Catraqueanas

A vida imita a vida

Gustavo Mittelmann
26 de março de 2018

Tal qual o jornalismo, mas em proporções um pouco diferentes, a produção de vídeo nos coloca em contato com realidades e culturas distintas. A gente aprende quase sempre. E, algumas vezes, olhando de fora, percebe coisas que chocam pela incapacidade das pessoas juntarem A e B. Por que estou falando isso? Bom, a introdução é um pouco genérica, mas é importante para falar de uma situação muito específica. Há uns meses, produzimos um trabalho na área de saúde de abrangência nacional, o que nos levou a algumas viagens. Nessa ocasião, vivi os dois extremos.

Em Santarém (PA), me encantei e pude perceber a beleza e simplicidade de um povo que vive, depende e valoriza o rio

Por outro lado, estive em Goiânia. Por essas questões de horários de voo, acabei com um dia livre na cidade logo ao chegar. Na recepção do hotel, ao perguntar de programações para se fazer na cidade, me surpreendi com a existência de um complexo arquitetônico e cultural ímpar: o Centro Cultural Oscar Niemeyer. É pra lá que vou, claro! Papo de Uber, pra saber mais a respeito, o motorista não tinha certeza de qual era a entrada do complexo e tudo o que sabia é que o pessoal se juntava no estacionamento para andar de skate.

O que ele não sabia, e nem a recepcionista do hotel, e que só descobrimos ao chegar lá é que o complexo estava fechado e permaneceria assim por meses

Frustrado, pego outro Uber para voltar. Vamos em busca de outra programação, mas tudo o que consigo dele e de outros funcionários do hotel é saber que há dois shoppings na cidade com “boas” atrações (além do ar-condicionado no calor absurdo): um deles oferece pista de kart para correr, e o outro, batalha com armas laser. O orgulho das pessoas e o nível de informação a respeito, em comparação ao caso do Centro Cultural, me impressiona. Volto pro hotel, almoço e vou dormir.

No dia seguinte, partimos, eu e o Baiano – Diretor de Fotografia do trabalho – para gravar na UTI do SUS no hospital da cidade. Lá, internado em coma, um jovem de 19 anos vítima de um tiro na cabeça. Estava andando de moto quando foi fechado por um carro. Encostou ao lado no semáforo e bateu na lataria para chamar a atenção.

Arrancou ao abrir o sinal e foi baleado por trás, pelo motorista do carro

Eu dormi na minha tarde livre, por falta de programas culturais para fazer na cidade. As crianças, jovens e adolescentes de lá, por outro lado, passaram a tarde apostando corridas motorizadas e atirando uns nos outros por diversão. A vida imita a vida, mas as pessoas parecem não acordar para essa obviedade.

Foto: Santarém, Pará /  Gustavo Mittelmann

Catraqueanas

Origem, Identidade e os dois lados do muro

Gustavo Mittelmann
4 de abril de 2017

Esse espaço deveria falar de inovação, tecnologias, audiovisual e internet. E eu tinha um texto pronto para postar ontem relacionando os grandes telões verticais ao lado do palco no Lollapalooza e a coluna que escrevi no dia 13 de fevereiro falando dessa tendência. Mas ontem o metrô explodiu na Rússia, e achei que já estava na hora de falar sobre um assunto que vem martelando na minha cabeça há algum tempo. Hoje, o ataque químico na Síria me fez ter certeza de que preciso falar de algo mais relevante; que não interessa se as telas estão de pé, se os corpos estão deitados no chão.

“Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido”

Há alguns meses, participei de um encontro de 20 anos da formatura da minha turma do Colégio Israelita Brasileiro de Porto Alegre. Saí de lá tomado por frustrações e questionamentos. Lembrei do meu avô, que, há quase um século, saiu de uma de nossas sinagogas dizendo que jamais colocaria os pés lá de novo, porque aquilo se tratava de negócios e não de religião. Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido. E não só por observar essa aspiração quase maçônica de funcionamento.

Cegueira unilateral

Antes que você se pergunte qual a relação da minha crise de identidade com os atentados, eu explico: está no ódio, na intolerância, na falta de senso de justiça e na cegueira unilateral. É absolutamente inadmissível que a segunda geração depois dos guetos e do holocausto se posicione de forma confortável do lado fora do muro. É revoltante ver um médico judeu pedir uma estátua ao invés de condenação para outro médico, soldado do exército israelense, que atirou contra a cabeça de um palestino ferido e rendido.

“O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras”

É desencorajador ver estes, que são descendentes como eu, louvarem o muro de Gaza, o muro de Trump ou qualquer outra forma concreta ou abstrata de segregação. Ao contrário do que ouvi das mesmas pessoas da minha turma, não é dever moral de todo judeu defender o Estado de Israel. O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras. É enxergar a questão territorial como tal, e não como uma disputa religiosa, porque não é.

Não nos regozijemos, vaidosos, com os milhões de russos, milhares de etíopes e judeus de outras nacionalidades acolhidos por Israel. Um povo tantas vezes expatriado tem que ter a humanidade de olhar para os outros e não apenas para si; perceber que também está negando pátria a seres humanos.

Não sejamos arrogantes de achar que o fato de ter os Estados Unidos como padrinho e financiador desde o surgimento, faz com que Israel seja sempre e indubitavelmente o lado certo. Este é o lado que interessa a eles até o momento. Como assim já foram Saddam Hussein e até mesmo o Estado Islâmico. Questionemos. Sempre.

“A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido”

Eu tenho muito orgulho de onde venho mas, para mim, e certamente pro meu avô, judaísmo não é um pacote ideológico, político ou territorial. De fato, não considero nem mesmo o aspecto religioso do judaísmo o principal. O que deveria nos unir são os mais de cinco mil anos de uma cultura de superação, aceitação, integração e diálogo. A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido. A história está feita, mas o futuro é nossa responsabilidade. Por isso, repito: eu tenho muito orgulho de onde venho; mas não gosto do caminho que estão seguindo. Afinal, não existe lado certo em um muro.