OUÇA Bendita Sois Vós #32 Precarização do trabalho
Geórgia Santos
22 de setembro de 2019
Nesta semana, trazemos para o centro do debate a precarização das relações de trabalho. A reforma trabalhista prometia aumentar salário após flexibilizar a legislação e terceirizar a mão de obra, mas o mercado só gera postos de trabalho com rendimentos precários. Segundo o IPEA, praticamente todas as novas vagas com carteira de trabalho assinada geradas no país em 2019 possuem uma remuneração máxima de até dois salários mínimos.
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Para compreender melhor essa realidade, conversamos com Ludmilla Costhek Abílio, doutora em Ciências Sociais, autora do livro “Sem Maquiagem, o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos”, da Boitempo Editorial
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No Sobre Nós, Raquel Grabauska traz Os Ratos, de Dyonélio Machado. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. A edição é da jornalista Evelin Argenta.
Cumprir mandato é quase missão impossível no Brasil. E isso diz muito sobre nossa política
De todos os presidentes que tivemos desde 1930, apenas quatro foram eleitos em votação direta e, ao mesmo tempo, tiveram oportunidade de cumprir seus mandatos até o fim. O dado, mencionado pela primeira vez no twitter por André Mendes Pini, é exatamente esse aí que você acabou de ler. Dos mais de vinte governantes que tivemos nos últimos 86 anos, apenas quatro puderam, uma vez abençoados pelas urnas, levar seus mandatos até o final. Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro. Somente quatro.
OK, eu dou alguns segundos para que você possa digerir essa informação.
A partir daí, é possível fazer algumas ponderações. Na verdade, Lula e FHC cumpriram dois mandatos cada um, Dilma cumpriu seu primeiro mandato até o fim, então são sete períodos cumpridos na íntegra por presidentes eleitos, e não quatro. Da mesma forma, vale lembrar que João Goulart foi eleito de forma direta, em uma chapa separada, para ser vice-presidente de Jânio Quadros. Ou seja, diferencia-se da situação de Itamar Franco e, ao que tudo indica, Michel Temer – eleitos sim, mas como integrantes de uma chapa fechada, do mesmo modo que se vê eleito o suplente de um senador, por exemplo.
São ressalvas justas, mas que não mudam o fato simples e assombroso. Ser eleito pelo povo e cumprir o mandato que recebeu, algo que deveria ser a mais natural das regras democráticas, é uma exceção em quase um século de trajetória política brasileira. Observado dentro desse padrão, o corrente (e, no momento em que escrevo, virtualmente consumado) impeachment de Dilma Rousseff ganha diferentes contornos: deixa de ser um processo particular, movido por razões e circunstâncias particulares, e insere-se em um cenário de quase permanente instabilidade política e institucional.
Mais de uma vez sofremos a intervenção de forças pretensamente piedosas, querendo nos salvar de nosso próprio voto. Seja pela intervenção do Congresso, seja pelo golpe militar, seja pela ação parlamentar que muita gente diz que é golpe. Além dessas, tivemos também uma renúncia, e um presidente que tinha sido ditador e decidiu matar-se com um tiro no peito. Ignorando a ilegitimidade total da ditadura militar, sobraram dessas interrupções alguns interinos inseguros e vice-presidentes que herdam um comando para o qual dificilmente teriam sido eleitos, fossem cabeças de chapa. A unir esses encerramentos abruptos e reinícios hesitantes, é claro, um quase permanente cenário de convulsão social. Nossa democracia é conturbada e confusa, uma espécie de amor bandido que nunca se cansa de recomeçar.
Agora estão, percebam bem, tentando nos salvar de nós mesmos uma vez mais. Dilma Rousseff é uma governante fraca e sem apoio, que navega em águas turbulentas desde que foi eleita, que conduziu o país a partir de um modelo econômico irresponsável e criou dificuldades para milhões de brasileiros. As pedaladas e demais crimes de responsabilidade podem ser deixados de lado neste momento, concorde você ou não com as acusações: o grande objetivo, a meta final desse arrastado e dramático processo de impeachment é dar um reset na política nacional. De novo. Os próprios deputados e senadores que votarão pelo encerramento da Era Dilma admitem isso, sem muito esforço em disfarçar. A partir da saída de Dilma do Planalto, acreditam seus opositores, teremos a chance de colocar as coisas nos eixos. De novo. Porque o eleitor foi enganado, porque a situação saiu do controle e ninguém aguenta mais. De novo.
Não dá para levar muito a sério uma democracia que está sempre devorando o próprio rabo. Não dá para dizer que funcionam instituições que nunca conseguem garantir para nossa viagem democrática muito mais que vinte anos sem turbulência. E não podemos nos furtar a olhar no espelho e tentar entender por que diabos é tão difícil que nossos presidentes tomem posse como num reloginho, de quatro em quatro anos, nem mais e nem menos. Sem entender o que nos impede de concluir as coisas, nunca deixaremos de reiniciá-las.
Remover presidentes eleitos é um aspecto da democracia, dirão alguns. Até é, mesmo. Ainda assim, sou forçado a lembrar para vocês: quatro presidentes em 86 anos. Quatro. Apenas quatro.
Não dá para fingir que está tudo bem. Nem para acreditar muito que agora vai.