Samir Oliveira

Por que devemos boicotar o Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv

Samir Oliveira
1 de junho de 2017
Foto: bdsmovement.net

Exatamente hoje, dia 1 de junho, tem início o Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv. O evento, que ocorre até o dia 10, está sendo alvo de uma convocação global da comunidade LGBT palestina para que seja boicotado por produtores, diretores e atores. Eu apoio totalmente esse pedido. Por quê?

Em 2005 a sociedade palestina lançou oficialmente uma campanha internacional por boicote, desinvestimento e sanções (BDS) a Israel. A data marca o aniversário de um ano do parecer da Corte Internacional de Justiça que condenou a construção do imenso muro que Israel havia começado a erguer nos territórios palestinos ocupados, transformando a Cisjordânia em uma verdadeira prisão a céu aberto. A muralha de concreto possui uma extensão de 760 km e uma altura de até 8 metros.

A convocação de um amplo boicote internacional a Israel é uma tática de resistência não violenta encontrada pela sociedade palestina para expor e isolar um regime colonialista. Mais do que isso: um regime que implementa um sistema cruel de apartheid contra o povo palestino.

Não é por acaso que o BDS é inspirado na campanha bem sucedida de boicote contra o regime sul-africano do apartheid – que só caiu graças à solidariedade internacional de um mundo envergonhado de fazer negócios e manter relações políticas e culturais com um Estado racista. Hoje lideranças importantes daquele movimento entendem que precisam mais uma vez se colocar do lado certo da História.

Uma delas é Desmond Tutu, bispo anglicano e prêmio Nobel da Paz. Um apoiador ferrenho do BDS. “Eu sei por experiência própria que Israel estabeleceu uma realidade de apartheid dentro de suas fronteiras e através da ocupação dos territórios palestinos. O paralelo com a minha amada África do Sul é dolorosamente certeiro”, disse.

BOICOTE CULTURAL

Uma das ramificações da campanha por BDS é o chamado por boicote cultural a Israel, conclamando artistas do mundo inteiro a se recusarem a emprestar seu prestígio a um regime colonialista. Este forte apelo já conscientizou músicos como Roger Waters, Lauryn Hill, Santana e Stevie Wonder.

Uma campanha muito incisiva foi feita para que Caeatno Veloso e Gilberto Gil cancelassem sua apresentação conjunta em israel em 2015. Mesmo não tendo sido plenamente convencido por ativistas e outros artistas, Caetano chegou a escrever um artigo na Folha de São Paulo relatando sua experiência na turnê e declarando que não voltaria mais a Israel. Ainda que tenha uma limitada compreensão do que significa o BDS, Caetano saiu deste tensionamento mais consciente a respeito da situação do povo palestino e da responsabilidade de Israel neste sistema de opressão.

O TLVFEST E O PINKWASHING

Desde 2006 o Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv, patrocinado e incentivado pelo Ministério da Cultura de Israel, recebe realizadores audiovisuais do mundo inteiro. De lá para cá, tem sentido o crescimento do chamado por boicote feito pelos LGBTs palestinos.

“Eu entendo eles. Não podemos fingir que não temos grandes problemas aqui. Eu também estou furioso com meu país”, disse o fundador do TLVFest, Yair Hochner. Palavras de um cineasta que não apoia o BDS, mas foi obrigado a reconhecer que o movimento tem razão de existir. Muitos cineastas já estão incluindo nos contratos com as distribuidoras uma cláusula que proíbe suas produções de serem exibidas em Israel.

A edição deste ano do TLVFest já coleciona uma significativa rede de adesões ao boicote. O cineasta sul-africano John Trengove divulgou um firme manifesto cancelando sua participação no festival:

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“Este é um problema muito sensível para nós, sul-africanos, que estamos com a dor da luta contra o apartheid ainda presente em nossa consciência coletiva. Conhecendo o que eu conheço, senti que seria imperativa a minha retirada deste festival. É impossível não reconhecer que o festival (e minha participação nele) funciona como uma distração das violações de direitos humanos cometidas pelo Estado de Israel. Um boicote rigoroso contra todas as iniciativas patrocinadas pelo governo israelense é necessário. Como sul-africano, eu sei por experiência própria como o boicote ajudou a consolidar as transformações democráticas no meu país. Por isso decidi somar meu nome e minha voz ao movimento por boicote a Israel.”

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O filme de Trengove, A Ferida, estava agendado para abrir as sessões do festival. A equipe inteira que produziu o documentário Chavela cancelou sua participação do evento. A produção retrata a vida da icônica artista mexicana Chavela Vargas, que aos 81 anos teve a coragem de declarar em uma entrevista que era lésbica.

As baixas ainda incluem a atriz canadense Fawzia Mirza, a cineasta alemã Helene Hegemann, a atriz suíça Jasna Fritzi Bauer e a palestina Nadia Abraham, que seria jurada do festival. Todas essas pessoas entendem que não podem fazer parte da máquina de propaganda de Israel – que utiliza a existência de determinados direitos à população LGBT no país para revestir seu regime colonial com uma tintura progressista. Esta é a prática que se convencionou chamar de Pinkwashing.

Não são poucos os exemplos de que Israel utiliza a situação da população LGBT no país para transmitir ao mundo a imagem de que seria uma democracia aberta e progressista. Um farol de luz em meio ao atraso do Oriente Médio. Enfim, insira aqui o clichê islamofóbico e racista que mais convém ao sionismo.

A página das Forças Armadas de Israel no Facebook chega a ser patética na tentativa de construir a imagem de um exército camarada. Como se existisse repressão amiga. É evidente que qualquer pessoa LGBT que queira seguir carreira militar em qualquer país do mundo precisa ser respeitada e ter os mesmos direitos que heterossexuais e cisgêneros.

Só que existe uma grande diferença entre assegurar direitos e utilizá-los como arma de guerra em uma disputa por sentidos. Ainda mais quando estes direitos são muito úteis a um sistema opressivo, pois garantem a Israel mais efetivo em campo para reprimir a população palestina, vigiar os inúmeros postos de controle – verdadeiros pedágios humanos que restringem o direito de ir e vir do povo palestino – e garantir a aplicação das mais de 50 leis que discriminam os palestinos em Israel e os transformam em cidadãos de segunda categoria.

Num país onde o serviço militar é obrigatório, o que se vê nas ruas, estradas e checkpoints são jovens fardados e assustados. Quase todos perdidos de armas na mão.

E A POPULAÇÃO LGBT PALESTINA?

Quem quiser desqualificar a denúncia do Pinkwashing como uma atitude homofóbica ou supostamente contrária à população LGBT de Israel vai se dar mal. É a própria população LGBT palestina – sim, ela existe! – e seus segmentos organizados que estão dizendo em alto e bom som: “Não se deixem enganar, Israel não respeita os direitos humanos”.

Organizações como a Al-Qaws – que significa Arco-Íris em árabe – e a Aswat (que significa Vozes) fazem um fantástico trabalho de base com a população LGBT dos territórios palestinos ocupados. Organizam festas, grupos de apoio psicológico, campanhas educativas e fornecem espaços seguros para troca de experiências e articulação coletiva. Tudo isso sem embarcar no discurso capenga de que Israel é um paraíso para os homossexuais enquanto a Palestina e o mundo árabe como um todo reservam apenas sofrimento e perseguição a LGBTs.

Os LGBTs palestinos estão demonstrando na prática que é possível lutar contra o preconceito em suas comunidades sem aderir ao homonacionalismo sionista. Sem ter que fazer uma falsa escolha entre quem são e de onde vêm.

LINKS DE INTERESSE

– BDS Movement: https://bdsmovement.net
– Leis que discriminam a população árabe de Israel: https://www.adalah.org/en/law/
– Manifesto por boicote ao Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv: http://www.pinkwatchingisrael.com/portfolio/tlvpride17/#!prettyPhoto
– ONG Al-Qaws: http://www.alqaws.org/siteEn
– ONG Aswat: https://www.facebook.com/aswat.voices/
– Pinkwatching Israel: http://www.pinkwatchingisrael.com/
Foto: bdsmovement.net

Samir Oliveira

O Estado te considera doente?

Samir Oliveira
25 de maio de 2017
Foto: Elza Fiuza/ABr

Semana passada se comemorou em 17 de maio o Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia. A data tem um significado histórico. Foi em 17 de maio de 1990 que a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a homossexualidade uma doença. Devemos celebrar muito esta conquista. Foi um importante respaldo institucional que certamente contribuiu no processo de empoderamento de muitos homossexuais no mundo inteiro.

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Fica muito mais fácil migrar da vergonha para o orgulho quando a principal organização internacional de saúde reconhece que a homossexualidade é uma expressão natural sexualidade humana, não uma doença

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Acontece que, 27 anos após esta conquista, não podemos esquecer que a população de travestis e transexuais ainda não tem este “privilégio” de não ser considerada doente. De ter sua expressão de gênero tratada pela medicina e pelo Estado como algo natural, não como um transtorno psiquiátrico.

Até hoje o Catálogo Internacional de Doenças (CID) da OMS considera o “transexualismo” e a “travestilidade” como doenças mentais. As instituições da psiquiatria também apertam seus torniquetes contra esta população. O Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM) lista a transexualidade como uma “disforia de gênero”.

Não se trata apenas de letras mortas em catálogos e manuais. Estas classificações têm um efeito cruel na vida de travestis e transexuais, que precisam submeter-se a laudos psiquiátricos para ter acesso a tratamentos hormonais e para conseguir, na Justiça, o direito pleno à identidade.

É um absurdo que deixaria qualquer pessoa cisgênera completamente revoltada se tivesse que ser submetida a este tipo de procedimento. Imaginem a Justiça exigir que a medicina lavre um laudo para dizer que uma pessoa cisgênera de fato se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento? São opressões que o CIStema direciona apenas à população T.

Somente a mobilização da população LGBT organizada e a solidariedade de todas e todos que acreditam em um mundo mais justo e igualitário poderá fazer com que não se leve mais 27 anos para mudar esta situação.

Foto: Elza Fiuza/ABr

Samir Oliveira

Crivella, essa parada é nossa!

Samir Oliveira
11 de maio de 2017

O prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, do PRB, quer acabar com a Parada do Orgulho LGBT na cidade. Um evento que existe há 22 anos e que, em 2016, levou 600 mil pessoas às ruas. Trata-se do terceiro maior evento municipal, com um impacto estimado em R$ 470 milhões na economia da cidade.

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Mesmo que não trouxesse impacto econômico nenhum, é um evento necessário, pois sua dimensão é política, pedagógica e de resistência

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É uma atividade festiva e de luta por direitos. Um dia em que LGBTs podem sair às ruas e demonstrar seus afetos sem medo. Ser quem são de forma plena e livre. Celebrar o orgulho e combater o preconceito. Não é pouca coisa em um país onde um LGBT é assassinado a cada 26 horas.

No primeiro ano de sua gestão, Crivella já disse que não irá destinar recursos públicos à Parada. Um ataque sem precedentes à população LGBT. Utiliza o argumento dos recursos públicos como cortina de fumaça para esconder a homofobia da atual administração. Isso não tem nada a ver com disponibilidade de verbas. É uma decisão política e ideológica de um governo liderado por um bispo licenciado da Igreja Universal. Um sujeito que já declarou que a homossexualidade é um “mal terrível” e que já sugeriu que gays são fruto de uma tentativa de aborto mal sucedida. Mais uma prova de que, no Brasil, o Estado laico existe apenas na letra morta da Constituição. Fosse o contrário, o prefeito deixaria seus dogmas religiosos de lado ao tratar de políticas públicas.

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Além de cortar verbas, o prefeito quer modificar a forma como a Parada é feita. Organizada há 22 anos pela ONG Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT, a Parada envolve dezenas de entidades em sua realização

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É um evento autônomo do movimento social, feito pelas mãos de militantes LGBTs e apoiadores da causa. Mas Crivella quer retirar as entidades que lutam por nossos direitos da jogada. A prefeitura quer fazer uma licitação para organização da Parada. Parece uma piada de mal gosto. Como se fosse um evento que pudesse ser organizado por uma produtora, por agentes externos à causa LGBT. Como se a Parada não fosse a expressão legítima dos anseios, desejos e inspirações da população LGBT.

Os defensores do prefeito argumentam que Crivella não vai acabar com a Parada, apenas vai retirar os recursos que a prefeitura injeta no evento. “Que busquem patrocínio na iniciativa privada”, dizem. Como se fosse simples. Como se existissem milhares de empresas dispostas a apoiar a causa LGBT sem transformar nosso dia de luta em uma espécie de estande de venda de seus produtos. Ou pior: como se não fosse obrigação do poder público investir em cultura, turismo e apoiar um movimento que luta por igualdade e direitos civis. Na prática, o corte de verbas do município inviabiliza um evento que requer estrutura de segurança, trios elétricos, banheiros químicos e placas de sinalização para mais de 500 mil pessoas.

Felizmente, há resistência. Os movimentos sociais que lidam com a causa LGBT no Rio de Janeiro estão muito mobilizados. O vereador David Miranda, filiado ao PSOL e único parlamentar assumidamente gay da cidade, articula um abaixo assinado para pressionar o prefeito. A campanha “Essa parada é nossa” está a todo vapor. Precisamos mostrar ao Crivella que o amor é maior que o ódio. Que sua política de ataque aos nossos direitos vai fracassar, pois nós somos muitos e não estamos sozinhos. Clique aqui e apoie o abaixo assinado!

Foto: Fernanda Piccolo.

Samir Oliveira

Acolher e prevenir: precisamos falar sobre suicídio entre jovens LGBTs

Samir Oliveira
4 de maio de 2017
Foto: Francesca Woodman

Falar sobre suicídio é algo extremamente delicado. Não sou um profissional capacitado para lidar com este tipo de situação. Não quero escrever cartilhas ou dar lições. Quero falar sobre experiência e acolhimento. Em tempos de correntes perversas nas redes sociais e seriados que dialogam – ainda que de forma problemática – com o tema, acredito ser oportuno jogar luzes sobre um dos grupos que mais sofrem com isso.

Jovens homossexuais fazem parte de grupo de risco

Não precisamos de pesquisas para saber que os jovens LGBTs estão muito mais suscetíveis a cometer suicídio do que jovens heterossexuais e cisgêneros. Mas não custa nada lembrar. Um estudo de 1998[1], com mais de 4 mil estudantes do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, verificou que a taxa de tentativas de suicídio era de 35,3% em jovens homossexuais e 9,9% em alunos heterossexuais. Outra pesquisa[2], da mesma época, ouviu jovens de uma escola pública de Minnesota, constatando que 28,1% dos estudantes gays e bissexuais já tentaram tirar a própria vida, contra 4,2% de seus colegas heterossexuais.

Um estudo mais recente, da Universidade de Columbia, entrevistou 32 mil alunos de escolas públicas nos Estados Unidos, entre 13 e 17 anos. Os resultados foram alarmantes: os jovens LGBTs têm uma tendência ao suicídio cinco vezes maior que os heterossexuais.

“O ambiente escolar, para mim, sempre foi uma máquina de moer carne de viado (sic)”

Números que demonstram uma realidade cruel. Já fui um jovem homossexual com muitos conflitos e passei por poucas e boas. Na verdade, por muitas e nem tão boas assim. O ambiente escolar, para mim, sempre foi uma máquina de moer carne de viado. Um lugar onde as crianças e os adolescentes reproduzem todos os preconceitos que aprendem em suas famílias, muitas vezes através de “piadas” e “brincadeiras”.

Como se isso não fosse o bastante, ainda há um completo despreparo das direções e orientações pedagógicas para lidar com a diversidade. Para estender a mão a quem precisa de acolhimento. Pode ser que muita coisa tenha mudado desde os meus tempos de colégio. Pode ser, também, que as condições concretas da minha realidade tenham sido mais duras. Afinal de contas, a experiência de um aluno de escola pública no interior do Rio Grande do Sul, como foi o meu caso, não é a mesma de um estudante de uma Capital. Mas o preconceito não conhece fronteiras. Pode ser mais escrachado em uma região e mais velado em outra, mas está em todos os lugares.

A escola como local de acolhimento

As escolas deveriam ser um refúgio para os jovens LGBTs, que na maioria dos casos enfrentam uma opressão diária em suas próprias famílias. O meu único refúgio era a biblioteca, longe do convívio com os outros alunos. Por “convívio”, entenda-se: bullying, perseguição e agressões. E não estou nem falando da adolescência. Quando uma criança na terceira série implora à sua mãe para trocar de colégio por bullying homofóbico, sabemos que o sistema está falido.

Felizmente, na juventude, tive contato virtual com ONGs e entidades que lutam por nossos direitos. Entendi que não havia nada de errado comigo e que o problema era o preconceito. Mas muitos não têm esta sorte ou esta possibilidade de acesso a informações e de esclarecimento. A escola, especialmente a escola pública e pretensamente laica, deveria cumprir este papel. O papel de informar, educar para a diversidade, combater condutas opressivas por um viés pedagógico, acolher vítimas de violências praticadas dentro de seus muros e iniciar um processo positivo de mudança na conduta de agressores.

Como disse no início, não sou especialista e não tenho a receita para que isso aconteça. Mas tenho algumas pistas. Uma mudança positiva certamente passa pela inclusão de disciplinas relacionadas à diversidade sexual e de gênero nas licenciaturas que formam nossos professores e pedagogos. E na inclusão deste tema nos próprios currículos escolares – na contramão de tudo que vimos nos últimos anos no Brasil, quando um conservadorismo assassino inventou um inimigo imaginário chamado “ideologia de gênero” e retirou este debate dos planos municipais de educação do país inteiro.

Centro de Valorização da Vida – a ajuda está a um telefonema de distância

Se você está lendo este texto e precisa de ajuda, procure o Centro de Valorização da Vida mais próximo. O CVV está espalhado em diversas cidades brasileiras e atende 24 horas de forma gratuita também pelo telefone. Em Porto Alegre, o número é 184.

Site do CVV: http://www.cvv.org.br/
Busque a unidade mais próxima de você: http://www.cvv.org.br/postos-de-atendimento.php

[1]GAROFALO, R. et al. The Association between health risk behaviors and sexual orientation among a school-based sample of adolescents. Pediatrics, Elk Grove Village, Illinois, US, v. 101, p. 895-902, 1998.

[2]REMAFEDI, G. et al. The relationship between suicide risk and sexual orientation: results of a population-based study. American Journal of Public Health, Birmingham, AL, v. 88, n. 1, p. 57-60, 1998.

Foto: Francesca Woodman

Samir Oliveira

Pessoas trans podem conquistar no STF direito à retificação de nome e gênero sem necessidade de cirurgia

Samir Oliveira
20 de abril de 2017
Imagem: Monica Helms

O Supremo Tribunal Federal começou a análise de uma ação que pode representar um marco na vida das pessoas transexuais no Brasil. Demandado por um homem trans do Rio Grande do Sul, o STF terá que decidir se as pessoas travestis e transexuais têm o direito de realizar a retificação de nome e de gênero na Justiça sem a necessidade de terem feito uma cirurgia de transgenitalização.

Entenda o problema

No Brasil, travestis e transexuais precisam enfrentar um verdadeiro calvário na Justiça para conseguir acesso a um direito básico: o direito de serem contemplados com seus nomes verdadeiros em seus documentos oficiais – e não com o nome que lhes deram no nascimento, que não representa suas identidades. Para isso, devem constituir um advogado e ingressar com uma ação na Justiça, terceirizando a decisão sobre suas identidades às convicções de um juiz. No Judiciário conservador que temos, sabemos bem o que isso pode significar.

Na prática, cada juiz adota um procedimento diferente, tornando os caminhos ainda mais tortuosos para a garantia de um direito que deveria ser tão básico. Em geral, todos solicitam um laudo psiquiátrico. Trata-se de uma violência desproporcional contra a população trans, que se vê obrigada a recorrer a um médico para que lhe confirme sua identidade.

Algo pelo qual pessoas cisgêneras nunca irão passar na vida. Afinal, quando que um homem ou uma mulher cis precisarão de um atestado psiquiátrico para dizer, diante do Estado brasileiro, que se identificam plenamente com o gênero que lhes foi designado? É mais uma prova de que a cisnormatividade é uma opressão sistêmica e institucional, que impõe às pessoas trans todo tipo de percalços e sofrimentos ao longo de suas vidas.

Retificação de gênero

Mas o que já é ruim consegue ficar ainda pior. Se para retificar o nome as pessoas travestis e transexuais já precisam enfrentar uma verdadeira batalha jurídica, o caso se torna ainda mais doloroso quando se trata da retificação de gênero. Nestes casos, os juízes costumam exigir que as pessoas tenham feito, também, a cirurgia de transgenitalização. Afinal, para o “cistema”, não é possível que existam homens com vagina ou mulheres com pênis.

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Isso se torna ainda mais perverso quando verificamos que, no Brasil, apenas quatro hospitais da rede pública realizam este procedimento pelo SUS

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E as filas de espera são gigantescas. Existem muitos casos de pessoas trans e travestis que simplesmente não desejam fazer essa cirurgia. Por isso serão desrespeitadas em suas identidades?

Está nas mãos do STF o poder de criar uma jurisprudência capaz de acabar com esta injustiça. A competente advogada Maria Berenice Dias, uma referência na luta por direitos para a população LGBT junto ao Judiciário, está à frente do caso. O que já é um alívio, pois sabemos que ele está em boas mãos e que haverá uma disputa jurídica de alto nível para que este direito seja garantido.

Como sempre, no Brasil, esta é uma meia conquista. Afinal, mesmo que o STF decida em favor da população trans, será mais um direito conquistado pela metade, pela via judicial. Assim como o casamento civil igualitário. Nós precisamos de leis que assegurem estes direitos. Para ontem! Na Argentina, por exemplo, a população trans está amparada pela legislação para retificar seu nome e gênero nos registros civis através de um mero procedimento administrativo. Sem precisar ingressar na Justiça para isso – algo que, mesmo com eventual sentença favorável do Supremo, ainda será necessário.

Imagem: Monica Hemls

Samir Oliveira

Um campo de concentração para gays na Chechênia: onde fomos parar?

Samir Oliveira
13 de abril de 2017
Foto: Divulgação/Presidência da Rússia

O mundo foi assombrado esta semana por uma informação que nem os piores portais de fake news conseguiriam elaborar: a de que autoridades na Chechênia estariam levando homossexuais para um campo de concentração. Na era da pós-verdade e das notícias falsas, confesso que custei a acreditar. Até que garimpei em diversos sites confiáveis e verifiquei, para meu espanto, que a notícia era verdadeira.

Contudo, a dificuldade de acesso a informações no local, devido ao bloqueio proporcionado pelo poder público na Chechênia, borra ainda mais as fronteiras entre o que é real e o que são especulações.

Por exemplo: até o momento nenhum informe soube precisar onde ficaria este campo de concentração. Mas todos são unânimes em relatar que homossexuais estão sendo perseguidos e assassinados. A maior parte das informações vem de organizações em defesa dos direitos humanos. Tudo começou quando um movimento LGBT da Rússia passou a exigir das autoridades permissão para realização de paradas do orgulho LGBT em diversas cidades do país. A “ousadia” despertou a revolta de comunidades que já são extremamente preconceituosas, deslanchando uma caça às bruxas devastadora para a população LGBT na região – a imensa maioria, aliás, ainda dentro do armário, por motivos óbvios.

?Mas o que a Rússia tem a ver com isso?

Todas as notícias sobre o assunto falham em explicar exatamente o que é a Chechênia. É uma República, mas não é exatamente um país independente. Acontece que na Federação Russa existem vários níveis de autonomia concedidos a seus territórios. Existem 83 divisões territoriais na Rússia: 46 províncias, 21 repúblicas, 9 territórios, 4 regiões autônomas, 2 cidades federais e uma província autônoma.

As repúblicas gozam de uma ampla autonomia em relação ao Kremlin. Têm seus próprios presidentes e parlamentos. Mas isso não justifica a omissão de Vladmir Putin em relação ao que ocorre na República da Chechênia.

Os últimos anos já nos deram provas o suficiente de que a Rússia, como um todo, é uma sociedade bastante conservadora no que diz respeito à população LGBT. Não causa surpresa o fato de o governo central se omitir sobre a perseguição escrachada aos gays em seus territórios.

A República da Chechênia é governada por Ramzan Kadyrov, aliado de Putin e muçulmano sunita, assim como a maioria dos habitantes da região. Não que eu ache que a culpa pelo preconceito seja da religião, muitos países possuem maioria muçulmana, seja ela sunita ou xiita, e não constroem campos de concentração para LGBTs. O Brasil é um país de maioria católica e é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Ou seja, a questão é muito mais profunda e complexa. Infelizmente visões ocidentalistas e mal intencionadas acabam manipulando os fatos para construir um discurso islamofóbico que sirva aos interesses das grandes potências ocidentais.

A própria resposta do governo local da Chechênia às acusações de que estaria perseguindo homossexuais é uma prova cabal de que algo muito obscuro ocorre na região: “Não podemos perseguir quem não existe”.

O autoritarismo de Kadyrov é notório – e não é de hoje. Em 2006, a jornalista russa Anna Politkovskaya foi assassinada em frente ao seu prédio em Moscou semanas após dar uma entrevista a uma rádio qualificando o governante chechênio como “um covarde escondido atrás de um exército”.

Resposta internacional

A comunidade internacional precisa se insurgir contra este absurdo. A construção de campos de concentração para homossexuais nos leva aos períodos mais sombrios da história da humanidade. Há relatos de que as autoridades policiais da Chechênia estariam usando o Facebook para “descobrir” quem é homossexual na região, marcando encontros com homens gays para então prendê-los.

Seria ingenuidade minha pensar que a ONU ou qualquer potência internacional adotariam medidas drásticas contra a Rússia, ela própria uma potência com assento no Conselho de Segurança. Mas é preciso, no mínimo, dar acesso aos grupos em defesa dos direitos humanos para que possam ingressar na Chechênia com plena liberdade para salvar as vidas ameaçadas pela intolerância. Para que possam oferecer aos homossexuais da região uma porta de saída daquele horror.

Foto: Presidente russo, Vladimir Putin, reunido com o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov.
Crédito da Foto: Presidência da Rússia/Divulgação.

Samir Oliveira

Greve geral também é coisa de viado

Samir Oliveira
6 de abril de 2017
Imagem: Reprodução/Filme "Orgulho e Esperança"

O filme “Orgulho e Esperança” retrata uma situação verídica e histórica. Em 1984 os mineiros da Inglaterra estavam em uma dura greve contra o governo de Maragret Thatcher. Uma queda de braços que tremeu o país inteiro e um verdadeiro marco na luta por direitos da classe trabalhadora.

Mas o que a população LGBT tem a ver com isso? É aí que a história fica ainda mais interessante. O incipiente movimento LGBT britânico resolve organizar uma campanha para arrecadar dinheiro às famílias dos mineiros. Um belo gesto de solidariedade com os grevistas e seus familiares. Mas as entidades dos trabalhadores não se empolgam com esta ajuda. O preconceito ainda era imenso em uma sociedade que até 1967 considerava a homossexualidade um crime.

Os ativistas não se intimidaram e viajaram até uma pequena cidade do País de Gales para apoiar o núcleo local de grevistas – para o escândalo da comunidade, que se viu na presença de gays e lésbicas abertamente assumidos e orgulhosos de si. Inicialmente, o pragmatismo falou mais alto. Os grevistas e suas famílias estavam em uma situação miserável e não podiam recusar apoio. Mas em seguida relações se desenvolveram e os preconceitos acabaram se dissipando em meio à solidariedade.

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O filme é uma obra de ficção, mas relata a inspiradora aliança que realmente ocorreu entre os mineiros ingleses e o movimento LGBT da época. Culminando, inclusive, com a participação dos trabalhadores na parada LGBT de Londres. Uma corajosa demonstração de apoio

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O Brasil de hoje certamente não é a Inglaterra dos anos 1980. Mas os ataques que a classe trabalhadora vem sofrendo do governo Temer vêm embalados na mesma ideologia propagada por lideranças como Margaret Thatcher. As centrais sindicais do país, em uma demonstração rara de unidade, convocaram para o dia 28 de abril uma grande greve geral. Motivos para parar o Brasil não faltam, a começar pela reforma da Previdência – passando pela ampliação das terceirizações e pelo congelamento dos investimentos públicos por 20 anos.

O Brasil não tem uma cultura relativamente sólida de greves gerais. Eu, pessoalmente, não consigo lembrar quando foi que ocorreu a última greve geral forte no país. Ao contrário da Argentina, que é uma potência quando se trata de mobilizações sociais. Mas os protestos que lotaram as ruas contra a reforma da Previdência indicam que este ano poderemos ter uma surpresa. Uma greve geral para valer, que faça tremer o governo.

Que nós, LGBTs, nos inspiremos no exemplo dos britânicos dos anos 1980 e estendamos nossa solidariedade a todos os trabalhadores no dia 28. Até porque as medidas do governo não atingir apenas um setor. Vão atingir toda a população, independentemente de identidade de gênero ou orientação sexual. E sabemos muito bem que os ataques pesam mais sobre os setores mais oprimidos e marginalizados.

Imagem: Reprodução/Filme “Orgulho e Esperança”

Samir Oliveira

Devassos no Paraíso, um livro que todo LGBT deveria ter na cabeceira

Samir Oliveira
30 de março de 2017
Devassos no Paraíso

João Silvério Trevisan é uma preciosidade do movimento LGBT brasileiro. Jornalista, escritor, cineasta, pesquisador e ativista, elaborou o estudo mais completo sobre a relação do Brasil com a diversidade sexual e de gênero. Escrito em 1986, o livro “Devassos no Paraíso” faz jus ao seu nada modesto subtítulo: “A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade”.

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A obra mergulha nas entranhas de um Brasil hipócrita e repressivo para demonstrar como, historicamente, a diversidade sexual e de gênero sempre foi criminalizada e punida por diversas instituições no país – ao mesmo tempo em que, no submundo das ruas, era tolerada e apreciada

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Trata-se de uma pesquisa densa e científica, traduzida para o público com a habilidade de um jornalista experiente com as palavras.

Ao desbravar a história da repressão à comunidade LGBT no Brasil, João Silvério Trevisan resgata a cruel perseguição da Inquisição católica durante o período colonial. E nos diverte ao informar as curiosas expressões utilizadas na época para se referir à homossexualidade. O Santo Ofício referia-se ao sexo anal como “tocamento nefando”. Já o prazer lésbico era qualificado como “amizade tola ou de pouco saber”. Expressões que hoje parecem engraçadas, mas que na época condenavam à morte e à tortura.

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Ao avançarmos na leitura de Devassos no Paraíso, descobrimos que a Igreja Católica deu lugar à medicina na opressão à diversidade sexual e de gênero no Brasil

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LGBTs eram enviados aos montes para os manicômios, que funcionavam como uma espécie de depósito de tudo que a sociedade rejeitava. Em seguida o Direito se consagrou como agente repressor, com códigos, constituições e leis no Império e na República que tentavam reprimir práticas sexuais e comportamentos.

Ao mesmo tempo em que expõe o Brasil repressor, João Silvério Trevisan também nos mostra o Brasil que resiste. Aborda o pouco explorado tema da sexualidade entre os povos originários, dando voz a estudos que demonstram a naturalidade com que diversas tribos indígenas encaram a homossexualidade e a transexualidade. A vida cultural do país também é passada a limpo através de artistas e grupos que marcaram suas carreiras e performances pela quebra de estereótipos e pela ousadia em assumir suas identidades – sendo Cássia Eller e Ney Matogrosso as maiores expressões deste fenômeno.

Devassos no Paraíso também fala de política. E como fala! O autor foi um dos fundadores e editores do jornal Lampião da Esquina. Trata-se da primeira e mais importante publicação LGBT do país, cuja própria existência era uma afronta à ditadura, ainda no final dos anos 1970. Além disso, o jornalista criou o grupo SOMOS, principal organização de ativistas pelos direitos dos homossexuais naquela época.

Em seu livro, podemos receber em primeira mão os relatos de um militante histórico pelos direitos LGBTs. Identificado com a esquerda, João Silvério Trevisan é um espírito livre. Não poupa críticas a partidos e organizações que, nos anos 1970 e 1980, custaram a assimilar a pauta dos direitos LGBTs. Relata o preconceito sofrido no interior destas organizações e professado por suas lideranças, além de tentativas de cooptação da luta pela diversidade.

Aos 72 anos, o jornalista segue lúcido e afiado – talvez, por isso mesmo, um pouco afastado da cena pública e do ativismo tradicional. Em 2005, criticou o atrelamento do movimento LGBT aos governos petistas. Governos que, de fato, pouco ou nada fizeram por nossa comunidade. Em nome de uma aliança conservadora, rifaram direitos e inclusive vetaram o programa de combate à homofobia nas escolas. Entregaram todos os anéis aos aliados da direita retrógrada, que acabaram por lhes devorar os dedos, as mãos e o corpo inteiro.

É uma pena que o livro seja hoje uma raridade. Está esgotado. A única forma de conseguir um exemplar é garimpando em sebos, que irão cobrar um preço de ouro por uma obra tão rara. Escrito em 1986, o livro já possui oito edições. A mais atual foi publicada em 2003. Bem que João Silvério poderia nos dar um presente e lançar uma nova versão de sua obra, atualizada até os dias de hoje. Certamente sua análise independente, crítica e revolucionária seria um farol para nossas lutas e sonhos.

Samir Oliveira

Sobre refúgios afetivos e memória coletiva

Samir Oliveira
23 de março de 2017
Foto: Travis Wise/Flickr

Toda comunidade é uma junção de pessoas unidas por traços em comum. Por valores que compartilham, por padrões de comportamento, por códigos e sistemas culturais que se tornam mais valiosos se forem preservados e difundidos coletivamente. Os espaços para que estas trocas aconteçam são fundamentais, verdadeiros refúgios.

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A população LGBT é uma comunidade extremamente diversa. Em todos os sentidos. Da política ao comportamento individual. Nada disso impede que tenhamos, também, nossos próprios refúgios. Espaços coletivos, públicos ou privados que expressam nossas identidades e onde podemos exercer nossos afetos

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A importância desses locais não deve ser subestimada. Foi justamente o ataque sistemático a um deles, o bar Stonewall Inn, em Nova York, que despertou uma rebelião na luta por direitos civis.

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Quando vim para Porto Alegre, eu pouco ou nada sabia sobre estes espaços. A descoberta foi uma aventura cotidiana de libertação e descobrimento

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Talvez o espaço mais tradicional, para mim, seja o Venezianos, um pub pequeno e aconchegante, completamente versátil. Faz as vezes de bar, de restaurante e até mesmo de festa, com uma programação bastante eclética. Outro local histórico é a danceteria Refugius. Um mega complexo que costuma receber uma boa quantidade de público do interior do Estado e da Região Metropolitana.

Enfim, eu poderia citar muitos outros lugares, como o Porto Carioca e o Bahamas, que já são referência na Cidade Baixa para o público LGBT. Acontece que estes locais não precisam necessariamente ser um bar ou uma casa noturna. Podem – e devem – ser também espaços públicos de socialização. Como a própria parada do orgulho LGBT, que ocorre anualmente em centenas de cidade do mundo inteiro.

Estes refúgios físicos e afetivos são fundamentais para a preservação de nossa memória coletiva. São espaços abertos e inclusivos a todos que respeitem a diversidade. Hoje em dia, felizmente, as fronteiras entre diferentes comunidades estão mais fluídas, possibilitando uma troca muito bonita de experiências – desde que haja o devido respeito a identidades e práticas, sem apropriação ou colonização cultural.

Durante muito tempo os espaços de socialização para a população LGBT foram tidos como “guetos”. Este conceito, além de ultrapassado, remete aos tempos mais sombrios da história humana. Queremos espaços livres e diversos. Precisamos deles para interagir e viver em sociedade.

Foto: Travis Wise/Flickr

Samir Oliveira

O que eu aprendi com o Tinder em um ano de solteirice

Samir Oliveira
16 de março de 2017
Foto: Denis Bocquet

Em fevereiro minha solteirice mais recente completou um ano. Eu não tinha ideia do que significava estar solteiro na era dos relacionamentos intermediados por aplicativos. Muita coisa mudou no mundo durante os quatro anos em que estive comprometido. No campo das relações sociais, talvez nada tenha mudado com tanta intensidade como a forma como as pessoas se conhecem hoje em dia.

No início de 2012, quando comecei o relacionamento que teria fim no ano passado, ainda não existia o Tinder. Passei quatro anos sem nenhum tipo de contato com essa tecnologia. Não demorou muito para que eu descobrisse que a minha forma de ser solteiro no período pré-2012 era completamente ultrapassada. Na melhor das hipóteses, era ingênua. Na minha época – lá vem o idoso de 28 anos – a principal plataforma digital para relacionamentos gays era o famoso chat do Terra. Mais especificamente, a sala Eles&Eles.

Mergulhei no mundo dos aplicativos de relacionamentos atraído pela expectativa de desvendar os códigos da solteirice contemporânea. Após um ano como usuário assíduo, posso me atrever a tecer alguns comentários a respeito destes curiosos habitats.

Em primeiro lugar, eu acho incrível como aplicativos como o Tinder nos transformam em marqueteiros de nós mesmos. Precisamos construir uma imagem coerente com os objetivos que queremos alcançar, sejam eles amizade, sexo casual, fetiches ou relacionamentos monogâmicos. Qualquer que seja a proposta, precisamos construir uma imagem de nós mesmos que, em tese, nos ajude a concretizá-la. Este esforço não é necessariamente artificial, embora sua repetição possa torná-lo, no mínimo, automático e frio.

Em um segundo momento, caí numa ilusão que acredito ser comum a todos os iniciantes: a de que ter um match significa ser correspondido. Na verdade eu ainda não sei o que significa ter um match. Mas sei que não significa necessariamente reciprocidade, como a ideia destes aplicativos parece sugerir. E não falo isso para sentir pena de mim mesmo. Já deixei de corresponder tanto quanto não fui correspondido. Com o tempo fui aprendendo que estas coisas simplesmente acontecem. São definidas por circunstâncias e percepções, não necessariamente por maldades ou mesquinharias.

Em um ano interagindo com pessoas através destes aplicativos, já vivenciei uma penca de encontros que renderiam ótimas histórias. Conheci muitos caras e me surpreendi de diferentes formas. Acabei me metendo em algumas furadas, mas também cheguei a fazer até amizades – pelo menos uma boa amizade apareceu para mim pelo Tinder.

Para sobreviver nesta nova forma de ser solteiro, precisei entender que estes aplicativos não podem ser o centro da minha solteirice. Que a vida é muito mais dinâmica do que um jogo de likes e matches e que a troca de olhares e sorrisos ao acaso ainda vale para alguma coisa, felizmente.

Foto: Denis Bocquet/Flickr