Voos Literários

Existe consumismo em se tratando de literatura?

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2017

Primeiro, vamos deixar claro o conceito básico de consumismo: a compulsão para a compra de bens, mercadorias ou serviços considerados supérfluos. Ou seja, itens desnecessários. Como fervorosa defensora de livros, tenho dificuldade em aceitar que esses possam ser considerados de alguma forma dispensáveis. Porém, vamos encarar a realidade: conheço muita gente boa que adquire livros mesmo sabendo que não terá tempo para lê-los. Existe outro tipo de pessoa que vai às compras literárias porque quer ter diversos exemplares vistosos nas prateleiras de casa, com o objetivo de parecer culto e nem tem a intenção de ler aquelas obras.

Em comum nas duas categorias acima, está o dinheiro extra na conta bancária. Livros podem mesmo ser um símbolo de status e prestígio. Já li reportagens sobre sebos especializados na venda de obras por metro para decoradores contratados por clientes interessados em dar pinta de intelectual. A vontade de parecer um admirador de literatura chega mesmo ao extremo do uso de livros cenográficos.

“Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas e se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings?”

No outro extremo, está a grande parcela dos apaixonados por livros. Muita vontade de ter uma biblioteca particular imensa e pouca grana no bolso. Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings, de itens de vestuário e de show internacionais, por exemplo, os livros estão longe de serem inacessíveis, ao menos para a classe média.

Se a crise realmente bateu à sua porta, ainda assim isso não é desculpa para não ler. Existem sebos, inclusive virtuais, com livros vendidos a preços variados, basta pesquisar. Existem, ainda, sites com obras disponibilizadas online para download (alguns são perseguidos pela Polícia Federal por causa dos direitos autorais dos livros oferecidos de graça, mas isso é papo para outro texto).

E as bibliotecas?

O paraíso dos leitores sem dinheiro no bolso. Em Porto Alegre, recomendo a do Centro Municipal de Cultura. Sou frequentadora desde adolescente e tem muita coisa boa por lá. Foi lá que li grande parte da obra de Erico Verissimo, descobri quase todos os livros escritos por García Márquez e tive acesso ao maravilhoso Travessuras da Meniná Má, de Mario Vargas Llosa. Também foi graças a esse templo da cultura que li praticamente todos os livros do Caio Fernando Abreu (e depois fui comprando devagarinho para ter em casa). Outra preciosidade garimpada entre as prateleiras da biblioteca Josué Guimarães está Scar Tissue, autobiografia do Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chili Peppers. Como vocês podem ver, um acervo variado e que vale mesmo a pena conferir.

Para ir além:

Voos Literários

Serão os cartunistas visionários?

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2017

Uma das minhas tirinhas favoritas é a da personagem Mafalda, criada pelo argentino Quino e publicada originalmente entre os anos de 1964 e 1973. A fanpage da personagem no Facebook conta com quase 7 milhões de curtidas, um número respeitável em se tratando de um conteúdo altamente reflexivo. Mafalda, a menina com uma visão de mundo questionadora, que odeia sopa e ama os Beatles, encanta principalmente a leitores da América Latina e Europa.

Lá por 2015, ganhou uma exposição em São Paulo que teve milhares de visitantes. E qual será a razão da continuidade de seu sucesso durante tanto tempo? Arrisco dizer que seja o fato de Mafalda dar voz a angústias infelizmente ainda presentes nos dias atuais, apesar de suas histórias passarem-se na década de 1960. Para mim, uma das frases mais marcantes da personagem é “Essa é a borracha de apagar ideologias”, ao referir-se ao cassetete de um policial. Provavelmente, é o que ainda pensam muitos dos jovens que foram às ruas em protestos e sofreram repressão da polícia, em diferentes estados brasileiros.

Outros integrantes do universo criado por Quino que me chamam especialmente a atenção é a tartaruguinha Burocracia, um símbolo do que há de pior no poder público e suas lentas engrenagens, e a pequena Liberdade, bem menor que o restante dos personagens.

No contexto brasileiro, segue muito atual a tirinha As Cobras, de Luis Fernando Verissimo, apesar do escritor ter parado com a sua produção no já distante ano de 1997, após sua criação na época da ditadura militar no Brasil. Além da dupla de cobrinhas do título, impagáveis em suas reflexões marcadas pela fina ironia de Verissimo contra o poder estabelecido, o personagem Queromeu, o corrupião corrupto, é  a prova de que a corrupção brasileira está longe de ser uma novidade.

Para quem ficou nostálgico, em 2010 foi lançado pela editora Objetiva o livro As Cobras – A Antologia Definitiva, ainda disponível em formato digital nos sites das principais livrarias. A versão impressa dá para conseguir nos sebos online.

(Dedico esse texto ao meu saudoso pai, que me ensinou a ler nas entrelinhas e levar a sério – sem perder o senso de humor – o conteúdo de HQs e cartuns. E agradeço a consultoria do jornalista e amigo geek Eduardo da Camino.)

Para ir além:

Mafalda – Todas as Tiras (edição comemorativa dos 50 anos da personagem) – Martins Editora

Voos Literários

Sobre crises, literatura e jornalismo

Flávia Cunha
1 de fevereiro de 2017

Muito se fala em crise econômica e, conforme especulações midiáticas, enfrentamos agora a maior crise já vivida no Brasil. No campo da literatura, porém, os escritores batalham contra as agruras financeiras seguramente há bem mais tempo e muito deles acabam tendo no jornalismo uma segunda profissão. Ainda no século XIX, Machado de Assis e outros autores daquele período tinham nos artigos e crônicas publicados na imprensa um meio de sobrevivência. As razões apontadas, na época, eram as baixas tiragens de livros, público leitor ainda incipiente, além das condições inerentes a uma ex-colônia portuguesa, que vivia a transição política entre o fim do Império e o início da República, o que também não propiciava o desenvolvimento de um mercado editorial.

Já no século XX, outro que obteve no jornalismo uma forma de pagar as contas era o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, que apelidou a função de “costurar para fora”. Apesar da carreira jornalística consolidada, Caio não escondia dos amigos o fato de manter a profissão a contragosto. Por sempre ter escrito de forma desenfreada, ele conseguia ter uma boa atuação no jornalismo. Porém, os prazos exíguos, precisar submeter seu texto à vontade de editores e à redação jornalística eram fatores que angustiavam o Caio escritor. Apesar disso, ele reconhecia que trabalhar com textos enxutos ajudava-o em suas obras literárias.

O jornalismo foi fonte de inspiração para seus enredos. No romance Por Onde Andará Dulce Veiga, o protagonista é um jornalista desempregado, que volta à imprensa apenas por motivos financeiros. Na história, há referências e críticas à rotina da imprensa e aos prazos sempre curtos para entrega de textos. Outro personagem marcante de sua literatura é o crítico teatral Pérsio, do conto Pela Noite, publicado no livro Triângulo das Águas. O cargo chegou a ser exercido pelo próprio Caio na vida real.

Aliás, coincidência ou não, Clarice Lispector, a grande inspiradora da obra de Caio Fernando Abreu como escritor, também atuou na imprensa brasileira. O colombiano Gabriel García Márquez foi outro que fez nome no jornalismo antes de convencer os editores de que seus enredos de realismo fantástico fariam mesmo sucesso.

Aparentemente, a crise financeira pessoal é uma constante na vida de escritores, famosos ou anônimos, independente do momento histórico e político. Mas esses seres teimosos e persistentes  seguem insistindo na profissão. Para o alívio dos leitores compulsivos, como nós.

Para saber mais:

  • Para Sempre Teu, Caio F. – Paula Dip – Editora: Record
  • Pena de AluguelEscritores jornalistas no Brasil de 1904 a 2004 – Cristiane Costa – Editora: Companhia das Letras
  • Jornalismo e literatura -A Sedução da Palavra – Organização de Gustavo de Castro – Editora: Escrituras
Voos Literários

A Literatura no Brasil é mesmo para poucos?

Flávia Cunha
12 de setembro de 2016

Vivemos um momento de crise no cenário político brasileiro. Isso não é novidade para ninguém, a não ser que você viva em Marte. (E talvez, mesmo lá, os marcianos estejam atentos ao que está acontecendo por aqui). Com esse panorama, falar sobre Literatura parece um pouco deslocado ou até mesmo uma alienação.

Porém, vale lembrar o papel relevante que as Artes ocupam nesses momentos de tensão social. As músicas de protesto durante o regime militar no Brasil e o quadro Guernica, de Pablo Picasso, como símbolo da guerra civil espanhola, são apenas alguns exemplos disso.

Soma-se a esse cenário, as redes sociais, em que cada vez mais gente compartilha informações sem ler e interpretar textos com a devida propriedade, deixando visível os problemas estruturais da educação no Brasil. O incentivo à leitura, de uma forma geral, seria importante para acabarmos com os alarmantes índices de analfabetismo funcional no país.

Mas um problema adicional à essa equação é a existência de uma parcela de intelectuais que se apropria da Literatura como em uma seita. Para esse grupo seleto, apenas alguns eleitos são os escritores de verdade e, evidentemente, seus leitores são seres superiores com a capacidade de compreender essas obras herméticas.

Mas será que somente os clássicos são realmente importantes para que haja um número mais expressivo de leitores no nosso país? Acadêmicos torcem o nariz para jovens (e adultos) que lêem Harry Potter, Jogos Vorazes, Percy Jackson e outras franquias do gênero. Mas considero que seria mais conveniente que os best sellers fossem uma porta de entrada para obras mais refinadas, de autores como José Saramago, Guimarães Rosa, Machado de Assis e até o temido James Joyce.

Tudo é uma questão de ir exercitando a mente. Afinal, nenhum corredor começa seus treinos com uma maratona. Então, leitores de primeira viagem não deveriam ser submetidos a obras complexas, que mais contribuem para afastá-los da Literatura do que despertar o verdadeiro gosto pela leitura, fundamental para uma mudança nessa conjuntura atual.

 

Dicas de Leitura:

  • Por que ler os Clássicos – Ítalo Calvino
  • Coleção Clássicos Comentados (diversos autores) – Editora: Ateliê Editorial
Voos Literários

O culpado é o mordomo ou histórias de detetive sempre farão sucesso

Flávia Cunha
12 de setembro de 2016

Sou fã de livros policiais, de preferência com o estilo clássico do detetive especialista em desvendar segredos e mistérios insolúveis para nós, leitores. De Sherlock Holmes passando por Hercule Poirot e Miss Marple, esse tipo de personagem encanta e fascina milhões de pessoas ao redor do mundo.

Mas por que será que mesmo tantos anos após Conan Doyle e Agatha Christie terem consagrado esse estilo literário ele prossegue sendo um fenômeno editorial? Talvez seja pelo conforto de termos a certeza que saberemos quem é o culpado de determinado crime, porque ele certamente será revelado nas últimas páginas do livro. Se pensarmos no cenário político brasileiro atual, essa convicção desaparece rapidamente, independente das nossas ideologias e crenças partidárias.

Escândalos de corrupção invadem os noticiários diariamente, até chegarmos a um sentimento de desesperança e desilusão sobre o futuro dessa nação. Nesse cenário, nada mais reconfortante mesmo do que procurar um livro em que os herois e vilões estão bem claros ou que o assassino será desmascarado no final.

Uma sugestão para quem gosta do estilo policial mas também busca uma boa análise da natureza humana são as obras do belga Georges Simenon e seu Comissário Maigret, protagonista em 75 novelas e 28 contos publicados entre 1931 e 1972. O personagem é descrito como corpulento, taciturno e até um pouco melancólico. Porém, esse policial francês não sossega até descobrir os culpados dos crimes que investiga. Nessa apuração, é que a capacidade de observação do detetive chama a atenção durante a leitura. Paris e seus habitantes são descritos em detalhes e com uma ácida visão de mundo.

Um exemplo de como as obras de Simenon não envelheceram pode ser observado já no primeiro livro em que Maigret aparece, Pietr, O Letão. Em dado momento, um policial reclama com o Comissário sobre os problemas provocados por estrangeiros na França, em uma perturbadora demonstração que a xenofobia está longe de ser um problema recente na Europa.

 

  • Sugestões de leitura:
  • Morte na Alta Sociedade – Georges Simenon
  • O Misterioso Caso de Styles – Agatha Christie (primeira aparição de Poirot)
  • Assassinato na Casa do Pastor – Agatha Christie (primeiro caso de Miss Marple)