Voos Literários

O que o capitalismo tem a ver com o Setembro Amarelo?

Flávia Cunha
26 de setembro de 2020

Esse texto compõe uma série especial da coluna Voos Literários a respeito da prevenção ao suicídio, dentro da campanha Setembro Amarelo. O primeiro post trouxe um texto do autor Caio Fernando Abreu abordando o assunto. O segundo texto alertou sobre o risco maior de suicídio entre jovens LGTBQIA+.

Considero como raras as abordagens pela grande mídia do quanto o capitalismo e sua lógica perversa afetam a saúde mental de trabalhadores. Não recordo de nenhuma matéria na TV mostrando o suicídio tendo como gatilho a falta de dinheiro para pagar itens básicos, como alimentação e moradia. Por outro lado, são inúmeras as reportagens com a exaltação de exemplos isolados de “superação” e “reinvenção” como forma de sair da miséria. O desemprego é mascarado por meio do crescimento do empreendedorismo, ainda que improvisado. Vender garrafinhas de água na rua não é bico, é negócio. Seguindo esse raciocínio, quem estiver desempregado e deprimido é apenas por culpa individual. O sistema jamais é responsabilizado.

SAÚDE MENTAL X TRABALHO 

A ironia é que a pressão e o excesso de cobrança por resultados, comuns em grandes empresas de diferentes áreas, são fatores que podem levar funcionários a desenvolver transtornos mentais. Debilitada mentalmente, muitas vezes a pessoa fica impossibilitada de trabalhar, o que é visto com maus olhos por empregadores e às vezes até por colegas.

PANDEMIA PIORA (O QUE JÁ ERA RUIM)

Junto a essas características desanimadoras do mercado de trabalho, soma-se a pandemia e a consequente alta do desemprego. Estudo da Organização Internacional do Trabalho  (OIT) alerta para o aumento de suicídios em função da covid-19.  A partir desse dado, podemos inferir que no Brasil a situação é ainda mais alarmante, devido ao esfacelamento dos direitos trabalhistas nos últimos anos. Desempregados, trabalhadores informais e pequenos empreendedores ficam à mercê do governo, que cortou pela metade o valor de um auxílio emergencial necessário para o momento atual. Enquanto tira a subsistência dos mais desassistidos, segue apoiando grandes empresários, mantendo a perversa lógica capitalista. 

Por isso, o Setembro Amarelo é especialmente importante, em uma conjuntura tão propensa a gatilhos de suicídios. 

INFORMAR-SE É IMPORTANTE

Para quem está  fortalecido emocionalmente, o acesso à informação a respeito de saúde mental é importante. Recentemente, o Vós fez uma reportagem especial sobre a epidemia da ansiedade que vale a pena ser conferida. A relação entre suicídio e capitalismo já é analisada há bastante tempo pela Sociologia, como enfatiza a cientista social, doutora em Sociologia e professora da Universidade de Caxias do Sul, Aline Passuelo de Oliveira. Ela indica o clássico O suicídio, de Émile Durkheim, como uma obra fundamental para uma análise por esse viés  “Durkheim traz o conceito de suicídio anômico, que é quando há uma grande desestruturação social.  Muitos casos desse tipo de suicídio aconteceram durante a crise de 1929, com a quebra da bolsa de Nova York, quando muitas famílias de classe média ficaram abaixo da linha da pobreza. Muitas pessoas se mataram nessa época por não ver esperança na vida naquela sociedade”, analisa.

EXÉRCITO DE RESERVA

A socióloga destaca que o livro Vidas Desperdiçadas, de Zygmunt Bauman, é uma boa opção de leitura para tentar entender o momento atual. “Nessa obra, Bauman traz a ideia das vidas redundantes, que podem ser comparadas ao conceito marxista de exército industrial de reserva, referindo-se ao desemprego de uma forma estrutural. O sistema capitalista afeta a saúde mental dos indivíduos, provocando um exaustão físico e mental e pode fazer com que, infelizmente, muitas pessoas acabem tomando atitudes extremas como a de tirar a própria vida”, lamenta.

É PRECISO TER CUIDADO

Foi justamente para trazer à tona um assunto tão delicado que a campanha Setembro Amarelo foi criada. Precisamos falar a respeito desse tema, já que uma das formas de prevenção ao suicídio é poder conversar a respeito de ideações de morte com pessoas de confiança. Se for você a pessoa precisando de ajuda, procure auxílio, de preferência com um profissional especializado. Em muitas capitais brasileiras, estão sendo oferecidos serviços online gratuitos com profissionais habilitados durante esse período de pandemia. Pesquise a respeito e não fique sozinho nessa batalha.  Outra opção é o CVV, que atende 24h pelo número 188, com voluntários treinados. 

MAIS INDICAÇÕES DE LEITURA
Se o seu desejo é ter informações confiáveis sobre depressão e saúde mental

O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon

Trecho selecionado:

“A depressão existe […] tanto como um fenômeno pessoal quanto social. Para tratar a depressão é preciso entender a experiência de um colapso mental, o modo de ação dos medicamentos e as formas mais comuns de terapia falada (psicanalítica, interpessoal e cognitiva). […] Um tratamento inteligente requer um exame atento de populações específicas: a depressão tem variações significativas entre crianças, idosos e cada um dos gêneros. Os dependentes químicos formam uma grande subcategoria própria. O suicídio, em suas muitas formas, é uma complicação da depressão. É fundamental entender como a depressão pode ser fatal.”

Leitura recomendada pela psicóloga Daniela Zanetti

Se você quer saber o que o capitalismo atual nos permite inferir sobre o futuro

Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo, de Branko Milanovic

Trecho selecionado:

“Ao longo da história, desde que se tem conhecimento, as comunidades sempre se diferenciaram em relação à remuneração e às oportunidades que ofereciam a seus cidadãos. Roma e Alexandria, por exemplo, viviam cheias de não nativos que haviam se mudado para lá em busca de empregos mais bem remunerados e melhores perspectivas de mobilidade ascendente. No entanto, a diferença entre sociedades ricas e sociedades pobres nunca foi tão grande como hoje.”

Indicação de Tércio Saccol, jornalista, professor universitário e integrante do Vós

Por fim, é importante destacar que o assunto não pode estar restrito apenas durante os dias da campanha Setembro Amarelo. O tema precisa ser tratado durante os 12 meses do ano.

Todas as vidas importam!

Imagem:  Grae Dickason/Pixabay

 

 

 

Voos Literários

Setembro Amarelo: o preconceito que mata

Flávia Cunha
19 de setembro de 2020
* Este é o segundo de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. O primeiro texto pode ser conferido aqui
“Não acredito que já fui o cara que talhou um sorriso no pulso porque não conseguia encontrar a felicidade, o cara que pensou que a encontraria na morte. Independente do que tenha levado meu pai a se matar […] preciso seguir em frente com as pessoas que não buscam saídas fáceis, que me amam o bastante para permanecerem vivas, mesmo quando a vida é horrível. Corro o dedo sobre a cicatriz sorridente, da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, feliz em tê-la como um lembrete para nunca mais ser tão otário.” 
TENTATIVA DE SUICÍDIO 

O trecho acima é do livro Lembra aquela vez, de autoria do escritor norte-americano Adam Silvera. A obra, destinada ao público jovem, aborda uma temática urgente e altamente sensível: o que leva um adolescente a tentar se matar? O enredo não entrega de cara o motivo, além do fato de sabermos que o pai do protagonista cometeu suicídio e, aparentemente, o jovem sentiu-se culpado por algum motivo.

PRECONCEITO

A reviravolta na história é o fato de o personagem ser gay e não ter aceitação paterna, o que o leva a buscar um padrão de “normalidade” depois da morte do pai. O livro, apesar de ter recursos fantasiosos, como um tratamento que apaga memórias (como no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças), retrata uma dura realidade.

IDEAÇÕES SUICIDAS

Especialistas alertam que pessoas LGBTQIA pensam mais em acabar com a própria vida do que os heterossexuais e cisgêneros. Isso porque há muito mais tensão devido à possibilidade de não aceitação, que pode transformar-se em um estresse crônico. Engana-se quem pensa que “ficar no armário” e agradar conservadores resolveria a questão. Tanto tentar esconder-se quanto ter coragem de expor-se em uma sociedade infestada pelo preconceito pode gerar uma sobrecarga mental, levando à depressão e ansiedade, aumentando as chances de chegar-se a uma atitude extrema, levada pelo desespero.

O QUE FAZER PARA MUDAR ESSE CENÁRIO?

A situação pode ser revertida com acolhimento e compreensão. Pesquisas relevam que a taxa de suicídio entre adolescentes LGBTQIA diminuí drasticamente quando a convivência em família e no ambiente escolar é permeada por respeito.  Por isso, é necessário falarmos sobre o risco de suicídio entre jovens, especialmente LGBT+, e a responsabilidade dos adultos nesse triste fato.  Preconceito pode mesmo matar! 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Pixabay/Reprodução

Voos Literários

Caio Fernando Abreu: “Eu quero a vida”

Flávia Cunha
12 de setembro de 2020

Neste sábado, 12 de setembro, o escritor da paixão, como foi descrito por Lygia Fagundes Telles, completaria 72 anos se estivesse neste plano. Parece clichê, mas o legado literário de Caio Fernando Abreu permanece vivo, mesmo ele tendo partido no já longínquo ano de 1996. A obra de Caio F. (como ele gostava de assinar em cartas, em uma referência ao livro e filme cult Christiane F.), atingiu um patamar de universalidade, por conseguir abordar temáticas que permanecem atuais.

SEM TABUS

Um desses assuntos é o suicídio. Enquanto o tema era considerado tabu até recentemente pela mídia brasileira, Caio teve coragem para abordá-lo. Há referências à ideação de morte em textos de obras como Inventário do Irremediável (lançado em 1970), O ovo apunhalado (publicado pela primeira vez em 1975) e Morangos mofados, livro mais conhecido do grande público e que fez sucesso desde seu lançamento, em 1982.

SOBREVIVER É MELHOR

As tentativas de suicídio não foram apenas conteúdo ficcional. Caio chegou a reconhecer, em  entrevista na década de 1980,  que havia tentado se matar, mas tinha percebido que a vida era a melhor escolha:

Você nunca pensou em suicídio?
Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.

Confira a entrevista completa aqui.

EU QUERO A VIDA

Antes disso, na década de 1970, Caio escreveu um poema em que cita a palavra suicídio, mas desde a primeira estrofe enfatiza a importância de permanecer vivo:

“(sem título)

Eu quero a vida.

Com todo o riscos

eu quero a vida.

Com os dentes em mau estado

eu quero a vida

insone, no terceiro comprimido para dormir

no terceiro maço de cigarro

depois do quarto suicídio

depois de todas as perdas

durante a calvície incipiente

dentro da grande gaiola do país

de pequena gaiola do meu corpo

eu quero a vida

eu quero porque quero a vida.

É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu

deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal

certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.

Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.

A VIDA

À VIDA.”

Para quem ficou interessado em conhecer a faceta poética do escritor, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreude Letícia Chaplin e Marcia Ivana de Lima e Silva, reúne mais de 100 poemas do autor.

Este é o primeiro de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Acervo Caio F. Abreu – DELFOS/PUCRS.

 

 

Voos Literários

A Revolta da Vacina e o coronavírus

Flávia Cunha
5 de setembro de 2020

Um protesto com adesão popular ocorrido no início do século 20 contra uma decisão presidencial entrou em destaque nos noticiários brasileiros da atualidade. Trata-se da Revolta da Vacina, lembrada pelo filho 03 de Jair Bolsonaro, ao retuitar um polêmico post do governo federal com a garantia de que a vacinação contra o coronavírus no Brasil, quando for possível, não será obrigatória.

Argumenta Eduardo Bolsonaro:

“Lembrou-me a Revolta da Vacina (contra varíola) em 1904 no Rio de Janeiro do prefeito Pereira Passos. Toma a vacina quem quiser. Isso é liberdade. Não é o papai Estado que vai te impor decisões sobre sua vida (ao menos o Estado federal)”,

OSWALDO CRUZ: ENTRE BARRICADAS E MICRÓBIOS

Para tentar entender melhor as circunstância deste protesto de 1904, no Rio de Janeiro, fui pesquisar uma fonte confiável de informação. E encontrei a biografia Oswaldo Cruz: entre barricadas e micróbios, de autoria de Moacyr Scliar. O médico sanitarista é uma das figuras centrais que motivou a Revolta da Vacina. Oswaldo Cruz era um defensor ferrenho da vacinação obrigatória da população contra a varíola, doença que era uma preocupação mundial em razão do alto grau de mortalidade na época. Porém, o motivo inicial para a organização dos protestos  não tinha relação com a ciência e, sim, com a política.

EPIDEMIAS X ECONOMIA

O presidente da República nesse período era Rodrigues Alves, um civil apoiado pela oligarquia do café e que tinha como uma das metas ao ser eleito o saneamento do Rio de Janeiro. A então capital federal era uma cidade assolada por diversas epidemias e, por isso, seu porto era considerado perigoso por estrangeiros, o que prejudicava a economia brasileira. 

Por isso, Rodrigues Alves tornou Diretor Geral de Saúde Pública o jovem médico sanitarista Oswaldo Cruz, um visionário que já havia estudado no Instituto Pasteur, na França, e que havia ingressado na faculdade de Medicina aos 15 anos. O que os dois não contavam, assim como o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nomeado por Alves, é que o Congresso Nacional fosse contrário a medidas como vacinar compulsoriamente a população.

INTERESSES POLÍTICOS

Apesar dos argumentos aparentemente científicos – positivistas afirmavam não acreditar em micróbios, por exemplo – o que havia por trás eram interesses políticos. Parlamentares de origem militar queriam retornar ao poder, saudosos dos governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Outros que também pretendiam aproveitar-se da situação para tentar desestabilizar a jovem República eram os parlamentares com ideais monarquistas. A imprensa também posicionava-se contrária à vacinação obrigatória, por considerá-la arbitrária.

Sobre o protesto, escreveu Moacyr Scliar:

“Tudo começou no dia 10 de novembro de 1904, com uma pequena manifestação contra a vacina. Estudantes saíram às ruas, gritando lemas de protesto e entoando canções satíricas. Houve confronto com a polícia, violência, prisões. À noite, a calma voltou à cidade – mas só aparentemente; já no dia seguinte, novas manifestações, e mais violência, desta vez acompanhada de troca de tiros, a indicar que o conflito se ampliava. No dia 12 o número de pessoas na rua cresceu consideravelmente. […] Em passeata, os manifestantes dirigiram-se ao Palácio do Catete. Tiros foram disparados contra o carro do comandante da Brigada Policial, o general Piragibe. As forças policiais investiram contra os manifestantes, o Exército entrou de prontidão. Rodrigues Alves […] se recusou a demitir o seu diretor de Saúde Pública [Oswaldo Cruz]; não se tratava de um funcionário comum, e, ademais, a vacina obrigatória estava apenas servindo de pretexto para a revolta contra o governo”

A ideia era que a Revolta da Vacina resultasse em um golpe de Estado, o que acabou não se concretizando, mas tendo um saldo  final de pelo menos 30 mortos, além de muitos feridos, presos e deportados. Porém, a imagem de Oswaldo Cruz jamais recuperou-se completamente perante a opinião pública. Scliar cita que, em 1912, quando o sanitarista ganhou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, as notícias que saíram na imprensa a respeito ainda o associavam à controvérsia da vacinação obrigatória.

A biografia escrita por Scliar encontra-se disponível na íntegra na biblioteca virtual Oswaldo Cruz, assim como outras obras relacionadas à trajetória do médico.

A IMPORTÂNCIA DA VACINAÇÃO

É importante lembrar que a varíola só foi erradicada completamente em 1980, após um esforço internacional, liderado pela Organização Mundial da Saúde, para a vacinação em massa. Em maio deste ano, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez a seguinte declaração

“enquanto o mundo confronta a pandemia de COVID-19, a vitória da humanidade sobre a varíola é um lembrete do que é possível quando as nações se reúnem para combater uma ameaça comum à saúde”.
O GOVERNO BRASILEIRO EM (NOVA) CONTRADIÇÃO

Por fim, não podemos esquecer que, um decreto presidencial assinado pelo próprio Jair Bolsonaro, no início da pandemia no Brasil, prevê como uma das medidas de contenção ao coronavírus a vacinação obrigatória. Ou seja, o governo agora parece apenas “jogar para a torcida” dos que têm medo da vacina.

Precisamos que a Ciência e o bom senso prevaleçam!

Imagem: Charge Jornal O Malho (1904)/Reprodução

Voos Literários

5 Livros para celebrar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica

Flávia Cunha
29 de agosto de 2020

Há 24 anos, o 29 de agosto é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Nessa data, em 1996, foi realizado o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas. Com o passar dos anos, a data foi se fortalecendo em meio à militância e seus apoiadores, ficando o próprio mês de agosto marcado por ações e iniciativas para tornar mais visível para a sociedade o “L” da sigla LGBTQIA+.

UMA LUTA NECESSÁRIA

Mas por que datas como essa são necessárias, você aí, heterossexual, pode estar se perguntando. Porque o amor entre iguais muitas vezes é motivo de preconceito e violência. No caso de mulheres, são inúmeros os relatos de casos de agressão por uma mera demonstração de carinho em público. Por isso, é necessário dar cada vez mais visibilidade ao tema, para mostrar o que deveria ser óbvio: toda forma de amor deve ser respeitada.

REPRESENTATIVIDADE IMPORTA

Em entrevista para a coluna Voos Literários, a produtora cultural e livreira Ariane Laubin, de 40 anos, ressalta que ainda é necessário dar visibilidade às mulheres lésbicas, que até em eventos e nos movimentos LGBTs não têm tanta representatividade. “As paradas de orgulho ainda têm, inclusive na programação artística, poucas mulheres lésbicas. Há pouca representatividade nesse sentido. Por isso, cada vez mais precisamos marcar o agosto como o mês da visibilidade lésbica.”

Ariane é casada com Bia Garbelini desde 2016. As duas são mães da Sofia, pré-adolescente com Síndrome de Williams. “A maternidade lésbica existe e não está dentro de padrões fechados em caixas”, ressalta. 

CONVIDADA ESPECIAL

Fiz o convite para Ariane Laubin indicar livros em que a temática lésbica é apresentada de alguma forma. Ela pontuou como iniciativas como essa contribuem para dar mais visibilidade à questão e enviou 5 obras sobre o assunto. Abaixo, seguem as indicações, com sinopses e breves comentários escritos pela colunista aqui.

Bem-vindos ao paraíso
Autora: Nicole Dennis-benn

Sinopse: Em um resort luxuoso nas belas praias de areia branca da Jamaica, Margot luta para manter Thandi, sua irmã mais nova, na escola. Ensinada desde pequena a usar o corpo para sobreviver, ela está determinada a proteger Thandi do mesmo destino. Mas quando a construção de um novo hotel ameaça sua vila, Margot enxerga uma oportunidade de independência financeira e a chance de admitir um segredo chocante: seu amor proibido por outra mulher.

Comentário: É o romance de estreia da escritora jamaicana Nicole Dennis-benn, lançado em 2016. A obra foi considerada Melhor Livro do Ano pelo jornal The New York Times. A escritora é reconhecida por abordar a questão lésbica em suas obras, em uma perspectiva feminista. Também é autora do romance Paty, lançado em 2019.

Carol
Autora: Patrícia Highsmith

Sinopse: Em plenos anos 50, a escritora Patricia Highsmith lançou ‘Carol’ – primeiro romance que aborda uma relação amorosa entre mulheres com um final feliz. O polêmico livro foi publicado na época como ‘The price of salt’, sob o pseudônimo de Claire Morgan. Na história, Therese Belivet trabalha como vendedora na seção de bonecas de uma loja de departamentos. O emprego funciona como um bico para juntar dinheiro – o que ela de fato quer é construir uma carreira como cenógrafa de teatro.

É época de Natal em Nova York, e a loja está lotada. Em meio a tantos rostos desconhecidos, Therese fica hipnotizada ao ver uma distinta cliente se aproximar. É Carol. Assim começa o romance entre a jovem Therese e Carol – recém-separada e mãe de uma filha -, um amor repentino e fatal, que se transforma em uma constante troca de experiências. Mas, numa tentativa de escapar dos olhares reprovadores dos amigos e familiares, elas saem de carro em uma viagem pelos Estados Unidos. Essa aventura acaba se tornando perigosa quando elas percebem que estão sendo seguidas por um detetive.

Comentário: A obra ficou mais conhecida do grande público após a adaptação para o cinema, em 2015. O longa-metragem é estrelado por Cate Blanchett e Rooney Mara, com direção de Tood Haynes. O filme teve boa repercussão e recebeu seis indicações ao Oscar, incluindo melhor roteiro adaptado, além de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante, entre outros categorias. 

Aimée e Jaguar
Autora: Érica Fischer

Sinopse: Aos 29 anos, Elisabeth Wust, a Lilly, é uma típica dona de casa alemã. Casada com um funcionário do governo, tem quatro filhos pequenos, uma rotina de classe média. Com 21 anos de idade, Felice Scheagenheim é o oposto de Lilly. Culta, segura e refinada, um símbolo de mulher independente. Estamos em Berlim, em 1942, o chanceler é Adolf Hitler, e Felice, judia, está na clandestinidade para tentar sobreviver. Apesar de tudo, as duas mulheres se apaixonam, tendo como trilhas sonoras marchas militares, num cenário de bombardeios. Na primavera de 1943, Felice se muda para a casa de Lilly. ‘Aimée & Jaguar’, como passaram a se chamar, conta a história de amor entre as duas mulheres.

Comentário: O livro é baseado em fatos reais, o que torna a história ainda mais interessante. A autora, Érica Fischer, é jornalista e fez um trabalho de pesquisa que resultou na obra, lançada em 1994. Ela analisou cartas, diários e poemas trocados entre as protagonistas dessa história de amor. Também entrevistou amigos ainda vivos das duas mulheres para conseguir apresentar detalhes dos fatos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.  

Amora
Autora: Natalia Borges Polesso

Sinopse: Seria pouco dizer que os contos de Amora versam sobre relações homossexuais entre mulheres. Também estão aqui o maravilhamento, o estupor e o medo das descobertas. O encontro consigo mesmo, sobretudo quando ele ocorre fora dos padrões, pode trazer desafios ou tornar impossível seguir sem transformação. É necessário avançar, explorar o desconhecido, desestabilizar as estruturas para chegar, enfim, ao sossego de quem vive com honestidade.

Comentário:  A obra foi premiada com o Jabuti de melhor livro, entre outras distinções. Em maio de 2020, a versão em inglês do livro da escritora gaúcha foi lançado nos Estados Unidos e Reino Unido. Em suas redes sociais, Natalia Borges Polesso comentou, em uma postagem sobre a publicação de sua obra traduzida para o inglês: “Eu queria escrever um livro com histórias nas quais eu pudesse me reconhecer. Queria fazer uma boa ficção também. […] Queria me sentir um pouco Caio [Fernando Abreu], um pouco Cassandra [Rios], um pouco Clarice [Lispector].”

Tomates Verdes Fritos
Autora: Fannie Flagg

Sinopse: Combinando humor irresistível a uma narrativa comovente, Fannie Flagg usa capítulos curtos que alternam épocas — a década de 1980, as primeiras décadas do século XX, os anos 1930 — e histórias superpostas para criar um rico painel humano e social. O livro mistura as histórias do Café da Parada do Apito com os encontros casuais entre a dona de casa infeliz Evelyn Couch e a octogenária sra. Threadgoode numa casa de repouso. As protagonistas das memórias da sra. Threadgoode são Idge e Ruth, donas do Café, que quebram convenções e enfrentam todo tipo de ameaças e preconceitos. Ao longo de suas conversas, Evelyn acaba recuperando sua identidade e a sra. Threadgoode retoma seu próprio passado.

Comentário: A obra não é abertamente lésbica, porém a história de amor fica nas entrelinhas. Na adaptação para o cinema, o relacionamento lésbico é praticamente invisibilizado. A atriz Mary-Louise Parker comentou, em uma entrevista, que pediu muitas vezes para que Jon Avnet, diretor do longa-metragem lançado em 1991, mostrasse claramente o romance entre sua personagem Ruth e Idgie, interpretada pela atriz Mary Stuart Masterson. Não foi atendida em seu pedido. As duas são mostradas no filme como grande amigas.

Azul é a cor mais quente
Autora: Julie Maroh

Sinopse: Tradução da novela gráfica “Le bleu est une couleur chaude”, da francesa Julie Maroh. O livro conta a história de Clementine, uma jovem de 15 anos que descobre o amor ao conhecer Emma, uma garota de cabelos azuis. Através de textos do diário de Clementine, o leitor acompanha o primeiro encontro das duas e caminha entre as descobertas, tristezas e maravilhas que essa relação pode trazer. A novela gráfica foi lançada na França em 2010, já tem diversas versões, incluindo para o inglês, espanhol, alemão, italiano e holandês, e ganhou, em 2011, o Prêmio de Público do Festival Internacional de Angoulême.

Além disso, foi filmada em 2012 pelo franco-tunisiano Abdelatiff Kechiche e levou a Palma de Ouro, prêmio mais importante do Festival de Cannes. Em tempos de luta por direitos e de novas questões políticas, Azul é a cor mais quente surge para mostrar o lado poético e universal do amor, sem apontar regras ou gêneros.

Comentário: A versão em quadrinhos que inspirou o filme homônimo é considerada muito mais apropriada para mostrar a história de amor entre Emma e Clementine, além de ter mais profundidade e delicadeza . Alguns críticos apontaram o fato de que o filme aborda o romance lésbico por uma perspectiva heteronormativa e masculina. Além disso, no ano passado, foram divulgado os sistemáticos abusos do diretor com as duas atrizes durante as gravações do filme.

Imagem: Reprodução/Internet

Voos Literários

Livros sem taxação: um dos legados de Jorge Amado

Flávia Cunha
22 de agosto de 2020

A absurda proposta de taxação de livros no Brasil, sob a alegação de que tratam-se de produtos para a elite, trouxe à tona o histórico da isenção de impostos para o setor livreiro. Pois foi durante a constituinte de 1946, que um jovem deputado, já famoso como escritor, apresentou uma emenda sobre o assunto. Trata-se de Jorge Amado, que elegeu-se pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). 

ROMANCISTA DO POVO

O escritor recordou sua curta mas marcante trajetória política em Navegação de Cabotagem, livro de memórias publicado em 1992:

“Em janeiro de 1946 tomei posse na Câmara Federal de Deputados da cadeira para a qual fora designado pelos votos dos eleitores de São Paulo. Assumira com Prestes o compromisso de exercer o mandato durante três meses, voltando em seguida a meu trabalho de escritor. Fiquei dois anos, até que, num dia de janeiro de 1948, fomos expulsos do Parlamento, eu e meus companheiros de bancada.”

Outra emenda de Jorge Amado que manteve-se na Constituição de 1988 foi a liberdade de culto religioso, outro assunto que vem sendo colocado em risco com a ascensão da extrema-direita ao poder. 

Para saber mais sobre a trajetória de Jorge como político, acesse aqui.

UM FUTURO COM MENOS LIVROS

O legado de Jorge Amado em relação à isenção tributária dos livros permaneceu intacto durante décadas, tendo sido respeitado inclusive durante os longos anos de ditadura militar. O que parece estar em curso pela proposta do ministro da economia, Paulo Guedes, é um projeto de país onde o poder de escolha sobre a leitura fica restrito à elite. Já os mais pobres, merecem apenas livros doados pelo governo. 

Entre as perguntas que ficam a respeito dos frágeis argumentos para a taxação de livros (e a manutenção da isenção sobre outros produtos e bens de luxo), destaco duas: 

  1. Quais seriam os critérios para a escolha das obras que seriam doadas aos que não têm dinheiro para a compra? 
  2. Haveria uma curadoria disposta a escolher autores negros, periféricos, mulheres e LGBTQA+?

Além disso, vivemos um momento de crise no setor editorial e livreiro. A taxação poderia significar o fim de uma cadeia produtiva já fragilizada, em um país que têm, historicamente, baixos índices de leitura. Em um cenário desolador como esse, não podemos permitir mais uma tentativa de fragilizar (ainda mais) a Educação e o acesso à leitura no Brasil.

#defendaolivro
#naoataxacaodelivros

Imagens: Reprodução/Internet

Voos Literários

Todas: poética feminina e feminista

Flávia Cunha
15 de agosto de 2020
TODAS
Cansaram de esperar chegar o dia
Quando a voz da autoridade
Não por medo ou piedade
Lhes diria
Que finalmente poderiam
Desfrutar a liberdade
Nas entranhas mais profundas
Nas vontades fecundas
Sorveram a coragem tribal
O mesmo fogo carnal
Acalentou as memórias
Resgatou as histórias
Da mulher original
Nesta fonte elemental
De beleza sem igual
Juntaram-se às demais
Todas as fêmeas surgiram
Em coro silencioso rugiram
O brado atemporal
‘Nenhuma a menos’ jamais.

O texto acima é de autoria da poeta Daniela Boeira Espíndola e foi escrito especialmente para publicação aqui na coluna Voos Literários. Residente em Porto Alegre (RS), a poeta começou a escrever em suas redes sociais após ficar em isolamento devido ao diagnóstico de Covid-19, há alguns meses. Sozinha em seu quarto, restaram os anseios, angústias e o desejo de expressar-se de alguma forma.

Surgia, assim, o hábito diário de postar poemas com temáticas diversas, mas com o feminino e o feminismo como uma constante.  Daniela também escolhe uma imagem de algum artista plástico de sua preferência para publicar junto com cada texto. Para a poesia escrita para o Vós, sua reflexão partiu do despertar coletivo feminino, que busca resgatar a força no sagrado. A imagem escolhida para acompanhar o poema “Todas” é de Jean Fry,  uma artista que tem como inspiração as mulheres indígenas norte-americanas.

ENTREVISTA

Para quem ficou curioso para ler mais textos da poeta, informo que, por enquanto, ela não tem livros publicados. Espero que após a repercussão positiva em torno de seu trabalho, essa situação mude em breve. Da minha parte, asseguro que a qualidade literária de seus poemas é evidente, como vocês podem conferir em seu perfilRecentemente, Daniela e sua filha Glória, que é musicista, participaram de uma entrevista no perfil da minha produtora no Instagram. Na live, a poeta comenta seu processo criativo e lê alguns de seus textos, entre outros assuntos.

Imagem de capa: Women’s Circle Mandala – Jean Fry/Reprodução 

 

Voos Literários

Diário da Pandemia

Flávia Cunha
8 de agosto de 2020
Nessa semana, fui convidada para contribuir com um texto no Diário da Pandemia. O projeto, que começou no início do isolamento social, publica, a cada dia, as impressões de uma pessoa diferente sobre esse momento triste e estranho que vivemos.
QUERIDO DIÁRIO

Optei por escrever em um estilo bem confessional, como se estivesse desabafando em um caderninho, como muito fiz na infância e adolescência. Só que os tempos são duros e as reflexões acabam sendo muito relacionados à disseminação do coronavírus e suas graves consequências. O texto foi publicado nesse sábado no Diário da Pandemia e começa assim:

“Querido diário, falo do futuro. Não por ter conseguido fabricar alguma máquina do tempo. Mas é para os dias que ainda estão por vir que me remeto, quando fico mais triste nessa quarentena interminável. Me projeto mentalmente para algum momento de 2021 no qual a vida de todos esteja um pouco menos cinzenta, sem a sombra de um balanço diário de mortes por um vírus que desestabilizou o planeta.”  Leia o texto completo aqui.
FÉ E PANDEMIA

Por coincidência, a editora-chefe do Vós, Geórgia Santos também foi convidada nesta semana a participar do projeto. O texto da Geórgia faz uma relação entre a fé e a pandemia. Nesse trecho, quase no final do relato, ela reflete a forma como o momento atual acabou mudando sua forma de lidar com a religiosidade (e não vou  revelar a maneira exata como a Geórgia faz isso porque a leitura do texto inteiro vale muito):

[…] eu resolvi fazer as pazes com a religião como uma forma de lidar com a ansiedade, a dor e a raiva que essa pandemia me traz. Resolvi fazer as pazes com a Igreja Católica para tentar espantar o ódio por quem coloca a vida dos outros em risco, a frustração por não ter um governo inteiro, o medo de perder alguém querido, a tristeza por quem já precisou passar por isso.”  Leia o texto completo aqui.
DIÁRIO COLETIVO

O projeto foi criado pela escritora Julia Dantas, a partir do desejo de ter um diário coletivo em uma forma de registrar os anseios e agonias do período atual, por meio do que pode ser considerado como micro-história. Na estreia do Diário da Pandemia, em 18 de março, Julia comenta: 

“As coisas às vezes parecem muito normais, às vezes muito estranhas, e essa oscilação já é, em si, um estranhamento gigante.
Esse diário começa hoje.”

Os relatos são em formatos diversos e já ultrapassam 140 dias (e pessoas envolvidas). Parabéns, a Julia Dantas e ao Felipe Franke, organizadores da iniciativa. Que o Diário da Pandemia siga nos amparando nesses dias tão difíceis. 

*  PS: Enquanto escrevia esse texto, foi noticiada a triste marca de 100 mil mortos no registro oficial de vítimas do coronavírus no Brasil. Todo o meu respeito aos mortos e minha solidariedade às famílias das vítimas.

Imagem: Skeeze/Pixabay

Voos Literários

A distopia da ficção e da vida real

Flávia Cunha
31 de julho de 2020
O BRASIL ATUAL É UMA DISTOPIA?

Escrevo esse texto enquanto se aproxima mais um final de semana de distanciamento social devido à pandemia do coronavírus. Sei que nem todo mundo tem o privilégio do home office como eu, que muitos trabalham na linha de frente do combate à doença ou em profissões que exigem a saída às ruas. Porém, considero imprudente e difícil de compreender o comportamento de quem nega a gravidade do atual momento e frequenta praças, parques, beira-mar ou a casa de amigos e familiares nos dias de folga. 

Às vezes, me parece que o que enfrentamos no Brasil atual é o enredo de uma distopia, e não a vida real. Com essa ideia em mente, pesquisei obras nacionais com essa temática para tentar entender a cegueira seletiva dos brasileiros em relação ao risco de contaminação pela Covid-19.

E SE AS PESSOAS PUDESSEM ENXERGAR O PROBLEMA?

Na distopia A Torre Acima do Véu, de Roberta Splinder, lançado em 2015, a causa da contaminação é visível: uma inexplicável neblina tóxica. Mesmo com a névoa sendo perceptível a olho nu, as autoridades tentam minimizar o problema:

“O homem engoliu em seco, mas não recuou. Ficar dentro da névoa não era uma opção. Se num único dia a situação já se encontrava daquele jeito, com pessoas saindo às ruas e pregando o fim do mundo, a tendência era só piorar. Além disso, os boatos dos efeitos da névoa o assustavam demais. Seu apartamento pertencia a um prédio mais baixo, construção antiga que foi engolida pela neblina, não queria ficar ali e acabar morrendo envenenado. Tinha que subir, sair daquelas brumas cinzentas de qualquer jeito. Cerrou os punhos, pronto para um inevitável embate. 
– Você não pode nos deixar aqui fora – gritou. – Por favor, tem gente sufocando com a névoa. É perigoso.
– Ninguém sufocou. As transmissões não falaram nada disso – o segurança atalhou depressa, trocando olhares nervosos com seus outros companheiros. Nenhum deles usava máscara de gás. Se a névoa fizesse mal à saúde, estavam tão condenados quanto as pessoas que intimidavam.” 
E COMO SERIA SE A CORRUPÇÃO FOSSE A CAUSA DE UMA EPIDEMIA?

Esse é um dos destaques do romance Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela, de Ignácio Loyola Brandão, lançado em 2018. O autor, que ocupa a cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras desde março de 2019, já escreveu outras obras dentro do gênero da distopia, como Zero e Não Haverá País Nenhum. Dessa vez, o escritor cria um futuro em que os brasileiros são vigiados desde o nascimento por tornozeleiras eletrônicas e o país enfrenta diferentes contaminações, entre elas a Corruptela Pestífera:

“A população se habituou a carregar máscaras, usadas quando caravanas fecham cruzamentos. Nas laterais, adesivos gigantescos:
Esta caravana é um empreendimento do governo para o bem?estar da população. 
Impacientes, as pessoas buzinam, as caravanas demoram.  A marcha é lenta, nada pode interrompê?la. Até quando vamos suportar esses trens? Pior são as composições especiais que transportam os mortos pela Corruptela Pestifera. A epidemia ocasionada pela corrupção dos parlamentos, do Judiciário, dos ministérios, das secretarias, das confrarias de lobistas, dos doleiros, dos empresários que negociavam leis, provocou uma doença incurável, pior do que o câncer, a gripe espanhola, a peste negra, a aids. Morrem milhares.”
O BRASIL 2020 É UMA DISTOPIA?

Voltando à nossa realidade, causa cada vez mais espanto a quem acredita na Ciência a tranquilidade de quem usa máscara no queixo, promove aglomerações e está em um clima festivo quando ultrapassamos a triste marca oficial de 90 mil mortos. Será que se existisse a Corruptela Pestífera imaginada pelo genial Ignácio de Loyola Brandão haveria tamanha negação da realidade por parte dos governantes? Teríamos tanto descaso por uma parcela cada vez maior da população, composta por inconsequentes de diferentes faixas etárias e classes sociais?

UM PS NECESSÁRIO:

Não tenho síndrome de vira-lata e observo essa falta de consciência e empatia não apenas no povo brasileiro. Basta lembrarmos das imagens dos pubs londrinos lotados logo após a quarentena e da segunda onda de contaminação que já atinge alguns países europeus. 

A mim, só resta lamentar essa triste realidade, escrever textos de alerta e seguir confinada. Aos companheiros de isolamento social, desejo persistência.
#vaipassar 

Imagem: Capa do disco Dystopia, da banda Megadeth/ Reprodução

Voos Literários

Os elitistas arrogantes de um país desigual

Flávia Cunha
25 de julho de 2020

Muito já se falou sobre a postura do “Você sabe com quem está falando?” em fiscalizações de cumprimento de decretos para conter o avanço do novo coronavírus. Nos episódios mais simbólicos, o do engenheiro que se recusava a ser chamado de cidadão e o do desembargador que tratava como analfabeto o guarda municipal, os elitistas se deu mal. A mulher do engenheiro foi demitida do emprego público que ocupava no Rio de Janeiro – já que a fala grosseira partiu dela – e descobriu-se depois que ele nem estava trabalhando na área, tendo recorrido ao auxílio emergencial do governo para sobreviver.  Elitistas arrogantes e de fachada, nesse caso. Já o desembargador, que ao longo de décadas envolveu-se em diversas situações de abuso de autoridade, viu-se obrigado a dar desculpas públicas para os guardas municipais atingidos por seus insultos. 

A ATUALIDADE DE LIMA BARRETO

Esses exemplos de comportamentos elitistas não são casos isolados decorrentes do momento atual. A pandemia apenas colocou em evidência um comportamento recorrente na elite brasileira e que, certamente, não é recente. Um registro literário da arrogância decorrente da titulação e do consequente status derivado disso está no livro Os Bruzudangas, de Lima Barreto, lançado pouco depois de sua morte, em 1922. A obra está disponível, na íntegra, no site Domínio Público.

As crônicas sobre um país ficcional lembram muito o Brasil do século 21:

“A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não. Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores.”

Como podemos perceber no trecho acima, Lima Barreto foi um grande crítico social de sua época. Em muitas de suas obras, denunciava que o fim do Império e a Primeira República não beneficiaram as camadas mais pobres da população, ao manter privilégios de militares e da aristocracia brasileira. Cem anos depois, pouca coisa parece ter mudado em Bruzundanga.

Mas seguimos na luta para virar esse jogo e fazer os elitistas respeitarem o artigo quinto da Constituição Brasileira: 

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
PARA IR ALÉM

Machado de Assis também foi outro grande crítico do elitismo na sociedade brasileira. O jurista e sociólogo Raymundo Faoro fez uma  análise da obra machadiana por essa perspectiva no livro Machado de Assis – a pirâmide e o trapézio.

Imagens: Reprodução/Internet