Igor Natusch

A intolerância crescente dá fôlego ao sonho eleitoral da extrema-direita

Igor Natusch
20 de setembro de 2017

FATO 1

Depois de ter sua encenação proibida em Jundiaí (SP) por meio de uma insólita antecipação de tutela para não macular o “sentimento do cidadão comum” (seja lá o que for isso, juridicamente falando), houve quem quisesse que a peça “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, que coloca uma mulher trans no papel principal, fosse proibida também em Porto Alegre. Felizmente, o juiz Jose Antonio Coitinho não embarcou nessa canoa furadíssima e, em uma decisão no geral bastante sábia, rechaçou completamente, no último dia 19, um pedido de suspensão da peça – que recorria, é claro, ao batidíssimo e nada jurídico argumento de “afronta aos costumes religiosos”.

A peça, desde já um sucesso, teve que ser transferida da acanhada Pinacoteca Rubem Berta para o Teatro Bruno Kiefer, bem mais amplo e capaz de acomodar a todos que desejam assisti-la. Os ingressos estão esgotados para as duas sessões. Pena, pois realmente gostaria de assisti-la.

FATO 2

O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, achou justo atender pedido de um grupo de psicólogos (alguns deles claramente identificados com grupo religiosos e políticos antipáticos à população LGBT) e decidiu que o Conselho Federal de Psicologia não pode “proibir” profissionais de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, caso pacientes “voluntariamente venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade”. Um bonito jogo de palavras que, por ignorância ou má intenção, esconde o óbvio: uma resolução de mais de 18 anos, que impede psicólogos de tratar homossexualidade como doença, foi invalidada na base do canetaço. Ainda cabe recurso à liminar, e nos resta esperar que instâncias superiores revoguem essa sandice.

FATO 3

Pesquisa CNT-MDA mostra Jair Bolsonaro com 10,9% de intenções de voto na pesquisa espontânea para a Presidência da República, situação em que o entrevistador apenas pergunta em quem a pessoa deseja votar. Como sabemos, esse é o voto teoricamente mais consolidado, o menos vulnerável ao noticiário e aos acontecimentos em geral, o menos aberto a qualquer tipo de argumentação. Em fevereiro, ele tinha 6,5% nessa modalidade. O mesmo pré-candidato que declarou que os organizadores da mostra Queermuseu “deveriam ser fuzilados” – logo depois dourou a pílula e disse que era “força de expressão”, mas ainda assim deixou bem claro o seu grau de tolerância com manifestações artísticas de temática LGBT.

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De posse desses dados, aparentemente disparatados, que trilhas nos surgem?

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Acho que todos falam, basicamente, de um encorajamento de posturas francamente intolerantes. Não que jamais tenhamos tido pessoas indo à Justiça para impedir a visibilidade de outras, ou mesmo que não tenham inclusive vencido em alguns casos. Mas agora temos uma onda, um processo onde uma ousadia autoritária encoraja a outra, onde um movimento intolerante não devidamente combatido serve de estímulo a outra intolerância, ainda mais estridente e desavergonhada. Estivéssemos razoavelmente saudáveis, enquanto sociedade, e ninguém cogitaria seriamente que uma exposição inteira fosse fechada aos gritos de que há “pedofilia” em algumas ilustrações, tampouco veríamos turbas comemorando a proibição de uma peça teatral.

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São movimentos que ganham força na medida em que a intolerância se espalha, quando cada vez mais parece que a solução não deve ser dialogada, mas sim imposta, se possível com a eliminação física do problema. Quando nada parece seguro, as respostas fáceis e verticais parecem cada vez mais tentadoras – e quando elas se mostram possíveis, fica muito difícil controlar o vagalhão

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Por outro lado, todos sabemos que o pré-candidato mencionado acima é uma espécie de meme ambulante, uma figura que conjuga de forma cada vez mais visível tanto a imagem de outsider, supostamente sem “rabo preso” como os políticos mais tradicionais, quanto de pessoa que não tem medo de dizer o que pensa, que não dá folga a vagabundos, que vai botar ordem na casa da forma mais simples e radical possível – todos argumentos intangíveis e sem grande base racional, mas que caem como uma luva em um momento tão cheio de incertezas, medos e cisões.

Segundo a mesma pesquisa da CNT-MDA, Bolsonaro perde para Lula em um eventual segundo turno, mas venceria tanto Dória quanto Alckmin – um sinal claro de que a polarização política, ainda que siga muito importante para impulsionar o virtual candidato da extrema direita, não é tão decisiva assim para o seu voo solo.

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Há mais coisas envolvidas em Bolsonaro do que pode parecer – e elas são do conjunto da sociedade e de sua fragmentação, bem mais do que originadas no medo irracional do barbudo comunista que pode voltar à presidência

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Esse é o cenário que torna possível que, estatisticamente, mais de um décimo dos brasileiros esteja disposto a votar em Bolsonaro, independente de qualquer coisa. E que dá à sua candidatura uma relevância crescente e que, racionalmente, não pode ser ignorada. Daí a dizer que a vitória da extrema-direita em 2018 é um fato consumado ou mesmo a hipótese mais provável vai uma longa distância, cujas circunstâncias pretendo desdobrar em um post futuro. Por enquanto, fica o alerta: são as rachaduras em nossa convicção democrática que estão alimentando a intolerância, e é essa intolerância triunfante que dá fôlego à candidatura bolsonarista. É um cenário de sonhos reacionários possíveis, tanto no Judiciário quanto no dia a dia, e certamente também na frente da urna. Mudar o cenário só é possível a partir dessa compreensão.

Foto: Divulgação