Nós US

Não, Trump não foi Brexit

Sacha
22 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Há todo um mundo de comparações entre o Brexit e Trump. São considerados fenômenos-irmãos, uma onda que se está a espalhar pelo Ocidente. Só que, apesar das aparências, não são tão parecidos assim.

Semelhanças

É verdade, sim, que o populismo ocidental segue uma tendência conservadora. É também verdade que a xenofobia está em alta, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Nessa mesma linha, é um fato que a demografia do ocidente está a mudar para lados cada vez menos brancos e cristãos. Também parece verdade, de momento, que o Partido Conservador do Reino Unido e o Partido Republicano dos Estados Unidos não têm planos tão bem definidos quanto faziam parecer para os próximos passos depois dos êxitos eleitorais. Em ambos os casos, a grande imprensa ajudou a construir e participou de um espetáculo mediático, abusando de falsas premissas e fatos fabricados para levar a cabo um resultado mais dramático e lucrativo. Até aqui, só semelhanças entre os dois casos.

Onde os caminhos se separam

O ponto de divergência entre o Brexit e Trump reside, em parte, na diferença fundamental dos respectivos cenários políticos. A convocatória de um plebiscito para determinar a permanência na União Europeia por parte de um governo britânico com uma maioria ampla no Parlamento não corresponde, de fato, com a ocorrência regular de eleições para o líder de outro país. David Cameron convocou o plebiscito na busca de consolidação política em casa e legitimação em Bruxelas, onde a sua posição de barganha se viu bastante reduzida por erros políticos na escala europeia.

O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral

O grande erro de Cameron foi subestimar a apatia e fricção com a União Europeia que têm os ingleses mais velhos. Esses mesmos que mais tendem a votar e que viveram todo o trajeto do encaixe difícil do Reino Unido na União Europeia. Comparamos isso com o fato de Donald Trump perder em torno de 3 milhões de votos contra Hillary Clinton no voto popular, deixando dúvidas sobre a legitimidade do seu mandato—senão em boa parte do sistema eleitoral que o permitiu ganhar apesar da discrepância. O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral.

A fricção entre o Reino Unido e a União Europeia sempre foi bem conhecida e levou a UE a ceder vários estatutos privilegiados para a nação com respeito à contribuição orçamental, à pertinência na zona da moeda única e mais. Já Trump representa a culminação de anos de retórico extremo normalizado por fações do Partido Republicano e a imprensa conservadora dos Estados Unidos, principalmente no seu jogo de obstinação contra tudo que tinha a ver com o presidente Barack Obama.

O motivo principal de votar pela saída do Reino Unido da União Europeia era uma nostalgia por tempos de maior relevância na escala mundial, acertado por uma margem ampla. O motivo principal de votar em Trump era uma crença na sua vangloriosa retórica xenófoba, racista, misógina e nacionalista como solução fácil para problemas locais que nada têm a ver—um elixir acertado por margens estreitíssimas nos lugares certos.

As coincidências entre eles são muitas, mas melhor evitarmos tratá-las como se fossem exatamente o mesmo fenômeno.

Imagem: Michal Zacharzewski
Nós US

We’ve Debuted the Decadence

Sacha
8 de fevereiro de 2017

(pode ler este artigo em português aqui)

We’ve already said goodbye to 2016 and arrived at the dawn of the inauguration of our unloved circus peanut as President of the United States of America. If there were an original joke to write about this appearing to be a scene out of a movie, I would write one, but there isn’t. We already know who the next “leader of the free world” (for as much controversy as that phrase involves) is and what he stands for.

Setting the scene of the beginning of 2017 is the triumph of the rejection of “technocracy” in favor of simplistic and nationalistic responses to the changes that the progression of globalization has brought to the fore. It no longer matters what experts say with regard to the worldwide consequences of this phenomenon, since they are the easiest scapegoat for all of the problems in our economies and their inability to reallocate and reinvent workers faced against forces that know no national boundaries. This is the point from which we arrived at Trump and Brexit. The pre-existing order of the West has been profoundly altered.

The most accurate word for this phenomenon would be decadence.

Not just in the sense of decline, but also the confrontation with the failures of the system. How are we going to tell the factory worker—whether from Lincolnshire or Michigan—that their life’s work not only is never coming back, but that it was in fact substituted entirely by gains in productivity thanks to new technology and machines? By appealing to vainglory, ignoring the facts and complications of real life, because that’s what they want to hear. Decadence resides in their reaction to the false promises and the snake oil they’ve bought.

But why, then, decadence? Let’s call it that for the decline of public service, which is the point of any political position. The current discourse, arising as much in Trump as in Europe’s simmering populism, is, at heart, an appeal to a simplistic image of government functioning. Governing is not a simple task. Appealing to a fantasy of a government-turned-machine in the service of enriching those of the majority left behind is simple. Governance is not capable of pleasing everyone at once. Populism’s purpose is to say the words that it hopes will please everyone in that majority. It’s decadent because it defrauds the proper principles of politics and governance.

A lot is said about “us” in populist discourse, in appeals to patrimonial vainglory of the nation, in nostalgia for times that never existed. This “us” is most convenient when the attraction to dividing the public is strongest. We are good people, versus those who don’t have morals. We are honest workers, versus those who already have everything and wouldn’t know a proper day’s work if it slapped them in the face. We have common sense, we understand the world around us like it is, versus those who spend all day in a laboratory researching things. We are civilized, versus those buffoons on the other side. There’s a whole universe of generic examples of this “us” that simultaneously represents everyone and no one. This “us” is simplistic by default. The real us is complex, includes even the least estimable parts of our society, has defects, and always needs corrections in its system.

We’ve debuted the decadence.

Now we’re debuting Us.

Nós US

Inauguramos a decadência

Sacha
8 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Já dissemos adeus a 2016 e chegamos à inauguração do nosso desestimado circus peanut como Presidente dos Estados Unidos da América. Se houvesse piada original a escrever desta que parece cena de filme, escreveria, mas não há. Já sabemos quem ele é e o que representa o novo “líder do mundo livre” (se bem que esta frase carrega polêmica em si). Vamos além, então.

O cenário deste início de 2017 é o triunfo de respostas singelas e nacionalistas às mudanças que a globalização traz. Não importa mais o que dizem os especialistas acerca das consequências em escala mundial deste fenômeno. Isso porque os experts são o bode expiatório mais fácil a quem atribuir o fracasso das economias, que já não são capazes de recolocarem e reinventarem as classes trabalhadoras perante forças sem fronteiras. Partimos desta base para chegar a Trump e ao Brexit. Através deste fenômeno, a ordem pré-existente do Ocidente ficou profundamente alterada.

A palavra mais acertada para este fenômeno seria decadência.

Não somente no sentido de declínio, mas também no enfrentamento da falha do sistema. Como é que vamos dizer ao trabalhador de fábrica—seja de Lincolnshire, seja do Michigan—que o seu trabalho de toda a vida não só nunca mais volta como foi substituído por completo por ganhos em produtividade graças a máquinas e tecnologias novas? Simples. Apela-se à vanglória, ignorando os fatos e a complicação da vida real, porque é o que quer ouvir. A decadência reside na reação às promessas vazias, à fumaça que comprou.

Mas, afinal, porque decadência, então? Chamo assim pela decaída do tal conhecido serviço público, que é o princípio de qualquer posição política. O discurso que tem surgido, tanto na personagem do Trump como no populismo crescente na Europa, é, no fundo, um apelo a uma imagem singela do funcionamento governamental. Governar não é uma tarefa simples. Apelar a uma fantasia de um governo sim que é simples. Governança não é capaz de satisfazer todo um povo de uma vez. Já o populismo tem como alvo dizer as palavras que satisfazem a ampla maioria de um tal povo. É decadente porque defrauda os princípios de política e de governança reais.

Muito se fala de “nós” no discurso populista, nos apelos à vanglória da pátria ou da nação, na nostalgia por tempos jamais existentes. O “nós” é mais conveniente quando a atração à divisão do povo é mais forte. Nós somos pessoas do bem, contra aqueles que não têm moral. Nós somos trabalhadores honestos, contra aqueles que já têm tudo e não sabem o que é um dia próprio de trabalho. Nós temos bom senso, compreendemos o mundo ao nosso redor, contra aqueles que passam o dia todo em laboratórios a fazer pesquisas. Nós somos cultos, contra aqueles brutos do outro lado. Há todo um universo de exemplos genéricos deste “nós” que simultaneamente representa toda a gente e ninguém. Este “nós” é simplório por defeito. O nós real é complexo, engloba até as partes da sociedade que menos estimamos, tem defeitos e precisa sempre de correções no seu sistema de ser.

Inauguramos a decadência.

Inauguramos Nós.

Nós US

Ainda sobre aquele muro…

Sacha
12 de setembro de 2016

Com todos os despropósitos que vimos este humilde 2016, chegamos a setembro com mais outra para o monte de lixo acumulado, na forma de uma visita ao México de um senhor candidato à presidência dos Estados Unidos da América, Donald Trump. Já estamos quase acostumados à discrepância entre a seriedade e formalidade do cargo e o irascível circus peanut* antropomorfizado que é o Trump. Desta vez foi ao México fazer diálogo com o presidente desse país, Enrique Peña Nieto, depois de largos meses passados a chamar imigrantes mexicanos de tudo menos estimáveis e valorosos para os Estados Unidos. O objetivo? Fortalecer relações e promover a unidade entre os países, ao estilo de uma visita oficial de estado. Meras horas depois, numa conferência de imprensa habitual do candidato, voltou a dizer as mesmas asneiras de sempre sobre os imigrantes naturais do país visitado. Parece ironia, mas não.

Há especulação (e parece-me a explicação mais provável, a mais) de que esta viagem foi uma tentativa por parte da equipe Trump moderá-lo por influência imediata, ou seja, somente, através de discurso direto com quem tem a chave de ouro do fluxo migratório norte-americano, consegue convencê-lo alterar o discurso radical. Visto o improviso com que o Trump tem proclamado sobre basicamente todos os temas políticos do dia além da polémica migração de muçulmanos e mexicanos, a estratégia até parece boa: o político pretendido formula uma posição na hora que, sem querer pedir desculpas ou parecer fraco no seu posicionamento, fica desdobrado depois. O problema é justamente que este é o issue mais pressionado pelo próprio Trump e por mais influenciável que seja, forma base do seu pensamento político. O fracasso é evidente. O circo mediático e correspondente falta de política a sério continua igual.

*lit. “amendoim de circo”, confeito parecido com o marshmallow criado nos Estados Unidos, amado por crianças e detestado pelos próprios pais e outros adultos com bom senso desde meados do século 20, com textura e gosto artificiais, geralmente de cor-de-laranja pálida.