Igor Natusch

Alexandre de Moraes e o Judiciário contaminado

Igor Natusch
8 de fevereiro de 2017
Brasília - Michel Temer coordena primeira reunião com sua equipe após tomar posse na Presidência da República do Brasil. À direita, o ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes (Valter Campanato/Agência Brasil)

A indicação do atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal é desastrosa em vários níveis. Não apenas porque o indicado coleciona fracassos e eventos questionáveis em sua gestão, que vão desde uma pretensão absurda de erradicar a maconha em todo o continente (algo que ele, noves fora o delírio, ele não tem alcance legal para fazer) até uma mentira descarada sobre a presença de tropas federais em Roraima, passando por uma gestão desastrada do Fundo Penitenciário – tudo em meio a uma situação caótica e sangrenta em vários presídios do país. Também não é pelo seu histórico desastroso na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, onde comprovadamente mascarou dados de homicídios para fingir que a situação não era tão grave quanto sabemos que é. Tudo isso, claro, causa consternação – mas poderia ser rebatido a partir do notório saber jurídico e da produtiva carreira acadêmica do ministro, considerado uma das mentes mais promissoras do Direito brasileiro antes de transformar-se em (mau) gestor. Um exercício difícil, mas que não estaria proibido, de forma alguma.

O problema maior, porém, não está na incompetência do indicado. Incompetentes, no STF, têm sido mais comuns do que deveriam, inclusive. O intolerável está nas notórias, e jamais disfarçadas, afinidades políticas de Alexandre de Moraes. Filiado ao PSDB desde 2015 até pouco depois da indicação, ele é facilmente a mais politiqueira das indicações ao STF em muito tempo, superando com folga a presença de gente como Dias Tóffoli – que já era, convenhamos, mais do que suficiente nesse sentido. Já na pasta da Justiça a postura de Moraes era pouco republicana, repassando informações sigilosas ao núcleo de Michel Temer e antecipando ações da Lava-Jato contra o PT para contar vantagem em pleno palanque eleitoral, algo tão insólito e grave que motivou até um editorial no Estadão pedindo que ele renunciasse. Um alinhamento político que sempre rendeu frutos, fazendo dele um dos poucos nomes com trânsito irrestrito entre os tucanos e garantindo a blindagem de Temer, que jamais cogitou retirá-lo do posto, mesmo no auge da crise na segurança pública do país.

A independência entre os poderes não é apenas um conceito bonito: é algo fundamental para uma democracia minimamente saudável, pelo qual vale a pena (e muito) lutar. Só sendo muito #teamTemer ou #foraPT para ignorar o cheiro nauseante que emana dessa indicação – o mesmo fedor, aliás, que sentimos diante de Moreira Franco alçado a ministro, cargo que dá a ele o mesmo foro privilegiado que Gilmar Mendes negou a Lula no ministério de Dilma Rousseff. O mesmo Gilmar Mendes, aliás, que não se constrange em visitar e até pegar carona no avião de Michel Temer, a quem pode julgar enquanto presidente do TSE… Bem, acho que dá para entender onde quero chegar.

A indicação de Alexandre de Moraes – que inclusive nega e ridiculariza o que ele próprio disse em sua tese de doutorado – coloca como revisor da Lava-Jato alguém que estava até ontem no coração do governo que convulsiona por causa desta mesma investigação, sob a suspeita indisfarçável de que será um soldado do governo, e não da sociedade brasileira, durante sua longa estada na mais alta corte do Brasil. Nesse cenário, como não lembrar de Romero Jucá falando, na gravação agora famosa, de “estancar a sangria” com um “grande acordo, com STF, com tudo” – um spoiler tão eficiente que é quase o pré-roteiro de tudo que andamos vendo atualmente? Se o dito aparelhamento do Estado pelos governos petistas preocupava ao ponto de motivar protestos pedindo impeachment, como podem esses escandalosos sinais atuais de aparelhamento serem vistos com indiferença ou, pior ainda, relativizados?

Um dos sinais mais claros de um ambiente democrático se esfarelando é o desinteresse por princípios que se erguem acima das conveniências partidárias ou das raivinhas de ocasião. Qualquer um que deseja uma democracia sadia no Brasil, independente de alinhamento ideológico, deveria estar no mínimo assustado com a perspectiva de Alexandre de Moraes no STF. Porque ele escolheu virar um gestor incompetente ao invés de se aprofundar na doutrina, porque ele mente e dissimula informações de interesse público, porque já demonstrou destempero e falta de isenção em inúmeros momentos – mas, acima de tudo, porque é fortíssima a suspeita de que estará lá apenas para fazer o serviço do grupo político que está no poder. São sombrias as perspectivas para um país que aceite essa barbaridade sem espernear.

Igor Natusch

Hora de rever o resultado das urnas. De novo

Igor Natusch
12 de setembro de 2016

Cumprir mandato é quase missão impossível no Brasil. E isso diz muito sobre nossa política

De todos os presidentes que tivemos desde 1930, apenas quatro foram eleitos em votação direta e, ao mesmo tempo, tiveram oportunidade de cumprir seus mandatos até o fim. O dado, mencionado pela primeira vez no twitter por André Mendes Pini, é exatamente esse aí que você acabou de ler. Dos mais de vinte governantes que tivemos nos últimos 86 anos, apenas quatro puderam, uma vez abençoados pelas urnas, levar seus mandatos até o final. Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro. Somente quatro.

OK, eu dou alguns segundos para que você possa digerir essa informação.

A partir daí, é possível fazer algumas ponderações. Na verdade, Lula e FHC cumpriram dois mandatos cada um, Dilma cumpriu seu primeiro mandato até o fim, então são sete períodos cumpridos na íntegra por presidentes eleitos, e não quatro. Da mesma forma, vale lembrar que João Goulart foi eleito de forma direta, em uma chapa separada, para ser vice-presidente de Jânio Quadros. Ou seja, diferencia-se da situação de Itamar Franco e, ao que tudo indica, Michel Temer – eleitos sim, mas como integrantes de uma chapa fechada, do mesmo modo que se vê eleito o suplente de um senador, por exemplo.

São ressalvas justas, mas que não mudam o fato simples e assombroso. Ser eleito pelo povo e cumprir o mandato que recebeu, algo que deveria ser a mais natural das regras democráticas, é uma exceção em quase um século de trajetória política brasileira. Observado dentro desse padrão, o corrente (e, no momento em que escrevo, virtualmente consumado) impeachment de Dilma Rousseff ganha diferentes contornos: deixa de ser um processo particular, movido por razões e circunstâncias particulares, e insere-se em um cenário de quase permanente instabilidade política e institucional.

Mais de uma vez sofremos a intervenção de forças pretensamente piedosas, querendo nos salvar de nosso próprio voto. Seja pela intervenção do Congresso, seja pelo golpe militar, seja pela ação parlamentar que muita gente diz que é golpe. Além dessas, tivemos também uma renúncia, e um presidente que tinha sido ditador e decidiu matar-se com um tiro no peito. Ignorando a ilegitimidade total da ditadura militar, sobraram dessas interrupções alguns interinos inseguros e vice-presidentes que herdam um comando para o qual dificilmente teriam sido eleitos, fossem cabeças de chapa. A unir esses encerramentos abruptos e reinícios hesitantes, é claro, um quase permanente cenário de convulsão social. Nossa democracia é conturbada e confusa, uma espécie de amor bandido que nunca se cansa de recomeçar.

Agora estão, percebam bem, tentando nos salvar de nós mesmos uma vez mais. Dilma Rousseff é uma governante fraca e sem apoio, que navega em águas turbulentas desde que foi eleita, que conduziu o país a partir de um modelo econômico irresponsável e criou dificuldades para milhões de brasileiros. As pedaladas e demais crimes de responsabilidade podem ser deixados de lado neste momento, concorde você ou não com as acusações: o grande objetivo, a meta final desse arrastado e dramático processo de impeachment é dar um reset na política nacional. De novo. Os próprios deputados e senadores que votarão pelo encerramento da Era Dilma admitem isso, sem muito esforço em disfarçar. A partir da saída de Dilma do Planalto, acreditam seus opositores, teremos a chance de colocar as coisas nos eixos. De novo. Porque o eleitor foi enganado, porque a situação saiu do controle e ninguém aguenta mais. De novo.

Não dá para levar muito a sério uma democracia que está sempre devorando o próprio rabo. Não dá para dizer que funcionam instituições que nunca conseguem garantir para nossa viagem democrática muito mais que vinte anos sem turbulência. E não podemos nos furtar a olhar no espelho e tentar entender por que diabos é tão difícil que nossos presidentes tomem posse como num reloginho, de quatro em quatro anos, nem mais e nem menos. Sem entender o que nos impede de concluir as coisas, nunca deixaremos de reiniciá-las.

Remover presidentes eleitos é um aspecto da democracia, dirão alguns. Até é, mesmo. Ainda assim, sou forçado a lembrar para vocês: quatro presidentes em 86 anos. Quatro. Apenas quatro.

Não dá para fingir que está tudo bem. Nem para acreditar muito que agora vai.