A pouca-vergonha dos postais que eu trouxe da Europa
Geórgia Santos
18 de setembro de 2017
Esse episódio do fechamento da exposição Queermuseu (sim, ainda vou falar disso), me fez pensar em um hábito de viagem que tenho. Eu não coleciono postais, mas sempre que visito um museu e deparo com uma obra da qual gosto muito, faço questão de comprar um postal desse quadro ou miniatura de uma determinada escultura. Diferente de outros souvenirs que faço questão de expor em um totem na sala do meu apartamento, os postais ficam guardados.
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Eles representam um momento íntimo, em que uma obra de arte me tocou profundamente
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Os motivos variam. Em Amsterdam, foras as cores de Van Gogh que me impressionaram – com o perdão do trocadilho impressionista. Em Florença, fiquei hipnotizada com o realismo de David, de Michelangelo, governando o espaço interno da Galleria dell´Accademia. Também me tocou a beleza crua da Vênus de Botticelli, exposta na galeria Uffizi. Na minha diminuta coleção de postais também está um fragmento da Capela Sistina que me atraiu pelas cores já que, confesso, não fiquei tão impressionada com o conjunto. Me julguem, acho que tem a ver com o fato de ficar olhando para cima.
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E nessa jornada, há dois postais particularmente interessantes. Que, certamente, devem considerados DEGENERADOS por quem foi favorável ao fechamento da exposição
Isso se há lógica nesse ato tão tosco
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O primeiro eu encontrei em Paris, em janeiro de 2007. Fazia minha primeira viagem a Europa e o fazia sozinha. Fui ao Louvre, é claro, que impressiona só pela existência, mas foi no Musée D´Orsay que encontrei algo que fez com que eu ficasse muito tempo olhando para o mesmo quadro. A obra em questão era A Origem do Mundo, do pintor realista Gustave Courbet, pintada em 1866. O que me chamou a atenção não foi o traço, somente, mas sua combinação com o nome. O desenho e o nome criavam uma relação de cumplicidade em que o nu feminino em sua forma mais crua era a origem de tudo. Nada mais puro.
Curioso é que, segundo a Wikipédia, é o segundo postal mais vendido no museu. Atrás somente doLe Moulin de la Galette, de Renoir – do qual comprei um quebra-cabeça, inclusive.
O segundo a que me refiro encontrei em Madri, na Espanha, em 2011. Quando visitava o Museu do Prado e já estava relativamente entediada, dei de cara com O Jardim das Delícias Terrenas, um tríptico de Hieronymus Bosch. Na tela, ele também descreve a criação do Mundo, mas com uma perspectiva bastante diferente. Apresenta o paraíso terrestre e o Inferno nas laterais e, ao centro, celebra os prazeres da carne. O que vemos é uma orgia quase lúdica com cores vibrantes em que assistimos aos participantes desinibidos e sem culpa. São símbolos e atividades sexuais retratados sem julgamento de valor. Uma representação. Entre o bem e o mal, há o pecado. Esse quadro foi pintado em 1504.
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Quase tenho vontade de rir quando penso no retrocesso a que estamos testemunhando, de tão esdrúxulo
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A representação das artes plásticas chocam as mentes fechadas e hipócritas. “Nudez não é arte”, dizia um. “Pouca vergonha”, escrevia o outro. Me disseram inclusive que Michelangelo e Caravaggio não precisavam provocar ninguém. “Se tu é pervertida, o problema é teu, apologia à zoofilia não é arte”, disse alguém em algum momento daquele triste final de semana. Não precisamos todos gostar ou apreciar, isso não torna menos arte. Conseguimos perder, enfim, a capacidade de abstração.
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Assim estamos, perdidos em algum tempo da história
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A propósito, O Jardim das Delícias Terrenas também é um dos mais populares do museu. Também comprei um quebra-cabeça.
O dia em que a mediocridade calou a arte – e alguns esclarecimentos
Geórgia Santos
11 de setembro de 2017
É triste quando a mediocridade e ignorância calam a arte. Não, não falo de um episódio ocorrido durante a Idade das Trevas, embora Porto Alegre tenha perdido a luz nesse dia. Também não é um ensaio sobre o repúdio da Igreja ao corpo nu em um período em que o Renascimento era novidade. Tampouco me refiro à Hitler e a queima de obras que considerava “arte degenerada”, embora essa expressão tenha vindo à baila. Essa referência também não vem do tempo da Ditadura Militar, em que a arte era sistematicamente censurada.
É de agora. Sobre agora
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A capital da nossa pequena província não suportou a ousadia da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na ArteBrasileira. Bem, não sejamos injustos com Porto Alegre. Quem não aguentou foram os jovens cidadãos de bem do MBL – Movimento Brasil Livre (?), o mais esquizofrênico dos movimentos conservadores da contemporaneidade. Segundo eles, a mostra com 250 obras assinadas por 85 artistas, entre eles Portinari e Lygia Clark, era devassa.
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O grupelho berrou por aí que a exposição fazia apologia à zoofilia, à pedofilia e era uma blasfêmia contra os cristãos. Pobres cristãos. E colou.
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Cidadãos de bem, pais e mães de família, ficaram horrorizados com a possibilidade de seus filhos estarem expostos à tamanha devassidão. Grupos de pessoas constrangiam, aos berros, e com câmera na mão, a qualquer pessoa que quisesse ver a exposição. Chamavam de “pedófilos”, “tarados”, “degenerados” – olha aqui a palavrinha de que falei no começo do texto. A representante do MBL no Rio Grande do Sul, Paula Cassol, disse à Zero Hora que não entende que aquilo seja arte. Imagino que ela tenha um diploma de Artes Plásticas ou História da Arte.
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Tenho dúvida, no entanto, se posso creditar o episódio à ignorância ou se o grupo simplesmente viu uma oportunidade política no episódio. Oportunidade de angariar os últimos conservadores da província
Tenho a leve impressão que é a segunda opção
E colou
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A exposição foi encerrada pelo Santander Cultural, onde estava em exibição. E pra continuar a verborragia de equívocos históricos, a organização pediu desculpas num ato deprimente de covardia. Ah, quase esqueço, o Santader recebeu uma contrapartida de renúncia fiscal para expor os trabalho de R$ 1 milhão de reais. Segundo o MBL, foi principalmente ISSO que incomodou aos cidadãos de bem. Claro.
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Ficou curioso pra ver quais são essas obras tão controversas?
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Resolvemos mostrar quais são as obras e explicar o contexto na qual estão inseridas e o que representam. Pensamos muito sobre se deveríamos esclarecer a realidade dos quadros que tanto incomodaram. Porque afinal, se estamos aqui explicando obras de arte perfeitamente legítimas, talvez eles tenham vencido. Por outro lado, algumas pessoas foram arrastadas a uma rede de mentiras e sequer sabem do que se trata. Se uma pessoa perceber a perversidade das acusações, já é um grande e importante passo.
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As obras que geraram a polêmica sobre pedofilia
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BIA LEITE: Adriano bafônica e Luiz França She-há (2013)
BIA LEITE, Travesti da lambada e deusa das águas (2013)
O mais interessante é tentar descobrir aonde é que enxergaram pedofilia em uma obra que apenas aborda a questão de crianças homossexuais. O catálogo da exposição é bastante claro, inclusive. “Bia talvez seja uma das poucas artistas brasileiras a enfrentar com desenvoltura e coragem esse tema tabu, que é a homossexualidade na infância e o portentoso sofrimento que crianças atravessam na fase escolar e no início da adolescência. A artista produziu essas pinturas a partir da combinação de fotografias das crianças retiradas do Tumblr Criança Viada, onde são postadas fotografias as da infância dos próprios usuários LGBT com comentários.” Pedofilia é o que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por uma criança. É doente associar esse trabalho a algo tão grave.
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A obra que gerou a polêmica sobre zoofilia
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ADRIANA VAREJÃO: Cena de interior II, 1994
O quadro é uma compilação sobre práticas sexuais existentes, mas que existem na sombra. A ideia da artista não é julgar as práticas, e sim lançar uma reflexão sobre a exploração. O que chocou foi a cena em que um homem segura um animal enquanto outro o estupra. Para alguns, é apologia à zoofilia, e não um retrato do que há de mais obscuro na natureza humana. Sim, é repulsivo, mas não é menos verdadeiro por ser repulsivo. Se alguém acha que isso não é parte da natureza humana, sugiro a leitura do livro “O barranco na formação sexual do gaúcho“. Sim, é isso mesmo. E não, não tem nada a ver com orientação sexual.
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A obra que gerou a polêmica sobre blasfêmia
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FERNANDO BARIL: Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, 1996
A arte ocidental contemporânea tem uma longa história de usar ícones religiosos como ponto de partida para uma série de críticas. Nesse caso, a crítica ao consumismo e à hipocrisia da cultura ocidental e da própria igreja saltam da tela, bastante diferente da acusação de vilipêndio. Além dessa obra, houve acusações de profanar hóstias com palavras profanas. Eu não sou uma católica praticamente, mas até onde eu sei, se não há consagração, é só uma bolacha, não?
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O mais interessante é que há obras equivalentes ou ainda mais gráficas espalhadas por museus de todo o mundo. Mais do que isso, exposições com esse viés já foram realizadas em outros três países (EUA; Polônia e Inglaterra) e só aqui foi problema, só aqui foi CENSURADA.
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Sim, porque o que aconteceu foi censura
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A arte sempre provoca, ela nasceu para isso, não para agradar. Nasceu para provocar reflexões profundas sobre a natureza humana, sem ser confundida com propaganda, como os engessados xucros do MBL acreditam ser – ou querem que você acredite. Ou alguém vai ter coragem de dizer que a Guernica, de Picasso, é uma apologia a bombardeios? Alguém vai dizer que o David, de Michelangelo, é pornografia em mármore? Ou alguém vai dizer que Jesus pregado na Cruz é apologia à tortura?
A apreciação da arte gira em torno do gosto, é verdade. Mas alguém não gostar, independente do motivo, não pode retirar a legitimidade de uma obra. Alguém se sentir ofendido com a natureza humana é normal, além de triste, mas não é motivo para censura. Não é motivo para calar. Por fim, a arte não é necessariamente explícita, mesmo que pareça. E no caso dessa mostra, a ideia era questionar a heteronormatividade. Eu não sou crítica de arte, obviamente. Inclusive entendo muito pouco. mas desde que esse episódio todo aconteceu, há bons textos esclarecendo alguns dos principais equívocos. Um dos melhores foi escrito pela curadora e crítica de arte Daniela Name, para o jornal O Globo.
“Também não há homofobia em Queermuseu, embora se pense sobre o tema como meio de explicitar como esta é pervasiva na cultura. Trata-se de um campo de batalha em exasperação, já que as obras exibidas coexistem em atrito contínuo. Afinal, elas são o reflexo do mundo lá fora, e seus pressupostos conceituais, estéticos e ideológicos encontram equivalência na vida contemporânea. Arte e vida mostram-se próximas nesta exposição.”
Se ainda assim, meu caro leitor, acreditas que a mostra deveria ter sido fechada e a arte calada, só posso lamentar. Quanto a mim, não, não vi a exposição. Não deu tempo.