não há um lado bom em estar preso, nos confessam, pelas suas falas, os homens em cárcere. As entrevistas com presos, policiais e especialistas em segurança pública, além da câmera que a produção entregou aos presos para que eles filmassem a partir de dentro o cotidiano da prisão têm o contrapeso desejado ao costurar os argumentos, as defesas, os entendimentos, as possíveis saídas, as dificuldades e as tensões em disputa. Se a cultura da imprensa brasileira opera num “silêncio visual” (como disse João Moreira Salles) sobre a violência, Central – o Filme trata de fazer um pouco de barulho em torno da questão.

Por outro lado, não sei se por estratégia narrativa ou por desatenção, Central apenas tangencia um tema que certamente infla essa dificuldade estrutural, e este tema é a despenalização das drogas – embora enfoque no tráfico, inclusive o tráfico que circula no presídio e que o excede, os usos das drogas não participam do debate. De todo modo, está claro que aquele que já foi tido como o pior presídio do país ainda não oferece as mínimas condições de recuperação social aos condenados e tampouco dignidade aos que trabalham lá.

Como vemos, o sistema judiciário é incapaz de lidar com problemas sociais, sendo meramente um agente regulador de penas. Ao mesmo tempo em que desumaniza os confinados, também o faz com todos os cidadãos. Entre nós, é mesmo um sistema falido.

Central – o Filme, Brasil, 2017. De Tatiana Sager e Renato Dornelles.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Z – A Cidade Perdida

Pedro Henrique Gomes
25 de junho de 2017

Quem espera, através das imagens de Z – A Cidade Perdida, chegar à Amazônia e ver o verde exuberante exaltado plano a plano estará pisando em falso. Não é só uma questão de diferença estética. Prescinde uma experiência de conexão, de imaginação e, claro, também de interesse visual. O filme de James Gray (o seu sexto) parte da terra e nela se detém, dela se energiza e busca todos os caminhos para a sua exploração visual a partir deste espaço maravilhoso que é o mundo. Logo percebemos que não há planos aéreos característicos do filme de guerra e de exploração e descoberta: estamos no nível da terra o tempo inteiro. Não sabemos, junto com o protagonista, o que há para descobrir. A aventura é, portanto, substancialmente outra.

Cineasta até aqui conectado ao espaço urbano nova iorquino (Fuga para Odessa, Caminho sem Volta, Os Donos da Noite, Amantes e Era Uma Vez em Nova York), geograficamente muito determinado, Gray vai encontrar na Amazônia brasileira as suas obsessões. No início do século passado, o explorador britânico Percy Fawcett é convocado a viajar a uma região amazônica localizada na fronteira entre a Bolívia e o Brasil. Há interesse, da parte do governo, em explorar a região. Ao chegar lá, Fawcett se nutre de outra seiva: volta convicto de ter chegado muito próximo de descobrir uma antiga cidade local, que ele chama de Z, mas que ele não tocou. Ele precisa regressar a sua odisseia.

Na Amazônia, o que trazem os europeus liderados por Fawcett, em busca da cidade perdida, é uma câmera fotográfica e os materiais de medição e mapeamento territorial. É o espaço a descobrir para dar-lhe uma forma e uma existência vivida; ele já existe na imaginação (assim como o cinema existia na imaginação dos pioneiros muito antes da tecnologia torná-lo possível, como defendia André Bazin) e vai sempre existir enquanto nos interessarmos por seus mistérios, pelo que lhe é intocável senão pelo pensamento abstrato.

Gray tem lá seus desejos e os transforma em imagens: as pretende suntuosas em sua materialidade, em sua textura e investe, por isso, na expressividade de cada plano e nas transições entre eles. A síncope elíptica de seus cortes nos transporta com absoluta fluidez para a próxima aventura – a mesma sensibilidade nos entrega coisas que só os personagens podem saber, o que Gray nos mostra sem pestanejar: para saber é preciso imaginar. Essa montagem nos coloca sempre a um passo do abismo. Não lembro de filme recente a convocar tão profundamente o espectador a uma experiência de imersão como este filme. Gray tem amor pela emoção, alcançada, é claro, com a beleza de sua fotografia (Andrew Wyeth seria uma referência na pintura?) e com a integridade de sua narrativa, nessa espécie de filme-diário hiper fragmentado.

Como Indiana Jones, Fawcett estava em busca da cidade perdida quando Machu Pichu foi anunciada precisamente pelo explorador que viria, como dizem, a inspirar o filme de Steven Spielberg. A forma do anúncio, que Gray faz seus personagens apenas comentarem, é um exemplo de como “o contexto” se inscreve no filme: importante e lateral a um só tempo. Assim como o Atentado de Sarajevo (o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand), cujo episódio deflagraria, poucas semanas depois, o início da Primeira Guerra, é comentado sutilmente. Os detalhes menores cativam mais, os pequenos diálogos reforçam mais a unidade psicológica buscada peplo filme. O grande tema do cinema de James Gray continua sendo a família.

Em última instância, mesmo que inscrito no universo dos filmes de exploração e descoberta (o filme de aventura na selva), Gray mantém os seus interesses e os amplia. A distância, a chegada a um território diferente para tentar ganhar a vida, a exemplo de todos os seus filmes anteriores, cujos personagens eram essencialmente imigrantes, dá também a tônica em Z. Persiste o drama, insistem as dificuldades. Até o final, a trajetória de Fawcett institui o dilema clássico que remonta ao filme anterior do cineasta e que modela a sobriedade de seu drama: não há condenações peremptórias em sua obra, mas penetração psicológica.

Resgatado de Era Uma Vez em Nova York, e que, como este, contém um split screen dentro dele a dividir a tela, as temporalidades, os sonhos, a esperança, enfim, o plano final de Z é coerente com as imagens anteriores e as ilumina. Que tenha inscrito o seu desfecho assim, em aberto, em continuidade, em exercício de descoberta, é certamente um sinal dessa reflexão, desse acordo com a história das imagens, que Gray muito bem conhece. Nos dois casos, além da proximidade de localização no tempo, seus personagens alimentam esperanças de descobrir e encontrar, noutro local, um sentido e uma forma para as suas vidas. No filme anterior, no âmbito mais preciso das individualidades dos imigrantes; neste, num contexto em que, embora mantido o ponto de vista do explorador, a sua aventura se pretende histórica, portanto épica.

Na longa tradição do romance de expedição, tal qual um Robinson Crusoe e um Robert Scott, Fawcett tem o seu espírito idealista, como muitos homens que se lançaram ao mar e não mais regressaram, generosamente filmado por Gray. Alma de lugar nenhum, Fawcett escreve seu destino na eternidade, como memória e imaginação, como história e mitologia.

The Lost City of Z, James Gray, EUA, 2017. Com Charlie Hunnam, Sienna Miller, Tom Holland, Robert Pattinson.

Pedro Henrique Gomes

Todos os horrores do presidente

Pedro Henrique Gomes
3 de junho de 2017

Rever Todos os Homens do Presidente, filme de Alan J. Pakula sobre a investigação jornalística conduzida pelos repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward e que resultou na renúncia do então presidente Nixon, não é menos que iluminador. O leitor ao certo conhece o caso Watergate: a detenção de 5 homens que tentavam instalar escutas e fotografar documentos a mando dos Republicanos na sede dos Democratas, em junho de 1972.

Corria a campanha que culminaria na reeleição de Nixon. Ele sabia dos grampos. Nixon renunciaria dois anos depois e acabaria generosamente anistiado por seu sucessor Gerald Ford, então vice-presidente. Pakula filmou a rotina dos jornalistas dentro do thriller de conspiração, de tramas subterrâneas, de informantes, de homens que sabem mais que outros, de poder e dinheiro, de mentira, de blefe; filma, claro, relações de força. O mundo é este de sangue e violência.

Junto com Klute (1971) e A Trama (1974), compõe a “tríplice coroa da paranoia” de Pakula. Filmes de conspiração e complô, assassinatos políticos e obsessões de indivíduos diante de acontecimentos públicos foram algo comuns a partir dos anos 1960 e 70 no cinema americano. O assassinato de Kennedy em 1963, filmado por Abraham Zapruder, teria sido a imagem detonadora da ficção paranóica, que legaria, além dos filmes de Pakula, A Conversação, de 1974, de Francis Ford Coppola.

A paranoia está sempre a nos rondar, seja como forma, seja como ideologia. Surge de um acontecimento factual, mais ou menos verdadeiro, e se desenvolve ad infinituum na mente do paranoico. No cinema, frequentemente só cessa com a morte do paranoico.

O recente e atual clima político brasileiro, em forma e ideologia, abre espaço a toda sorte de maquinações conspiracionistas. As teses de complôs políticos, para lá e para cá, pululam nos media. Em meio ao caos, aos fake news, ao fla-flu polarizador, é irônico que o fim do jornalismo seja, como todos os anunciados “fins”, ele também um embuste. Antes do que nunca, agora é preciso mais jornalismo, mais investigação séria, mais apuração. A tecnologia e seus usos pelas forças políticas da riqueza engendraram novas estruturas de dominação, controle e manutenção da barbárie civilizacional que nos acomete. Para derrubar um corrupto, parafraseando uma alegoria dos anos 1960, é também preciso que o jornalismo volte a ser perigoso. Se um dia o foi.