Exatamente hoje, dia 1 de junho, tem início o Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv. O evento, que ocorre até o dia 10, está sendo alvo de uma convocação global da comunidade LGBT palestina para que seja boicotado por produtores, diretores e atores. Eu apoio totalmente esse pedido. Por quê?
Em 2005 a sociedade palestina lançou oficialmente uma campanha internacional por boicote, desinvestimento e sanções (BDS) a Israel. A data marca o aniversário de um ano do parecer da Corte Internacional de Justiça que condenou a construção do imenso muro que Israel havia começado a erguer nos territórios palestinos ocupados, transformando a Cisjordânia em uma verdadeira prisão a céu aberto. A muralha de concreto possui uma extensão de 760 km e uma altura de até 8 metros.
A convocação de um amplo boicote internacional a Israel é uma tática de resistência não violenta encontrada pela sociedade palestina para expor e isolar um regime colonialista. Mais do que isso: um regime que implementa um sistema cruel de apartheid contra o povo palestino.
Não é por acaso que o BDS é inspirado na campanha bem sucedida de boicote contra o regime sul-africano do apartheid – que só caiu graças à solidariedade internacional de um mundo envergonhado de fazer negócios e manter relações políticas e culturais com um Estado racista. Hoje lideranças importantes daquele movimento entendem que precisam mais uma vez se colocar do lado certo da História.
Uma delas é Desmond Tutu, bispo anglicano e prêmio Nobel da Paz. Um apoiador ferrenho do BDS. “Eu sei por experiência própria que Israel estabeleceu uma realidade de apartheid dentro de suas fronteiras e através da ocupação dos territórios palestinos. O paralelo com a minha amada África do Sul é dolorosamente certeiro”, disse.
BOICOTE CULTURAL
Uma das ramificações da campanha por BDS é o chamado por boicote cultural a Israel, conclamando artistas do mundo inteiro a se recusarem a emprestar seu prestígio a um regime colonialista. Este forte apelo já conscientizou músicos como Roger Waters, Lauryn Hill, Santana e Stevie Wonder.
Uma campanha muito incisiva foi feita para que Caeatno Veloso e Gilberto Gil cancelassem sua apresentação conjunta em israel em 2015. Mesmo não tendo sido plenamente convencido por ativistas e outros artistas, Caetano chegou a escrever um artigo na Folha de São Paulo relatando sua experiência na turnê e declarando que não voltaria mais a Israel. Ainda que tenha uma limitada compreensão do que significa o BDS, Caetano saiu deste tensionamento mais consciente a respeito da situação do povo palestino e da responsabilidade de Israel neste sistema de opressão.
O TLVFEST E O PINKWASHING
Desde 2006 o Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv, patrocinado e incentivado pelo Ministério da Cultura de Israel, recebe realizadores audiovisuais do mundo inteiro. De lá para cá, tem sentido o crescimento do chamado por boicote feito pelos LGBTs palestinos.
“Eu entendo eles. Não podemos fingir que não temos grandes problemas aqui. Eu também estou furioso com meu país”, disse o fundador do TLVFest, Yair Hochner. Palavras de um cineasta que não apoia o BDS, mas foi obrigado a reconhecer que o movimento tem razão de existir. Muitos cineastas já estão incluindo nos contratos com as distribuidoras uma cláusula que proíbe suas produções de serem exibidas em Israel.
A edição deste ano do TLVFest já coleciona uma significativa rede de adesões ao boicote. O cineasta sul-africano John Trengove divulgou um firme manifesto cancelando sua participação no festival:
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“Este é um problema muito sensível para nós, sul-africanos, que estamos com a dor da luta contra o apartheid ainda presente em nossa consciência coletiva. Conhecendo o que eu conheço, senti que seria imperativa a minha retirada deste festival. É impossível não reconhecer que o festival (e minha participação nele) funciona como uma distração das violações de direitos humanos cometidas pelo Estado de Israel. Um boicote rigoroso contra todas as iniciativas patrocinadas pelo governo israelense é necessário. Como sul-africano, eu sei por experiência própria como o boicote ajudou a consolidar as transformações democráticas no meu país. Por isso decidi somar meu nome e minha voz ao movimento por boicote a Israel.”
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O filme de Trengove, A Ferida, estava agendado para abrir as sessões do festival. A equipe inteira que produziu o documentário Chavela cancelou sua participação do evento. A produção retrata a vida da icônica artista mexicana Chavela Vargas, que aos 81 anos teve a coragem de declarar em uma entrevista que era lésbica.
As baixas ainda incluem a atriz canadense Fawzia Mirza, a cineasta alemã Helene Hegemann, a atriz suíça Jasna Fritzi Bauer e a palestina Nadia Abraham, que seria jurada do festival. Todas essas pessoas entendem que não podem fazer parte da máquina de propaganda de Israel – que utiliza a existência de determinados direitos à população LGBT no país para revestir seu regime colonial com uma tintura progressista. Esta é a prática que se convencionou chamar de Pinkwashing.
Não são poucos os exemplos de que Israel utiliza a situação da população LGBT no país para transmitir ao mundo a imagem de que seria uma democracia aberta e progressista. Um farol de luz em meio ao atraso do Oriente Médio. Enfim, insira aqui o clichê islamofóbico e racista que mais convém ao sionismo.
A página das Forças Armadas de Israel no Facebook chega a ser patética na tentativa de construir a imagem de um exército camarada. Como se existisse repressão amiga. É evidente que qualquer pessoa LGBT que queira seguir carreira militar em qualquer país do mundo precisa ser respeitada e ter os mesmos direitos que heterossexuais e cisgêneros.
Só que existe uma grande diferença entre assegurar direitos e utilizá-los como arma de guerra em uma disputa por sentidos. Ainda mais quando estes direitos são muito úteis a um sistema opressivo, pois garantem a Israel mais efetivo em campo para reprimir a população palestina, vigiar os inúmeros postos de controle – verdadeiros pedágios humanos que restringem o direito de ir e vir do povo palestino – e garantir a aplicação das mais de 50 leis que discriminam os palestinos em Israel e os transformam em cidadãos de segunda categoria.
Num país onde o serviço militar é obrigatório, o que se vê nas ruas, estradas e checkpoints são jovens fardados e assustados. Quase todos perdidos de armas na mão.
E A POPULAÇÃO LGBT PALESTINA?
Quem quiser desqualificar a denúncia do Pinkwashing como uma atitude homofóbica ou supostamente contrária à população LGBT de Israel vai se dar mal. É a própria população LGBT palestina – sim, ela existe! – e seus segmentos organizados que estão dizendo em alto e bom som: “Não se deixem enganar, Israel não respeita os direitos humanos”.
Organizações como a Al-Qaws – que significa Arco-Íris em árabe – e a Aswat (que significa Vozes) fazem um fantástico trabalho de base com a população LGBT dos territórios palestinos ocupados. Organizam festas, grupos de apoio psicológico, campanhas educativas e fornecem espaços seguros para troca de experiências e articulação coletiva. Tudo isso sem embarcar no discurso capenga de que Israel é um paraíso para os homossexuais enquanto a Palestina e o mundo árabe como um todo reservam apenas sofrimento e perseguição a LGBTs.
Os LGBTs palestinos estão demonstrando na prática que é possível lutar contra o preconceito em suas comunidades sem aderir ao homonacionalismo sionista. Sem ter que fazer uma falsa escolha entre quem são e de onde vêm.
LINKS DE INTERESSE
– BDS Movement: https://bdsmovement.net
– Leis que discriminam a população árabe de Israel: https://www.adalah.org/en/law/
– Manifesto por boicote ao Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv: http://www.pinkwatchingisrael.com/portfolio/tlvpride17/#!prettyPhoto
– ONG Al-Qaws: http://www.alqaws.org/siteEn
– ONG Aswat: https://www.facebook.com/aswat.voices/
– Pinkwatching Israel: http://www.pinkwatchingisrael.com/
Foto: bdsmovement.net
