Voos Literários

Precisamos salvar a casa de Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
26 de outubro de 2021

A casa onde morava o escritor Caio Fernando Abreu, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, corre, mais uma vez, o risco de deixar de existir. Vazio, o imóvel está sendo depredado na parte externa por ladrões. O futuro do imóvel, no entanto, pode ser ainda pior do que apenas os furtos cometidos ao longo dos últimos dias. Já que a informação é de que a casa, localizada na rua Oscar Bittencourt, foi vendida para uma construtora, assim como outra moradia vizinha. Dessa forma, parece ser iminente a derrubada de um espaço de memória afetiva e literária de um dos maiores escritores brasileiros da atualidade. 

Algo ainda pode ser feito?

Em 2010, quando a antiga residência de Caio F. foi posta à venda, iniciou-se a campanha Salve a Casa do Caio Fernando Abreu. O movimento, apesar de ter sido expressivo e importante, acabou não atingindo seu objetivo: transformar o lugar em um centro cultural para celebrar o escritor. Na época, virou a casa de uma família, que procurou preservar, à sua maneira, a história do célebre ex-morador.

Memória afetiva e literária em risco

Uma década depois, o risco é ainda maior. Isto porque a demolição é o destino padrão de casas adquiridas por construtoras. Porém, será padrão e banal o passado que envolve esse imóvel? Apesar de o sobrado, em estilo espanhol, não ser uma referência em termos arquitetônicos, acredito que merece ser salvo por outros motivos. Como se sabe, o conceito de patrimônio histórico ultrapassa a questão material. É Memória, é História, é Cultura.

Além disso, a casa foi imortalizada na escrita do autor, em especial no livro Pequenas Epifanias. Era a residência de sua família há muito tempo e foi para onde retornou, em 1994, quando teve o diagnóstico de HIV confirmado. Nesse local, Caio redescobriu-se. Ali, tornou-se jardineiro e sua paixão por flores viraram pujantes textos sobre a luta pela vida, como em A morte dos girassóis:

“[…] tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera.”

Neste vídeo, é possível ver a casa de Caio F. antes da reforma promovida pelo proprietário mais recente do imóvel.

Luta pela memória

Porto Alegre é uma cidade que enfrenta inúmeros problemas. Entre eles, a dificuldade de preservar espaços de memória. Ainda há tempo para lutarmos pela criação de um local que possa abrigar não apenas homenagens ao escritor, mas ser um centro de cultura no bairro Menino Deus, área da capital gaúcha cada vez mais carente de atrativos nesse sentido. Aos admiradores de Caio, ressalto que considero sua importância maior do que a casa onde viveu. Mas acredito que Porto Alegre merece um local para celebrar o autor e sua obra.

É possível preservar?

Certamente, se houver interesse da construtora, ainda há possibilidade de se impedir a demolição do sobrado. Sem dúvida, seria um diferencial essa atitude da empresa, ao se tornar uma apoiadora da Arte. Em termos práticos, a preservação poderia ser parcial – a avaliação desta viabilidade deixo aos técnicos da área – ou total. Também sugiro que, ao invés de um novo espaço, a casa de Caio F. abrigue alguma instituição pública da área cultural que esteja em funcionamento em imóvel alugado. Exemplo disso é o Instituto Estadual do Livro, conforme me informa o amigo e historiador João de Los Santos. De qualquer forma, a ideia está lançada e espero não estar sozinha nesse desejo de preservação.

Caio Fernando Abreu e sua importância literária

O escritor da paixão, como uma vez foi chamado por Lygia Fagundes Telles, teve seus primeiros livros publicados em 1970. São eles: Inventário do ir-remediável, Limite branco e Roda de fogo (antologia com outros escritores do Rio Grande do Sul). Cinquenta e um anos depois, o autor segue com leitores fiéis, mesmo que sua partida precoce tenha ocorrido no já distante 1996.

Gaúcho de Santiago do Boqueirão, morador de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, com passagens pela Europa, a obra do autor é considerada por especialistas como universal e com evidente qualidade estética. Seu maior sucesso editorial foi Morangos Mofados, mas sua escrita é mais diversa e rica do que somente os contos pelos quais é geralmente lembrado. Ao longo da vida, Caio escreveu romances, textos teatrais, crônicas e poemas. Seu legado ganhou novos leitores nas redes sociais e demonstra a atualidade das temáticas abordadas, como a solidão urbana. 

Obras de Caio Fernando Abreu, por data de lançamento:

  • Limite branco (1970)
  • Inventário do irremediável (1970)
  • O ovo apunhalado (1975)
  • Pedras de Calcutá (1977)
  • Morangos mofados (1982)
  • Triângulo das águas (1983)
  • Os dragões não conhecem o paraíso (1988)
  • As frangas (1988)
  • A maldição do Vale Negro (1988)
  • Onde andará Dulce Veiga? (1990)
  • Ovelhas negras (1995)

Livros lançados após a morte de Caio

1996 – Pequenas Epifanias

1996 – Estranhos estrangeiros

1997 – Teatro completo

2002 –  Caio Fernando Abreu: cartas, com organização de Italo Moriconi

2005-6 – Três volumes da série Caio 3D, seleção da obra das décadas de 1970, 1980 e 1990, com alguns textos inéditos

2009 – Para Sempre Teu Caio F., cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, de Paula Dip

2012 –  A vida gritando nos cantos, seleção de crônicas inéditas, e de Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu, organização de Letícia Chaplin e Márcia de Lima e Silva

2018 –  Contos Completos, de Caio Fernando Abreu

Imagem: Sandra La Porta

Voos Literários

Hitler em bolo é a História que não pode se repetir

Flávia Cunha
19 de outubro de 2021

A foto de Hitler estampada em um bolo de aniversário circulou na Internet nesta semana. Com certeza, o incidente preocupa quem compreende a gravidade da apologia ao nazismo. O fato veio à tona pois não houve preocupação em esconder nada. Foi a própria aniversariante, uma aluna do curso de História da Universidade Federal de Pelotas, de 24 anos, quem postou a imagem nas redes sociais.

Enquanto a polícia investiga o ocorrido, a UFPEL informou, em nota, repudiar qualquer apologia ao nazismo ou outra forma de discriminação. Sempre vale lembrar, a pena é de 2 a 5 anos de reclusão para esse crime, que não deve ser confundido com tentativa de censura.

Conjuntura brasileira

O que, no meu entender, chama mais a atenção no episódio do bolo com o rosto de Hitler é o contexto em que tal exaltação ocorre. Estamos na fase de conclusão de uma CPI que demonstrou as atrocidades cometidas durante a pandemia que – em muito – lembram os horrores do nazismo.

Nesse panorama, julgo ser no mínimo uma demonstração de desconexão da realidade e negacionismo enaltecer uma figura que promoveu o genocídio em campos de concentração. Além disso, admirar o legado de um líder racista, homofóbico e xenófobo é incrivelmente perigoso no momento político atual do Brasil. Para piorar, essa homenagem ter vindo de uma estudante de História parece uma piada de mau gosto. 

Por isso, considero essencial que estejamos atentos ao passado, para evitar que fatos históricos sejam distorcidos, apagados ou relativizados.

Sobre a tirania

Um livro interessante para refletir sobre o assunto é Sobre a tirania, vinte lições do século XX para o presente, de Timothy Snyder. Na obra, o historiador demonstra a importância de aprendermos com experiências autoritárias, para que os mesmos erros não sejam cometidos novamente.

Snyder destaca, no trecho abaixo, como nem sempre os eleitores estão atentos ao riscos de escolher um líder com características antidemocráticas:

“O protagonista de um romance de David Lodge diz que quando faz amor pela última vez, você não tem como saber que é a última. Com o voto, acontece o mesmo. Alguns alemães que votaram no Partido Nazista em 1932 sem dúvida se deram conta de que aquela poderia ser a última eleição razoavelmente livre durante algum tempo, mas a maioria não percebeu isso.”

A História ensina?

De acordo com o autor, a História não se repete, mas ensina. Espero mesmo que ele esteja certo. Pois ver tantos neonazistas saindo do armário no Sul do Brasil ao longo dos últimos anos é desanimador.

Espero que ao menos no caso da estudante da UFPEL a justiça seja feita, para servir de lição a quem comete crimes de ódio, como a apologia ao nazismo.

Imagem: OpenClipart-Vector/Pixabay

 

Voos Literários

Por que Fernanda Montenegro na ABL gera controvérsias?

Flávia Cunha
12 de outubro de 2021

Bastou o anúncio da atriz Fernanda Montenegro concorrendo – sem oponentes – a uma vaga na Academia Brasileira de Letras para que questionamentos fossem levantados. Ela não é escritora, bradam os conservadores que abominam a postura antibolsonarista de Fernanda. É injusto com Conceição Evaristo, questionam os antirracistas, em referência à candidatura da escritora mineira à ABL, na qual recebeu apenas 1 voto. 

Disparidade de gênero

De qualquer forma, a escolha de uma mulher para ocupar a vaga – ainda que branca e hetero – desperta atenção pela disparidade de gênero dentro da ABL. Dos atuais 40 imortais, apenas 5 são do sexo feminino. O ingresso da primeira escritora como integrante da tradicional (e elitista) instituição ocorreu apenas em 1977. A conservadora Rachel de Queiroz virou imortal desprezando o pioneirismo e afirmando não enxergar no feito uma vitória para outras mulheres por “não ser feminista”.  Além disso, era abertamente a favor do regime militar, o que foi considerado “um morde e assopra”. De um lado, a academia inovava ao finalmente ceder na questão de gênero, 80 anos depois de sua fundação. Do outro, não batia de frente com a ditadura ao eleger uma defensora de Ernesto Geisel.

Nesse sentido, a escolha de Fernanda Montenegro poderia ser uma sinalização de que os integrantes da ABL não estão dispostos a eleger alguém alinhado com Jair Bolsonaro. Apesar disso, na teoria, a Academia é apartidária e apolítica, mesmo com membros como José Sarney e Fernando Henrique Cardoso entre os atuais imortais. 

Fernanda Montenegro não é escritora

A ABL sempre abriu as portas para figuras célebres de outras áreas do conhecimento. Em retrospectiva histórica, um dos casos mais emblemáticos foi do pai da aviação Santos Dumont, na década de 1930, e, 60 anos depois, do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Ou seja, não é uma novidade a escolha de uma figura pública fora do universo da Literatura, mas que tenha publicado livros. Caso de Fernanda Montenegro, que lançou a autobiografia Prólogo, ato, epílogo, entre outras obras.

Conceição Evaristo

De setores mais à esquerda da sociedade, o anúncio de Fernanda Montenegro despertou um certo desconforto por recordar do incidente envolvendo Conceição Evaristo. Em 2018, a escritora mineira teve seu nome aclamado por parte do público, como uma reparação histórica pelo fato de uma mulher negra finalmente vestir o tradicional fardão de imortal.  Conceição, no entanto, ousou romper os rígidos protocolos da eleição, com telefonemas e envios de presentes aos integrantes da ABL. Como resposta, os membros da entidade não pouparam a rebeldia, já que são  favoráveis a toda pompa e cerimônias,

Hoje em dia, a escritora garante que não pretende lançar nova candidatura, porém não poupa críticas à postura da ABL.

Sem tantos “rapapés”

Fernanda Montenegro, por sorte, será poupada, em parte, da ingrata missão de pedir votos. Candidata única (os outros interessados, em respeito, retiraram seu nome do pleito), está em novo isolamento do alto de seus 91 anos, ainda em função da pandemia, com acesso dificultado à comunicação e tecnologia. Porém, enviará telegramas, uma praxe da qual os imortais não abrem mão em pleno século 21.

Viva Fernanda!

Por fim, considero que a Academia Brasileira de Letras tem muito mais a ganhar com a presença potente de Fernanda Montenegro como imortal do que ao contrário. Afinal, tem renome internacional e uma carreira artística sólida. Além disso, a atriz se mostra figura lúcida e forte no combate aos horrores políticos atuais. Por isso, sua eleição, em 4 de novembro, será bem-vinda, como um sopro de esperança.

Imagem: Facebook/ Reprodução

 

 

 

Voos Literários

Jetsons, Flintstones e o Brasil atual ou Rita Lee sabe das coisas

Flávia Cunha
28 de setembro de 2021

Era para a gente estar nos Jetsons e estamos voltando para os Flintstones”

Assim Rita Lee, a rainha do rock brasileiro, definiu o triste momento que vivemos no Brasil. A referência aos dois desenhos animados foi feita durante uma rara entrevista da artista publicada no jornal O Globo, no último domingo. No passado, quando imaginávamos o ainda distante século 21, pensávamos em carros voadores e casas suspensas como em Orbit City, moradia dos Jetsons. Contudo, o que vemos mesmo é a volta à barbárie, que combina mais com a Bedrock pré-histórica dos Flintstones.

E o que dizer de uma teoria que circula na Internet sobre os dois universos ficcionais serem contemporâneos? Será que isso também se aplicaria à realidade brasileira? Vamos primeiro analisar os desenhos animados. O estúdio Hanna-Barbera lançou Os Flintstones e os Jetsons na década de 1960, com grande sucesso mundial. Muitos fãs já defendiam que as duas histórias se passam no mesmo local, mas em épocas diferentes. 

Desigualdade social

Já os mais ousados asseguram que os Flintstones seriam os pobres do futuro, vivendo na superfície terrestre depois de algum cataclisma. Por isso, teriam hábitos nada neandertais, como assistir televisão, usar carros (ainda que precisem impulsioná-los com os pés) e terem eletrodomésticos rústicos, a partir da exploração animal. Porém, não teriam acesso a todo o conforto tecnológico dos Jetsons, com suas esteiras rolantes para evitar esforço para caminhar, robôs e diversos apetrechos que hoje em dia já são comuns, como chamadas de vídeo.

Sendo assim, os Jetsons e os demais moradores do espaço seriam os privilegiados daquela sociedade, vivendo isolados das pessoas comuns que estão na Terra. Se pensarmos no Brasil, o abismo social é ainda maior do que a comparação entre os Flintstones e os Jetsons. No duro mundo real, enquanto alguns ficam em filas para conseguir ossos, outros vivem cercados por luxo. Afinal, a pandemia só escancarou essa disparidade entre os muito ricos – que enriqueceram ainda mais – e os muito pobres – que ficaram ainda mais miseráveis. 

Rita Lee sabe das coisas

Como Rita Lee comenta na mesma entrevista, “é assustador ver gente no comando com mente tão ultrapassada”. Afinal, os conservadores de plantão, além da agenda contra as pautas identitárias, também querem a manutenção dos privilégios nas mãos dos mesmos de sempre.

E o povo? Que se distraía em frente à TV, como Fred Flintstone, e esqueça dos abusos de um chefe como o Sr. Pedregulho.  Porém, se o plano dos muito ricos se concretizar, mesmo em um universo de menos desigualdade ainda poderemos ser como George Jetson suportando os gritos de Cosmo Spacely, o irritado dono da empresa onde o personagem trabalha.

De onde vem a teoria

O livro 52 mitos pop, de Pablo Miyazawa, trata sobre essa e outras teorias mirabolantes e divertidas da cultura pop. Porque se é para criarmos teorias da conspiração, que sejam inofensivas como essa.

Imagem: Filme Os Jetsons e os Flintstones se encontram (1987)

Voos Literários

Paulo Freire, Google e o ódio bolsonarista

Flávia Cunha
21 de setembro de 2021

Paulo Freire ser um dos alvos do ódio bolsonarista não é novidade. Mas acusar de ideologia esquerdista uma multinacional norte-americana como a empresa Google por causa de Freire é um dos disparates recentes do clã do presidente da República. Tudo isso porque a Google resolveu, no último domingo, fazer uma homenagem ao centenário de Paulo Freire. Para isso, utilizou o recurso conhecido como Doodle, uma versão do logotipo da empresa usada para esse fim em datas especiais. 

Como reação, Eduardo Bolsonaro escreveu no Twitter que ninguém deveria estranhar se o próximo homenageado pelo Google fosse o ex-presidente Lula. Entretanto, o chilique do filho 03 é totalmente político, já que razões para homenagear Freire não faltam. Educador consagrado mundialmente, é considerado o patrono da Educação Brasileira, entre outros tantos feitos. 

Além disso, esse tipo de discurso bolsonarista é só mais uma das heranças da ditadura militar. Aos desavisados, vale lembrar que a perseguição a Paulo Freire começou em 1964, antes mesmo dele publicar o famoso A Pedagogia do Oprimido – o que faria 4 anos depois, durante exílio no Chile. 

Ditadura Militar

Desde o início do golpe militar, o método de educação de adultos proposto por Freire era considerado subversivo. No primeiro interrogatório, o então tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima insistia em saber se o pedagogo era comunista.  Afinal, sua proposta de alfabetização incentivava o pensamento crítico. Ibiapina Lima, não podemos esquecer, é um dos principais responsáveis por graves violações aos direitos humanos durante este período de repressão política. Dentro da lógica da ditadura, a prisão de Freire tinha como intenção principal colocar fim ao projeto de alfabetizar, através deste método libertário, 2 milhões de adultos em 20 mil pontos de cultura. Somente no Estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro), 6 mil pessoas estavam inscritas para participar das aulas. 

Esperança

Mesmo com as perseguições políticas e o exílio, Paulo Freire prosseguiu com seus ideais. Tinha consciência, no entanto, de não ser uma unanimidade, mesmo entre pessoas da área da Educação Em 1992, na apresentação do livro Pedagogia da Esperança, ele comentou sobre as acusações que sofria na América Latina:

“Criticavam em mim o que lhes parecia minha politização exagerada. Não percebiam, porém, que, ao negarem a mim a condição de educador, por ser demasiado político, eram tão políticos como eu. Certamente, contudo, numa posição contrária à minha. Neutros é que nem eram nem poderiam ser.”

Confira aqui uma reportagem do CPERS sobre Paulo Freire, com links para 17 obras gratuitas do Patrono da Educação.

Homenagem

Em abril de 2019, escrevi, aqui na coluna Voos Literários, a respeito da grave crise política que já enfrentávamos. No final deste texto, mencionei Paulo Freire.  

“Por fim, já que a Educação desse país tá de mal a pior e o governo federal só sabe nomear louco para esse ministério, só tenho uma coisa a dizer. Bom mesmo era no meu tempo de adolescência, em que Paulo Freire era secretário de Educação em São Paulo e não execrado publicamente como nesse século 21.”

Em tempo

Freire é o terceiro pensador mais citado em trabalhos acadêmicos no mundo. Por isso, a ignorância bolsonarista pode tentar negar sua importância, mas todos que prezam o pensamento crítico pensam ao contrário.

Viva Paulo Freire, eterno em seu legado! 

Voos Literários

MBL e o vale tudo contra Bolsonaro

Flávia Cunha
13 de setembro de 2021

O MBL bem que tentou. Mas os protestos contra Jair Bolsonaro realizados neste domingo (12) fracassaram em apoio popular. Porém, não é de hoje que o Movimento Brasil Livre parece perder força. Depois de seu auge, ao ter capitaneado o impeachment de Dilma Rousseff e dado apoio à candidatura de Bolsonaro, o MBL teve a relevância reduzida no cenário político.

Além disso, há uma evidente incoerência na atual ruptura do MBL com o presidente. As pautas ideológicas prosseguem bastante alinhadas ao bolsonarismo: defesa do armamento da população e Escola Sem Partido, por exemplo. Porém, o MBL chegou a protocolar pedido de impeachment como uma das medidas de repúdio a Bolsonaro.

Ainda que haja esse aparente afastamento, é inegável que a postura de integrantes do MBL é, sim, de extrema direita. Nomes como o do deputado Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, combatem o feminismo, as cotas raciais e atacam projetos sociais como do padre Júlio Lancelotti.

Dentro desse contexto, será mesmo viável uma terceira via democrática construída a partir de protestos organizados por grupos como o MBL? Até que ponto as presenças de Ciro Gomes (PDT), João Dória (PSDB) e Orlando Silva (PC do B), entre outros políticos de diferentes espectros, amenizam esse fato? A ausência do PT foi determinante para o fracasso dessas manifestações? 

Considero que estas são perguntas que serão respondidas até a campanha eleitoral de 2022. Mas o que não podemos é esquecer a origem do MBL e acreditar que vale tudo contra Bolsonaro. Afinal, trocar a extrema-direita bolsonarista por uma extrema-direita “jovem” e neoliberal está muito longe de ser a mudança necessária para tirar o Brasil da miséria e crise atual.

Recomendação literária

O livro MBL, crise política e conflitos de classe no Brasil, de Kiane Follmann da Silva, faz um resgate interessante da História recente. Além disso, a obra traça um paralelo do MBL com a UDN, partido conservador que atuou entre 1945 e 1965 no Brasil. Assim, a autora demonstra como a “nova política” do Movimento Brasil Livre não tem nada de inovadora, ao apostar no discurso de combate à corrupção. 

Em tempo

Vale lembrar que as manifestações deste domingo também foram convocadas pelo Partido Novo e o Vem pra Rua. Este movimento, inclusive, foi o responsável pelo maior desconforto para esquerdistas presentes ao ato na Avenida Paulista. Descumprindo ordens da organização, integrantes do Vem Pra Rua levaram um “pixuleco” de Lula com roupa de presidiário unido a Bolsonaro vestindo uma camisa de força, Apesar dos esforços em evitar o tom antipetista, isso parece inevitável.

Imagem: MBL/Facebook

Voos Literários

João e o pé sem feijão, uma história triste

Flávia Cunha
31 de agosto de 2021

O João da nossa história não tem um pé de feijão. Isso porque ele mora em uma área periférica de uma grande cidade, em uma república assolada por uma pandemia e massacrada por um governo federal mesquinho. Mas João não sabe disso. Ele acredita em um conto de fadas no qual a pandemia foi inventada por chineses e em que o presidente é impedido de trabalhar por um vilão chamado STF.

Mas vamos à história

João está sentado, em frente à televisão, depois de mais um dia de trabalho como motorista de aplicativo. Perto dele, em uma mesa no mesmo cômodo, está a família do nosso personagem. Nesse momento, a esposa serve arroz e feijão para o filho do casal, um menino de uns 8 anos.

Apesar de visivelmente cansado, João fica feliz ao ver o presidente aparecer no noticiário.

“Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.”

Reagindo à notícia, a mulher de João faz cara feia e revira os olhos, sorrindo para o filho, que resmunga:

“Eu prefiro feijão. E não gosto desse homem feio!”

João se volta em direção aos familiares, com os olhos brilhando, e argumenta:

“Vocês não entendem o presidente. Ele quer que a gente fique protegido contra os bandidos. E o preço do feijão não é culpa dele, é dos governadores.”

Apesar de contrariada, a mulher de João não reage e faz um sinal para o filho ficar quieto. Permanecem calados até o fim da refeição e depois vão cuidar de suas vidas longe do nosso protagonista. João segue em frente à TV, mas sem prestar atenção ao que está passando. Apesar do ar absorto, parece estar sonhando com algo bem concreto. Sorri para si mesmo, enquanto pensa em como será bom o seu futuro podendo levar uma arma em seu carro. 

“Liberdade de verdade para os cidadãos de bem”, sussurra, satisfeito.

No dia seguinte, João acorda e vai trabalhar. Ele ainda não sabe, mas será morto por uma bala perdida, em uma suposta troca de tiros entre policiais e traficantes. Também não imagina que seu filho, no futuro, fará campanhas contra armas e lutará por coisas como justiça social e feijão no prato de todos. João ficaria escandalizado com seu herdeiro virando o que ele mais temia, um comunista.

A inspiração real para o texto

Escrevi o reconto “João e o pé sem feijão” baseado em mais uma das falas lamentáveis do presidente da República. 

O original literário

Para quem se interessar sobre textos literários deste gênero, sugiro a leitura de Contos de Fadas em suas versões originais, da editora Wish. 

Imagem: Ariel Nuzeg/Pixabay





 

Voos Literários

Bolsonaro, Lula e o dilema do meme da “mala”

Flávia Cunha
23 de agosto de 2021

Os memes nas redes sociais que comparam as “malas” de Bolsonaro e Lula abrem um debate interessante sobre até onde vai o humor e começa a ofensa. Nós, que somos contrários ao bolsonarismo, não precisamos ter limites na hora de ridicularizar o presidente? Depende, eu diria.

Masculinidade tóxica e disforia

Porque claro que parece engraçado debochar dessa forma de um representante tão caricato da masculinidade frágil e tóxica. Mas a verdade é que fazer piada com o corpo alheio pode ser desrespeitoso com quem não é o alvo inicial do sarcasmo.

No caso em questão, a síndrome do pênis pequeno é um mal que atinge muito homens e não se refere exatamente ao tamanho em si da “mala”. Conforme especialistas, o que acontece é uma disforia em relação ao próprio corpo, que pode levar a sofrimento psíquico e perda da autoestima. 

Ou seja, não é uma piada.

Em busca de informações para esse texto, descobri que menos de 1% dos brasileiros que procuram atendimento médico para aumentar o pênis realmente tem algum problema. A Sociedade Brasileira de Urologia adverte que essa preocupação se deve a um padrão fantasioso dentro da masculinidade.

Além disso, considero no mínimo curioso que esquerdistas estivessem orgulhosos com a “potência” de Lula, reproduzindo um clichê da sociedade patriarcal e falocêntrica na qual vivemos.  

“Mas é só um meme. Relaxa, militante!”

Para quem pensa que o meme da “mala” de Bolsonaro é apenas humor e não deve ser problematizado, alerto que esse argumento é o mesmo de quem faz piadas racistas e homofóbicas. Aliás, sempre é bom lembrar que integrantes da esquerda são homofóbicos ao fazerem insinuações jocosas sobre a homossexualidade de um dos filhos de Bolsonaro.

Capacitismo também não é aceitável

Da mesma forma, quando chamamos Bolsonaro de retardado, estamos ofendendo as pessoas com deficiência. Sendo assim, não adianta xingar o ministro da Educação por ser contrário à educação inclusiva e depois fazer “piada” capacista em relação ao presidente. Se cobramos coerência dos adversários políticos, precisamos ter também.  

Sugestões de leitura

Seja homem, de JJ Bola, escritor congolês radicado em Londres – Um livro importante para quem quer saber mais sobre masculinidade tóxica. A obra aponta como a construção atual da masculinidade é ultrapassada, prejudicando homens e mulheres.

Capacitismo: o mito da capacidadede Victor Di Marco – O capacitismo ou preconceito em relação a pessoas com deficiência precisa ser mais debatido em nossa sociedade. Esse comportamento não passa apenas pela exclusão no acesso à educação mas também tem contornos mais sutis, como o uso de expressões ofensivas. É o que alerta o autor deste livro, a partir de suas vivências como pessoa com deficiência. 

Agora tudo é preconceito?

Para mim, a regra é clara: ofender o corpo, a capacidade mental, o gênero, a orientação sexual ou a raça de alguém não é piada. É preconceito. Então, para que possamos ridicularizar Bolsonaro, basta a crítica a suas inúmeras falhas no cargo que ocupa.  Sendo assim, na minha opinião, fazer piadas a respeito do suposto micropênis do presidente nos rebaixa ao nível dos que usavam adesivos da ex-presidente Dilma na entrada de tanques de gasolina dos carros. Podemos ser melhores do que isso, não acham?

Imagens: Ricardo Stuckert e redes sociais 

Voos Literários

Talibã e o risco iminente às mulheres afegãs

Flávia Cunha
17 de agosto de 2021

A retomada do controle do grupo extremista Talibã no Afeganistão deixou em desespero a população, em especial as mulheres. Ironicamente, líderes do grupo extremista declararam estar surpresos que as pessoas tenham medo do Talibã. Além disso, garantem que as mulheres “não serão vítimas” do novo sistema.

Enquanto isso, no Brasil, a repercussão dos extremos ideológicos foi simplesmente bizarra. De um lado, bolsonaristas trumpistas tentavam colocar na conta do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a culpa pela ascensão do Talibã. Do outro, integrantes do Partido da Causa Operária (PCO) comemoravam o fim do imperialismo norte-americano em território afegão. Duas visões distorcidas da realidade, que em nada contribuem para chegar o que realmente interessa a quem tem preocupações humanitárias. Afinal, é evidente a ameaça aos direitos humanos em um país historicamente marcado por apedrejamentos, amputações e execuções públicas de mulheres e pessoas LGBT.

Sugestões de leitura

Sendo assim, nada mais natural o ceticismo por parte da população do Afeganistão contrária ao Talibã pelo discurso moderado e as promessas de uma sociedade sem violência de gênero. Para nós, ocidentais, cabe estudar e analisar com profundidade e empatia as questões do Oriente Médio. Por isso, selecionei dois livros com enfoque na questão feminina.

O segredo do meu turbante, de Agnès Rotger e Nadia Ghulam

A obra relata a história real de Nadia Ghulam, uma afegã que precisou assumir a identidade do irmão falecido para poder sustentar a família. Ao fazer isso, ela subverte as leis do Talibã, que proíbem mulheres de estudar e trabalhar. O livro foi lançado no Brasil em 2020 e retrata a infância de Nadia, que aos 21 anos conseguiu imigrar para a Espanha.

As meninas ocultas de Cabul: Em busca de uma resistência secreta no Afeganistão, de Jenny Nordberg

Imaginem um país onde ser mulher é tão difícil que as famílias preferem esconder o gênero de suas filhas. Pois foi essa prática que a repórter Jenny Nordberg investigou durante 5 anos. Apesar do Talibã ter saído anteriormente do poder em 2001, os resquícios fundamentalistas ainda existiam na sociedade afegã. Com a nova ascensão dos talibãs o risco às mulheres volta a ser iminente.

Um alerta final

Aqui, do nosso Brasil democrático porém com figuras conservadoras e misóginas no governo, só temos a lamentar o ocorrido no Afeganistão. E destacar uma triste porém verdadeira frase da filósofa e escritora Simone de Beauvoir: 

“Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”

Imagem: Joel Heard/ Unsplash

 

 

Voos Literários

Para quebrar o sistema, é preciso ação direta

Flávia Cunha
10 de agosto de 2021

Para quebrar o sistema, os defensores de ideais antidemocráticos resolvem colocar tanques nas ruas. Ou lutam por coisas estranhas, como a volta do voto impresso em meio à uma grave crise sanitária. Também tem quem prefira criticar os que alimentam os miseráveis e apoiar os mais ricos durante uma pandemia. Mas ainda bem que a sociedade brasileira não é composta apenas por pessoas assim. 

Para realmente quebrar o sistema

Ainda acredito que a maioria da população tem empatia e compaixão. Por isso, a ação direta da sociedade civil é tão importante em diferentes esferas sociais. Nesse sentido, um instrumento tem sido cada vez mais utilizado para manter projetos das mais diferentes áreas. Entre elas, a  Comunicação. É o financiamento coletivo, também conhecido como crowdfunding, uma forma de dar suporte para a criação ou manutenção de iniciativas de interesse coletivo.

A Arte de Pedir

Em um mundo tão acostumado a falsas aparências e demonstrações de status muitas vezes enganosas, criar um financiamento coletivo é reconhecer publicamente a necessidade de apoio. É admitir a necessidade de recursos externos para que determinado projeto comece ou permaneça em atividade. Uma das precursoras do uso dessa ferramenta foi a cantora e ícone indie Amanda Palmer. No livro A arte de pedir, ela explica os princípios do financiamento coletivo: 

“Crowdfunding, para quem não conhece, é uma maneira de arrecadar fundos para iniciativas […] pedindo para o povo (Crowd) contribuir numa grande vaquinha virtual (Funding). […] A própria existência do crowdfunding apresenta a todos nós um leque de perguntas mais profundas: Como pedimos ajuda uns aos outros? Quando podemos pedir? Quem pode pedir?” 

Ao arrecadar 1 milhão de dólares com sua campanha, Amanda Palmer deparou-se com outro problema:

“[…] meus financiadores — quase 25 mil pessoas — vinham seguindo minha história pessoal fazia anos. Ficaram empolgados em poder ajudar e incentivar minha independência frente às gravadoras. Mas, além dos telefonemas aflitos de jornalistas que nunca tinham ouvido falar de mim (o que não admira, pois eu jamais recebera uma única linha na Rolling Stone), perguntando por que todo aquele povo estava me ajudando, fiquei surpresa com algumas das reações negativas a esse sucesso. Ao lançar minha campanha, acabei entrando num debate cultural mais amplo que já vinha se arrastando e questionava se o crowdfunding era sequer admissível; alguns críticos estavam desdenhando a prática como uma forma grosseira de ‘mendigar na rede’. Pelo jeito, era feio pedir.”

A sinceridade em questão

Mas será mesmo feio pedir, como comenta Amanda Palmer? Depende muito da proposta e da relação com o público envolvido, eu diria. Como produtora cultural, já dei suporte para a realização de alguns projetos artísticos por meio de financiamento coletivo e o resultado foi muito gratificante. Porém, como jornalista diretamente envolvida em uma iniciativa, é a primeira vez. 

Sim, porque o Vós lançou um plano de assinaturas recentemente. A ideia é jogar limpo com vocês. Não temos patrocinadores nem mecenas. Ou seja, os conteúdos que oferecemos são produzidos sem um ganho financeiro direto. No caso da coluna Voos Literários, eu sempre coloco os links das obras citadas para facilitar o acesso aos livros mencionados. Mas não há obtenção de lucro com isso, por exemplo. Meu retorno como colunista é, até o momento, ter a satisfação pessoal e profissional de escrever a respeito de temas que considero relevantes, com total liberdade e autonomia. 

Como quebrar o sistema? 

Para continuarmos na luta pela mudança da conjuntura atual, precisamos do apoio de quem está no mesmo lado da nossa trincheira. No caso, no extremo oposto de quem colocou hoje tanques nas ruas para tentar intimidar por meio de sua usual covardia. Vocês já sabem, mas é sempre bom reforçar: Fora, Bolsonaro!

Imagem: Pedro França/Agência Senado