Voos Literários

7 visões literárias sobre Porto Alegre

Flávia Cunha
26 de março de 2018
Porto Alegre, RS - 21/07/2017 Entardecer no Centro Histórico Na foto: Mercado Público Central Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Porto Alegre completa 246 anos hoje  e eu fico buscando motivos internos para celebrar. É a cidade onde nasci, em que vivo há 40 anos e aqui construí a minha história, o que inclui gostar muito dos artistas locais, entre eles os escritores. Mas a capital do Rio Grande do Sul anda sendo maltratada, com ruas sujas, matagal alto por todos os lados, a população de rua aumentando cada vez mais

E eu, como sempre que a realidade me atormenta, recorro à Literatura. Descobri muitos textos em que a cidade é citada, então, esse é o presente que dou a vocês e a mim.

Porto Alegre pelos olhos de escritores talentosos, de diferentes épocas. Vamos torcer para que a cidade tenha dias melhores, em breve

 

 .

A zona Sul da cidade

“Ninguém está nesta parte da cidade num dia de semana a esta hora da tarde, exceto os caras nos barcos, uns bem próximos, ao redor do clube de velas, outros um pouco mais longe, mas nunca muitos, até porque o lago não é a 10 coisa mais linda do mundo. Quero dizer, todos nós gostaríamos que ele fosse ao menos um pouco mais azul. Lagos costumam ser azuis, não marrons, e as pessoas adoram o azul, é a cor favorita da maioria delas, isso tudo por causa do céu e da água (certamente não dessa), o que eu também vi num documentário, que é o que faço perto da hora de dormir. De qualquer maneira, está abrindo, o bar em que já estive um milhão de vezes, sentado conversando enquanto esmigalhava rótulos ou tentava rosas de guardanapo, na rua de pé com um copo descartável de vinho, ou então jogando sinuca no salão dos fundos, que podemos dizer que é uma parte construída literalmente dentro d’água, o que tem deixado a prefeitura puta da vida há uns vinte anos.”

Carol Bensimon, Sinuca embaixo d’água. Leia um trecho aqui.

.

 O Parque Farroupilha, um dos mais frequentados pelos porto-alegrenses

“Passava agora pelo calçadão de areia da Redenção, pela Avenida João Pessoa, o parque ensolarado, os pássaros voando em bando, carros a passarem em alta velocidade, crianças que iam para o colégio, grandes nuvens que desenhavam formas estranhas no céu azul translúcido. […] Passou pela Faculdade de Direito, onde passara bons anos de sua vida, as recordações se atropelavam, estugou o passo, precisava vencer o passado que não lhe interessava mais. Passou pela frente do velho casarão da Santa Casa de Misericórdia, pelas casas iguais do quarteirão, pela Igreja da Conceição, os velhos portões de ferro trabalhado, os gradis cheios de arabescos, cruzou a Rua Santo Antônio e foi quando diminuiu o passo […]

Josué Guimarães, Camilo Mortágua. O romance se passo no ano de 1964, marcado pelo Golpe Militar.

 .

O Guaíba, com todo seu esplendor

“Fui até a minha praça, na volta do Gasômetro, e é só lá que encontro céu e rio à vontade, azuis, imensos, quase fundidos um com o outro. O céu e o rio vistos daqui da cidade são ávaros, mostram pedacinhos pequenos, perdidos no meio dos edifícios. Parecem ter vergonha de se mostrar. Lá, não.”

Caio Fernando Abreu, Limite Branco. Primeiro romance do autor e um dos poucos em que Porto Alegre aparece claramente como o cenário de um enredo

“O rio está tranquilo e o horizonte é de um verde tênue e aguado que vai se diluindo num azul desbotado. As montanhas ao longe são uma pincelada fraca de violeta. A superfície da água está toda crivada de estrelinhas de prata e ouro. Longe aparece o casario de Pedras, na encosta dum morro. Mais perto o Morro do Sabiá avança sobre o rio. O céu é tão azul, tão puro e luminoso, que Noel simplesmente não acredita que seja um céu de verdade.”

Erico Verissimo, Caminhos Cruzados. A obra do escritor inclui romances urbanos bem interessantes, como Noite e Clarissa, mesmo tendo ficado conhecido pela trilogia “O Tempo e O Vento”

.

O centro de Porto Alegre

“Encontrei esse cachorro quase morto de fome na Praça da Alfândega, numa madrugada de outono fria pra cacete, quando voltava de um bar. Era um vira-lata que deixara de ser filhote fazia pouco tempo, preto com dezenas de manchas brancas. Na esquina havia uma caçamba de entulho da prefeitura. Vasculhei o lixo ali dentro e encontrei uma tira comprida de plástico. Improvisei uma coleira ao redor do pescoço do cachorro e o arrastei até o meu prédio, no alto da Duque.”

Daniel Galera, Até o dia em que o Cão Morreu, que inspirou o filme Cão Sem Dono

.

A Porto Alegre do século XIX, que já tinha problemas de transporte público

“Há dias que é uma vergonha, os bondes levam horas e horas nos desvios. Ainda há pouco tempo, num passeio que eu fiz com o Ramalho, levamos duas horas e quarenta e cinco minutos do Parthenon à praça da Alfândega. O bonde descarrilou três vezes, esperou um quarto de hora em três desvios, as bestas rebentavam as correias de espaço a espaço.”

Paulino de Azurenha, Mário Totta e Souza Lobo, Estrychinina. Romance de 1897 que narra a história de amor impossível entre Chiquita, uma prostituta, e Neco, um rapaz de “boa família”. Em meio a esse impasse, o casal vaga pela cidade e o leitor consegue identificar casarões antigos da rua Riachuelo, a Rua da Praia, com seu comércio pulsante, e festividades realizadas na Praça da Alfândega e no Menino Deus.

.

Um poema sobre Porto Alegre, por um poeta apaixonado pela cidade

O Mapa

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei…)

Mario Quintana,  Apontamentos de História Sobrenatural. Publicado em 1976, quando o poeta estava com 70 anos.

.

Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Voos Literários

A Literatura Mudou A Minha Vida (Várias Vezes)

Flávia Cunha
28 de março de 2017

Nas reflexões necessárias para criar os textos para esse espaço, comecei a fazer divagações do quanto ela, a Literatura, assim mesmo, com a letra L maiúscula, esteve presente em grande parte dos meus quase 40 anos de vida.

Tentando sistematizar em períodos, percebo que, mesmo antes de ser alfabetizada, eu já flertava com os textos literários, em uma paixão quase irracional.

O flagrante dessa foto foi feito por volta dos meus 3, 4 anos de idade. Eu ainda não entendia nada das histórias do Asterix e suas aventuras divertidíssimas na aldeia gaulesa resistente ao Império Romano. Mas achava a coisa mais linda do mundo sentar, muito quieta, e ficar ali olhando para aquelas páginas.

Vim de uma família de leitores compulsivos e os livros acumulavam-se pelos apartamentos em que moramos ao longo da minha infância. Eu era uma criança tímida e retraída e o único prêmio que ganhei na escola foi um diploma de primeiro lugar em leitura na biblioteca da escola estadual onde estudei.

Livro que marcou essa época: A Bolsa Amarela, Lygia Bojunga Nunes

Já pré-adolescente, passei pela minha primeira perda familiar. Meu avô materno se foi, deixando uma saudade gigante da sua presença bondosa, de seus longos bigodes brancos e cativantes olhos verdes. Acabamos indo morar no apartamento que havia sido dele e a biblioteca da casa virou meu quarto. Recordo perfeitamente das leituras de livros para adultos, escondida da supervisão de meus pais. Muitos deles eu não entendia direito, mas já percebia a predileção do meu avô por autores franceses e obras de escritores gaúchos com enredos urbanos.

Livros que marcaram essa época: Contos, de Guy de Maupassant e Noite, de Erico Verissimo. (um retrato sombrio e meio surreal de Porto Alegre, ainda é meu preferido do Erico.)

Na adolescência, a rebeldia tomou conta de mim, com a separação dos meus pais. Mas ela, a Literatura, estava lá. Meu refúgio. Segui lendo muito, porque era uma fuga saudável das agruras da vida. Sem contraindicações.

Livros que marcaram essa época: É Tarde Para Saber, de Josué Guimarães e O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger.

O tempo passou, me formei como jornalista e os livros seguiam na minha preferência na lista de compras, normalmente antes de roupas ou outros itens de consumo. Em 2004, entrei numa grande emissora de rádio. Muitos acharam sensacional aquela conquista. Eu dava de ombros. Estava naquela corporação tão desejada pelos profissionais da área apenas por necessidade financeira. A Cultura e a Literatura não eram a prioridade da programação da rádio e eu sofria com isso. Por não ter afinidade com o meu trabalho. Por ter que esconder essa predileção e muitas vezes ter que fingir que amava as tais hardnews, as notícias do dia a dia.

Na falta de uma nova opção profissional, me refugiei na Literatura. Primeiro, foram oficinas literárias. Depois, comecei a estudar Letras na UFRGS. Primeiro a graduação. Depois, a decisão por interromper a graduação e fazer o Mestrado em Literatura.

Livros que marcaram essa época: O Dia Em Que O Papa foi A Melo, Aldyr Garcia Schlee, Quincas Borba, de Machado de Assis.

Lá por 2011, 2012, completamente arrasada depois de anos trabalhando com algo que não gostava, pedi demissão. Os motivos de ter ficado tanto tempo na mesma empresa, suponho que vocês possam imaginar: a ilusória estabilidade da carteira assinada. Plano de saúde. Férias remuneradas. Mas a frustração era maior do que o medo e parti em busca dos meus sonhos. Depois de um tempo trabalhando por conta própria, em 2015 surgiu a chance em uma editora de livros, voltada para o público infantojuvenil. Produção editorial e produção de eventos culturais é no que trabalho atualmente. Nem sempre compensa financeiramente, mas tenho certeza que a minha musa, a Literatura, ainda vai me recompensar, depois de tanta devoção.

Voos Literários

Existe consumismo em se tratando de literatura?

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2017

Primeiro, vamos deixar claro o conceito básico de consumismo: a compulsão para a compra de bens, mercadorias ou serviços considerados supérfluos. Ou seja, itens desnecessários. Como fervorosa defensora de livros, tenho dificuldade em aceitar que esses possam ser considerados de alguma forma dispensáveis. Porém, vamos encarar a realidade: conheço muita gente boa que adquire livros mesmo sabendo que não terá tempo para lê-los. Existe outro tipo de pessoa que vai às compras literárias porque quer ter diversos exemplares vistosos nas prateleiras de casa, com o objetivo de parecer culto e nem tem a intenção de ler aquelas obras.

Em comum nas duas categorias acima, está o dinheiro extra na conta bancária. Livros podem mesmo ser um símbolo de status e prestígio. Já li reportagens sobre sebos especializados na venda de obras por metro para decoradores contratados por clientes interessados em dar pinta de intelectual. A vontade de parecer um admirador de literatura chega mesmo ao extremo do uso de livros cenográficos.

“Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas e se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings?”

No outro extremo, está a grande parcela dos apaixonados por livros. Muita vontade de ter uma biblioteca particular imensa e pouca grana no bolso. Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings, de itens de vestuário e de show internacionais, por exemplo, os livros estão longe de serem inacessíveis, ao menos para a classe média.

Se a crise realmente bateu à sua porta, ainda assim isso não é desculpa para não ler. Existem sebos, inclusive virtuais, com livros vendidos a preços variados, basta pesquisar. Existem, ainda, sites com obras disponibilizadas online para download (alguns são perseguidos pela Polícia Federal por causa dos direitos autorais dos livros oferecidos de graça, mas isso é papo para outro texto).

E as bibliotecas?

O paraíso dos leitores sem dinheiro no bolso. Em Porto Alegre, recomendo a do Centro Municipal de Cultura. Sou frequentadora desde adolescente e tem muita coisa boa por lá. Foi lá que li grande parte da obra de Erico Verissimo, descobri quase todos os livros escritos por García Márquez e tive acesso ao maravilhoso Travessuras da Meniná Má, de Mario Vargas Llosa. Também foi graças a esse templo da cultura que li praticamente todos os livros do Caio Fernando Abreu (e depois fui comprando devagarinho para ter em casa). Outra preciosidade garimpada entre as prateleiras da biblioteca Josué Guimarães está Scar Tissue, autobiografia do Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chili Peppers. Como vocês podem ver, um acervo variado e que vale mesmo a pena conferir.

Para ir além: