Samir Oliveira

Não seremos a província do atraso

Samir Oliveira
14 de setembro de 2017
Foto: Samir Oliveira

O que a interdição de uma exposição após críticas distorcidas e ideologicamente dirigidas na internet revela sobre nosso estado? A exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi encerrada pelo Santander Cultural por conta de ação orientada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) nas redes sociais.

A exposição colhe referências de diversidade e representações da comunidade LGBT na arte brasileira. O exército de ignorantes motivados do MBL espalhou a mentira de que se trata de apologia à pedofilia e à zoofilia.

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Associar homossexuais à bestialidade e pedofilia é uma antiga tática de difamação promovida por grupos de ódio

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Em entrevista à Rádio Guaíba, o próprio promotor da Infância e Juventude de Porto Alegre, Júlio Almeida, disse que não há nenhuma referência à pedofilia na exposição Queermuseu. “Pedofilia, por definição legal, é a utilização de criança e adolescente em cena de sexo explícito, reprodução de sexo explícito ou simulação de sexo explícito, ou ainda a exposição de genitália de criança e adolescente. Isso não existe na exposição. Pedofilia não acontece”, afirmou, após visitar o local.

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Durante 26 dias a sociedade gaúcha não viu nenhum problema deste tipo com a exposição Queermuseu. Mais de 20 mil pessoas circularam pelo local

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Um dos quadros alvo de repúdio é o “Cena de interior II”. Trata-se de um trabalho de Adriana Varejão que denuncia a violência e as atrocidades do período colonial brasileiro. A obra faz parte do conjunto “História às margens” e já esteve exposta durante meses no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2012 – sem gerar absolutamente nenhum alarde. Adriana Varejão é uma artista mundialmente reconhecida. Em 2011, uma de suas telas, “Parede com incisões à Fontana”, foi arrematada por R$ 3 milhões num leilão em Londres.

Mas bastou chegar no Rio Grande do Sul e cair nas mãos dos brutamontes do MBL para que seu trabalho passasse a ser divulgado como “apologia à zoofilia”. Bastou a ação midiática orquestrada do MBL para que seus seguidores saíssem do breu intelectual em que se escondem, erguendo tochas e foices exigindo o linchamento de artistas.

Uma prática semelhante à adotada por regimes de exceção. Em 2015, uma exposição na Bélgica exibiu ao público obras que o nazismo baniu da Alemanha por considerar “arte degenerada”. Nomes como Picasso e Marc Chagall estavam na lista.

A cena de membros do MBL intimidando frequentadores da exposição remete à imagens da época da ditadura, quando o Comando de Caça aos Comunistas atacou a peça Roda Viva. Os entusiastas da interdição artística em nome da “moral cristã” causam inveja ao CCC.

Aliás, a própria ideia de que uma expressão artística com a qual não se concorde deva ser banida agrada muito aos criminosos do autoproclamado Estado Islâmico, que destroem obras históricas em nome de uma cruzada moral.

O que fará em seguida o MBL? Irá propor a interdição do Museu do Prado, em Madri, por exibir O Jardim das Delícias Terrenas, de H. Bosch? Boicotará todas as representações do mito grego de Leda o Cisne, reproduzidas por pintores como Leonardo Da Vinci e Paolo Veronese – que mostram o acasalamento da rainha de Esparta com Zeus, sob a forma de um animal?

O MBL encarna o espírito atrasado dos liberais na economia e medievais nos costumes. É absolutamente lamentável que o Santander Cultural tenha cedido a este tipo de pressão. Nenhum centro cultural sério em qualquer lugar do mundo teria interditado uma exposição por críticas de segmentos reacionários. Mas, como bem lembrou o vereador Roberto Robaina, não se poderia esperar muito, afinal os bancos também cederam ao nazismo.

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REAÇÃO

O escândalo que significou o encerramento da exposição virou notícia nacional e internacional. A reação da classe artística e da população LGBT foi rápida e aguerrida. Um ato organizado às pressas conseguiu reunir quase 2 mil pessoas em frente ao Santander Cultural na tarde de terça-feira (12/09). Toda a vanguarda do movimento LGBT gaúcho estava presente. As centrais sindicais também divulgaram uma nota unitária em apoio à exposição.

O ato resistiu bravamente a todas as tentativas de provocação do MBL e de seus satélites. E foram muitas. O YouTuber Arthur do Val, provocador maior da direita, foi trazido de São Paulo especialmente para tumultuar a manifestação. Com a firmeza que o combate ao fascismo exige, mas sem baderna generalizada, os provocadores foram expulsos do ato. Infelizmente, ao final do protesto, a ação articulada dos capangas do MBL conseguiu tumultuar um ato que já estava dispersando.

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Com a covardia que lhes é característica, foram provocar os manifestantes para em seguida se refugiar atrás

de um cordão policial

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O batalhão de choque da Brigada Militar se enfileirou para proteger os milicianos, jogando bombas de gás contra toda a população e transformando a Praça da Alfândega num cenário de guerra. Duas pessoas foram detidas: um morador de rua, cuja identidade não foi revelada, e o jornalista Douglas Freitas. Além disso, uma fotógrafa do jornal Zero Hora foi atingida diretamente com spray de pimenta no rosto e em sua câmera ao registrar as prisões. Uma cena que remete a junho de 2013, quando nem mesmo a imprensa foi poupada da repressão.

Felizmente o ato não se resume à provocação do MBL. Foi um forte recado de luta e resistência contra os comensais da Idade Média e pelo direito a uma cultura livre. Livre de qualquer dogma religioso.

Centros culturais de São Paulo e Belo Horizonte já manifestaram interesse em receber a exposição interditada. Não nos submeteremos aos censores da província do atraso. O movimento LGBT e a classe artística estão mobilizados na defesa da liberdade e da cultura. Viva o Queermuseu!

Foto: Cartaz colocado na fachada do Santander Cultural em Porto Alegre/Samir Oliveira

Samir Oliveira

O Gapa agoniza em praça pública – literalmente

Samir Oliveira
24 de agosto de 2017
Foto: Clarinha Glock/Gapa

Quando o Gapa nasceu, em 1989, eu tinha apenas um ano de idade. Não acompanhei sua história. Assim como minha geração não vivenciou os anos iniciais do surgimento da AIDS. O terror social que a doença causou e a munição que o vírus deu a discursos homofóbicos é algo que vejo apenas em filmes e livros. Não é algo que senti ou vivi.

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Durante 28 anos o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS) travou uma batalha sem tréguas contra o vírus. E como se luta contra uma doença invencível? Com acolhimento, informação e muitos, muitos parceiros

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O atendimento psicossocial e jurídico totalmente gratuito a pessoas com HIV só foi possível por conta de parcerias com órgãos públicos e uma rede de financiamentos nacionais e internacionais. No início dos anos 2000, o Gapa tinha 120 voluntários, uma sede de dois andares na Cidade Baixa, veículo para atividades externas e realizava cerca de 2 mil atendimentos por mês.

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Hoje o Gapa agoniza em praça pública. Literalmente, já que no dia 11 de agosto foi enxotado de sua sede. O local foi interditado pela Justiça. Foi apenas a pedra de cal que estava faltando para coroar uma agonia que já durava muitos anos

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Na avaliação dos dirigentes do Gapa, a sociedade, de uma maneira geral, deixou de se preocupar com o problema da AIDS. Os financiadores passaram a destinar recursos a outros continentes, como a África, e os governos já não se mostravam parceiros. Assim o Gapa murchou de 120 para cinco voluntários. Teve que se desafazer de seu veículo e não conseguiu mais conservar as mínimas condições de uso de sua sede. Nem o banheiro mais estava funcionando.

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O aluguel da casa era pago pela Secretaria Estadual de Saúde desde 1992. Mas há nove anos o governo simplesmente resolveu deixar de pagar os alugueis e abandonar o Gapa à própria sorte

Era o segundo ano do governo de Yeda Crusius (PSDB)

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Desde então o Gapa vinha tentando negociar com órgãos públicos uma solução para que pudesse continuar desenvolvendo seu trabalho. Em 2009 o Estado chegou a cogitar a cedência de um imóvel na Avenida João Pessoa, mas isso nunca se concretizou. Em 2011, a prefeitura ofereceu um prédio na Rua Jerônimo Coelho. O local foi reformado para receber o Gapa e outras organizações, mas acabou sendo interditado pelo Corpo de Bombeiros e hoje está sendo leiloado.

A agonia do Gapa, como podemos ver, não é de hoje. O desrespeito é tão grande que o Estado sequer notificou o grupo a respeito do despejo da sede. Os voluntários encontraram o local lacrado pela Justiça, com todo o acervo lá dentro. São milhares de documentos com informações sigilosas das pessoas que são atendidas pela ONG, bem como materiais informativos, campanhas e relatórios. Praticamente toda a memória da epidemia de AIDS no Rio Grande do Sul foi interditada junto com o Gapa.

Agora este acervo ficará sob os cuidados (?) da Secretaria Estadual da Saúde. Enquanto isso, o Gapa segue em busca de uma sede. O governo municipal se comprometeu em pagar um aluguel, mas os dirigentes da ONG estão receosos. Aprenderam a duras penas que não é possível ficar dependente dos humores políticos dos governos.

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A agonia do Gapa é o mais cruel retrato da indiferença com que o Rio Grande do Sul enfrenta o problema da AIDS

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Os motivos ainda precisam ser melhor explicados – e arrisco dizer que há inclusive elementos psicológicos e culturais para tanto –, mas o fato é que o Estado apresenta os mais primitivos índices de contaminação da doença do Brasil.

O RS possui uma média de 38,3 casos de detecção de HIV para cada 100 mil habitantes. É quase o dobro da média nacional, de 19,7 casos. Ficamos atrás apenas do Amazonas, e por muito pouco, já que o estado do Norte possui 39,2 casos por 100 mil habitantes. Porto Alegre é a capital com a maior taxa de detecção do país: 94,2 casos por 100 mil habitantes. Um índice cinco vezes superior ao nacional.

Um Estado cuja iniciativa privada, poderes públicos e entidades sociais deixam uma organização como o Gapa agonizar em praça pública ficará preso ao horror destes índices por um bom tempo. Talvez isso nem cause espanto. Por isso precisamos olhar para trás. Especialmente nós, LGBTs, por tanto tempo demonizados em todos os cantos por conta do HIV. Se estamos aqui hoje, de cabeça erguida, é por conta do trabalho incansável de organizações como o Gapa.

Foto: Clarinha Glock/Gapa

Samir Oliveira

Foi com o Vini, mas poderia ter sido com qualquer um de nós

Samir Oliveira
10 de agosto de 2017

O mês de agosto tradicionalmente concentra muitas formaturas de faculdades. Inclusive foi em agosto que eu também me formei, há exatos sete anos. Uma das melhores lembranças da minha vida. Infelizmente, para o psicólogo Vinícius Beccon e seu namorado Raul Weiss, esse tipo de cerimônia não será mais sinônimo de alegria e comemoração.

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Vini, como é conhecido (e como eu tomo a liberdade de chamá-lo), foi brutalmente agredido durante uma festa de formatura na madrugada do dia 5 de agosto em Porto Alegre. Seu crime? Ter recebido um beijo do namorado – amigo da formanda de uma turma de Direito da PUCRS

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A notícia sobre a agressão ao Vini me destroçou. Na noite anterior eu havia ido a uma formatura. E amanhã comparecerei em outra. Imaginar que um gesto de carinho nestes espaços possa causar uma reação violenta de algum parente dos meus amigos é apavorante.

Vini conta que foi agredido por um grupo de homens, dentre os quais estava o próprio pai da formanda. Além disso confiscaram seu celular e devolveram apenas no dia seguinte. Numa entrevista ao jornal Zero Hora, ele disse:

– Ouvi a palavra vagabundo, aí me pegaram pelas costas, me arrastaram pelo salão por uns dois metros, na frente de todo mundo, e me deram chutes e tapas. Enquanto davam tapas, tentei pegar meu celular, mas o pai da formanda arrancou-o de mim. Davam aqueles tapas de mão aberta e diziam: “Viado! Vagabundo!”. E o pai dela dizia: “Aqui não é lugar para vocês, eu te falei”. O Raul tentava chegar perto, me socorrer, senti a mão dele tentando me puxar, mas foi segurado. Disseram: “Cala a boca ou tu vais apanhar também”. Então eu vi que deixaram a mãe da formanda entrar no meio do grupo. Eu disse: “Vou processar vocês”. Vi que ela fez cara de apavorada. Depois eu soube que ela é advogada. Ela falou: “Larga ele”. Foi aí que me soltaram.

A partir daí, um roteiro infame foi traçado pela defesa do pai da formanda. Depois de alguns dias – certamente precisava de tempo para elaborar sua versão – o sujeito se pronunciou publicamente em entrevista à Rádio Gaúcha. Tentou desmentir as palavras de Vini.

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Já que palavras não podem apagar machucados, todos devidamente periciados em exame médico feito por Vini, o pai da formanda veio com uma desculpa inusitada para os ferimentos: “Ele tropeçou e caiu”

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Mas o peixe morre pela boca. A homofobia não é um comportamento racional e os homofóbicos não resistem à oportunidade de destilar ódio gratuitamente. Especialmente quando sabem que terão plateia. Ao final da entrevista, o homofóbico se entregou. Dirigindo-se ao jornalista David Coimbra, deu uma declaração que foi praticamente uma confissão de culpa:

– Queria pedir para o David que faça uma matéria sobre os homens héteros, trabalhadores, pais de família, que esses não têm representatividade nenhuma.

É exatamente este tipo de pensamento que fornece combustível a ações violentas contra a população LGBT. Não é à toa que o Conselho Regional de Psicologia e a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB já se manifestaram em favor de Vini.

O psicólogo está processando o pai da formanda e busca identificar os outros agressores. Espero que seja feita Justiça. Que vivamos em um mundo onde as pessoas saibam que gestos de carinho não podem resultar em agressão.

Vini não tem nenhuma obrigação de doar qualquer recurso que possa vir a receber de uma sentença indenizatória. Mas já avisou publicamente, em seu perfil no Facebook, que fará isso. “SE houver qualquer processo de indenização que tiver resultado em sentença financeira, será TOTALMENTE doado a uma ONG de combate a homofobia ou discriminação de minorias”, garantiu.

O que aconteceu com o Vini Beccon poderia ter acontecido comigo. Ainda pode acontecer. Ou com qualquer pessoa LGBT. Por isso seu relato calou tão fundo em mim. Quando fecho os olhos e tento imaginar os minutos de horror que viveu naquela formatura, me lembro facilmente de um trecho do conto “Terça-feira gorda”, publicado por Caio Fernando Abreu no livro “Morangos mofados”:

A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a água lavasse e levasse o suor e a areia e a purpurina dos nossos corpos. A gente se apertou um conta o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor.

E brilhamos.

Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.

Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.

Samir Oliveira

Os deputados muçulmanos disseram SIM ao casamento igualitário na Alemanha

Samir Oliveira
3 de agosto de 2017
Foto: Deputado Cem

No dia 30 de junho o Parlamento alemão (Bundestag) aprovou o casamento civil igualitário – popularmente conhecido como casamento gay. Foram 393 votos a favor e 226 contra. Os seis deputados muçulmanos do país foram favoráveis ao projeto. Em um tempo como o nosso, em que a islamofobia corre solta nas ruas e nas redes sociais, é preciso destacar este fato.

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Na Alemanha não foram os muçulmanos que se opuseram ao casamento gay, foram os católicos

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A União Democrática Cristã (CDU), partido da chanceler Angela Merkel, votou em peso contra a medida. Foram 225 deputados da CDU contra o projeto e 75 a favor – dentre eles, a única deputada muçulmana de suas fileiras, Cemile Giousouf. A votação só ocorreu porque finalmente o governo de Angela Merkel resolveu autorizar os deputados da CDU a votarem de acordo com sua convicção neste caso. Isso destravou a tramitação do projeto no Bundestag.

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Conservadora, a própria Merkel votou contra a medida. “Para mim, o casamento sob a lei alemã é a união entre um homem e uma mulher”, disse

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Além de Cemile, os demais parlamentares muçulmanos que votaram a favor do casamento civil igualitário pertencem ao Partido Verde alemão (Cem Özdemir, Ekin Deligöz, Omid Nouripour e Özcan Mutlu) e ao Partido Social Democrata (Aydan Özoguz). Estas suas siglas votaram unidas pelos direitos LGBTs, assim como o partido A Esquerda (Die Linke), com seus 63 deputados.

Ainda é muito presente o preconceito contra muçulmanos em particular e árabes em geral. É muito comum que as pessoas associem qualquer muçulmano ou cidadão árabe a terrorismo. Mesmo no Brasil, onde não se tem notícia de atentados ou grupos organizados com esta finalidade.  E onde as diferentes religiões convivem em relativa harmonia.

Eu mesmo, que não sou árabe ou muçulmano, já tive que lidar várias vezes com este tipo de preconceito – já que meu nome é árabe e, além disso, eu estudo língua árabe. “Está aprendendo árabe para virar terrorista?” e “Cuidado com o Samir, agora ele quer falar árabe” foram alguns absurdos que já ouvi. Até no Tinder já passei por isso: “Samir, nome de homem bomba”, disse o sujeito. Na primeira vez que veio falar comigo! É claro que foi bloqueado na hora.

Agora imagine sair na rua com um hijab. Imagine ir rezar em sua mesquita e ter que conviver com pichações difamatórias. Imagine ter que explicar inúmeras vezes ao dia que os fanáticos que detonam bombas e reivindicam o Islã não representam os muçulmanos.

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Imagine ser um LGBT muçulmano e ter que explicar que sua fé não é indissociável de sua orientação sexual ou identidade de gênero

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Outro braço deste preconceito é acreditar que todo cidadão árabe ou muçulmano é naturalmente um conservador. Uma pessoa atrasada e primitiva, arredia a qualquer costume ocidental e à conquista de direitos por mulheres e LGBTs. Dois mitos ridículos, sustentados por uma visão ocidentalocêntrica de mundo, que despreza as conquistas e processos históricos do Oriente, especialmente dos povos árabes – que foram tão vítimas da exploração imperialista quanto a América Latina. Talvez até mais, se considerarmos os poderosos interesses geopolíticos que dominam os países do Oriente Médio, do Golfo e do Magreb.

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É evidente que em muitos países árabes existe severa restrição a direitos de mulheres e LGBTs. Mas não precisamos ir tão longe, o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo e é uma nação de maioria cristã

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É com a natural arrogância ocidental que muitos desejam ensinar aos povos árabes como eles devem conduzir suas lutas. Como se as mulheres e os LGBTs árabes precisassem ser conduzidos pela mão por algum libertador ocidental em direção à vitória. Não. Os povos árabes estão travando suas próprias lutas e não precisam de nossas lições.

Recentemente a ONG LGBT palestina Al-Qaws – palavra que, em árabe, significa arco-íris – lançou uma campanha para dialogar com a sociedade palestina a respeito de mitos sobre gênero e sexualidade. O vídeo exibe um diálogo entre três jovens palestinos, relatando de forma muito pedagógica como combatem o preconceito em suas comunidades.

É inaceitável que nós, sul-americanos e que conhecemos como poucos a realidade do colonialismo, tenhamos uma postura islamofóbica e xenófoba em relação aos povos árabes. Façamos um esforço radical de aproximação e compreensão. Temos muito a aprender com uma cultura tão rica e diversa, com povos que sentiram ao longo da história – e ainda sentem – o peso brutal da exploração colonial.

O mundo inteiro avança quando a luta contra a islamofobia e a xenofobia encontra a causa LGBT. Por mais alianças poderosas e transformadoras como essa!

Foto: Deputado muçulmano Cem Özdemir na Parada do Orgulho LGBT /Reprodução Facebook

Samir Oliveira

“Esses viados matam fascistas”: A resistência curda aponta o caminho

Samir Oliveira
27 de julho de 2017
Foto: Twitter/IRPGF

A imagem de guerrilheiros sustentando uma bandeira LGBT e uma faixa com os dizeres “Estes viados matam fascistas” percorreu o mundo ao longo desta semana. Trata-se de uma coluna formada por LGBTs em combate direto contra o Daesh[1], criada nas fileiras da resistência curda na Síria.

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O Exército de Insurreição e Libertação Queer[2] surgiu no âmbito das Forças Revolucionárias Internacionais de Guerrilha do Povo, que são um batalhão de combatentes do mundo inteiro ligados às Unidades de Proteção do Povo no território curdo dentro da Síria

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São muitos nomes, siglas e jargões. O fundamental é entendermos que existe um contingente considerável de pessoas lutando contra o Daesh e construindo uma alternativa em meio a uma região conflagrada. É a resistência do povo curdo. E agora os LGBTs estão na linha de frente deste combate.

“As imagens de homossexuais sendo jogados de edifícios e apedrejados até a morte pelo Daesh são cenas que não podemos simplesmente assistir e não fazer nada a respeito”, diz o grupo em seu manifesto

Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem um Estado. Representam mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões do Irã, do Iraque, da Síria e da Turquia. É evidente que nenhum destes países aceita ceder nacos de seus territórios nacionais para o povo curdo constituir um Estado independente.

No Iraque existe um nível maior de autonomia, com um governo regional formado dentro das fronteiras iraquianas. Na Turquia, a escalada autoritária do governo Erdogan desmantelou o HDP, o partido de esquerda pró-curdos.

Na Síria, os curdos do Norte do país têm se organizado para travar uma luta incansável de proteção de seus territórios contra o Daesh e também contra as forças do regime de Bashar al-Assad. Representam um enclave importante de resistência contra o avanço da barbárie expressa pelo Daesh. Foram os curdos que obtiveram as mais expressivas vitórias militares contra os terroristas.

Mas existe uma diferença fundamental. Enquanto no Iraque o governo regional curdo adota uma linha política conservadora e aliada às grandes potências globais, na Síria o povo curdo aposta na auto-organização de seus territórios por meio do confederalismo democrático

Trata-se de um sistema de governo de inspiração anticapitalista, traduzido para a realidade curda através das formulações políticas do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão. O PKK existe desde os anos 1970 e é considerado uma organização “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia – país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

A premissa política seguida pelo povo curdo na Síria estabelece a igualdade total entre homens e mulheres. Em 2015 tive a oportunidade de conversar com Melike Yasar, do Movimento de Mulheres Livres do Curdistão. Cansada de explicar qual o papel das mulheres curdas na luta travada no Norte da Síria, ela disparou: “As mulheres não têm papel nenhum na revolução. Elas são as que fazem a revolução. Os homens é que têm um papel nela e precisam aprender que sem a autolibertação feminina eles também não irão se libertar”.

Em 2013, os curdos na Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no Norte do país. São os chamados “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Localizados em meio a um território conflagrado pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas. Enquanto se mobilizam para lutar contra o Daesh e conquistar independência em relação ao governo Sírio, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica.

Os cantões são governados pelo povo através de assembleias populares. Cada região possui uma co-presidência composta por um homem e uma mulher. O caráter anti-capitalista e anti-Estado do processo curdo em Rojava não pode ser ignorado

É por isso que a resistência curda na Síria é tão invisibilizada na mídia, que prefere destacar os combatentes do governo regional curdo no Iraque ou a disputa entre o regime de Bashar al-Assad e o Daesh – acompanhada com uma lupa por grandes potências mundiais, especialmente pelos Estados Unidos e a Rússia.

O destaque mais comum dado à resistência curda em Rojava é através de fotos das combatentes mulheres, que possuem seu próprio exército e estão emparedando os fanáticos do Daesh na região.

Agora o mundo volta mais uma vez seus olhos para a luta do povo curdo na Síria ao contemplar a criação de um exército formado por LGBTs. Homossexuais estão na linha de frente do combate contra os comensais da barbárie. Sinal de que a esquerda inteira se move neste avanço, especialmente se considerarmos que nos anos 1960 e 1970 os LGBTs não eram respeitados dentro das fileiras dos grupos guerrilheiros que lutavam contra as ditaduras na América Latina.

Há inúmeros relatos de ex-combatentes que demonstram a mentalidade machista e homofóbica dominante na época, mesmo nos círculos mais avançados da esquerda revolucionária. Uma tradição que felizmente já foi superada.

Agora, do outro lado do mundo, os LGBTs e as mulheres estão liderando a construção de um outro tipo de organização social nos cantões de Rojava. Contra poderosos interesses geopolíticos, a resistência curda se soma ao rol de experiências históricas que apontam o caminho para a libertação contra todas as formas de opressão.

Manifesto do Exército de Insurreição e Libertação Queer[3]

Nós, as Forças Internacionais de Guerrilha do Povo (IRPGF), formalmente anunciamos a criação do Exército de Insurreição e Libertação Queer (TQILA), um subgrupo da IRPGF formado por camaradas LGBT*QI+ e também por outros companheiros que buscam esmagar o binarismo de gênero e avançar na revolução das mulheres ao mesmo tempo em que ampliamos a revolução sexual e de gênero.

Os integrantes do TQILA assistiram horrorizados aos ataques de forças fascistas e extremistas ao redor do mundo contra a população LGBT, que assassinaram incontáveis membros de nossa comunidade, argumentando que somos doentes e antinaturais. As imagens de homossexuais  sendo jogados de edifícios e apedrejados até a morte pelo Daesh são cenas que não podemos simplesmente assistir e não fazer nada a respeito. Não é apenas o Daesh que espalha o ódio contra a população LGBT baseado em motivos religiosos. Cristãos conservadores no Ocidente também atacam a comunidade LGBT numa tentativa de silenciar e apagar sua existência. Nós queremos enfatizar que a homofobia e a transfobia não são características do Islã ou de qualquer religião. Na verdade, conhecemos muitos muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, budistas etc. que aceitam e acolhem as pessoas em suas singularidades, inclusive LGBTs. Somos solidários a essas pessoas contra o fascismo, a tirania e a opressão. Além disso, criticamos e lutamos contra o pensamento conservador e feudal a respeito da população LGBT na esquerda revolucionária aqui e no mundo inteiro.

Nosso compromisso de luta contra o autoritarismo, o patriarcado, a heteronormatividade opressiva e a LGBTfobia é reforçado pelos avanços revolucionários conquistados pela luta das mulheres curdas. O fato de as aulas de Jineologia[4] debaterem construções de gênero e sexualidade dá visibilidade aos avanços da revolução em Rojava e em todo o Curdistão, com as mulheres na linha de frente deste processo revolucionário. É necessário fortalecer estas conquistas enquanto avançamos na luta LGBT, que motivou os camaradas a criarem o TQILA.

LIBERTAÇÃO LGBT! MORTE AO ARCO-ÍRIS CAPITALISTA!

CONTRA-ATAQUEM! ESSES VIADOS MATAM FASCISTAS!

COMUNIDADES E COLETIVOS MILITANTES HORIZONTAIS E AUTO-ORGANIZADOS PELA REVOLUÇÃO E PELO ANARQUISMO LGBT!

[1]Neste texto irei me referir ao autoproclamado Estado Islâmico como “Daesh” – a forma como a sigla de “Estado Islâmico no Iraque e na Síria” é pronunciada em árabe. O som também lembra o de outra palavra em árabe, “Dahes”, que significa “aquele que semeia a desordem”. Os fanáticos do Daesh detestam ser chamados assim. Mais um motivo para usar este termo. Além de ser uma maneira de não oferecer a este grupo o status de Estado e muito menos o de representante da religião islâmica.

[2] O nome original em inglês é The Queer Insurrection and Liberation Army, formando a sigla TQILA. Como a palavra “queer” é de difícil tradução no contexto da população LGBT brasileira, acabei optando por preservá-la ao me referir ao grupo em português.

[3] O manifesto foi originalmente publicado na conta das Forças Revolucionárias Internacionais de Guerrilha do Povo no Twitter (@IRPGF) no dia 24 de julho de 2017. A tradução é livre e de minha própria autoria.

[4] Jineologia é uma filosofia de vida formulada pelo povo curdo em Rojava. Conforme explicou Melike Yassar, a expressão significa, em curdo, “mulher” e “vida”.

Foto: Twitter/IRPGF

Samir Oliveira

LGBTfobia de Estado: quando o poder público é agente ativo da discriminação

Samir Oliveira
20 de julho de 2017

Em maio deste ano a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ILGA, na sigla original, em inglês) publicou o relatório: “Homofobia de Estado – Estudo jurídico mundial sobre a orientação sexual no direito: criminalização, proteção e reconhecimento”.

Trata-se do estudo mais completo e recente a respeito das legislações internas de dezenas de países em todos os continentes sobre a população LGBT. A análise leva em conta não somente a existência de leis que punem a comunidade sexo-diversa, mas também de dispositivos que garantem direitos nas mais diversas instâncias.

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A riqueza de detalhes do estudo é impressionante. Uma leitura fundamental para quem deseja entender como as estruturas de Estado no mundo inteiro tratam a população LGBT

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O relatório aponta que em 124 países não existe nenhuma lei que criminaliza a relação sexual consensual entre gays e lésbicas. A boa impressão causada por este dado desmorona quando observamos a informação seguinte: outros 72 estados criminalizam essas relações em suas leis.

Em pleno 2017, existem quatro nações que punem com pena de morte seus próprios cidadãos LGBTs. Outros dois países possuem esta tipificação criminal de forma parcial, em algumas jurisdições de seu território.

O que diferencia este estudo da mera tabulação fria de dados é sua capacidade de interpretar os números através da realidade de cada país. Não é apenas o conceito físico ou carcerário de punição que é levado em conta.

Por exemplo, o relatório informa que 19 estados possuem leis de moralidade e de propaganda, que proíbem a liberdade de expressão quando o assunto é diversidade sexual e de gênero. Na prática, o Estado censura o direito das próprias pessoas de se reconhecerem e se afirmarem enquanto LGBTs.

A luta por um mundo mais justo e igualitário é árdua e longa. Estas leis não serão derrubadas da noite para o dia. Mas serão inevitavelmente sepultadas em algum momento. Nenhuma tirania dura para sempre.

A prova disso está no próprio estudo da ILGA, que demonstra que 23 países reconhecem e celebram casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Brasil está nesta lista – infelizmente não por existência de legislação que garanta este direito, mas por jurisprudência consolidada. Outros 26 estados asseguram a LGBTs o direito à adoção.

As placas tectônicas da História por vezes se movimentam de forma lenta, mas nunca permanecem inertes. Em todos os países que hoje protegem ou garantem direitos a população LGBT um dia já imperou a lógica punitiva. E nos países que permanecem institucionalmente “neutros”, o pêndulo pode virar tanto a nosso favor como contra.

Por isso é preciso seguir lutando e não se render. Sem ingenuidade, mas também sem deixar de acreditar que um outro mundo é possível – e realmente é, se fizermos nossa parte para que isso aconteça.

Samir Oliveira

O rock me ajudou a entender que não há nada de errado em ser gay

Samir Oliveira
13 de julho de 2017
Foto: Imagem dos arquivos de Tavinho Paes

Hoje é o Dia do Rock. Um gênero musical agressivo, intenso e contestador, que recebeu ao longo das décadas inúmeras contribuições da população LGBT. Verdadeiros ícones do rock eram/são gays, lésbicas, bissexuais e transexuais.

Escrever sobre música é um desafio para mim. É uma área onde gente muito qualificada e especializada costuma fazer resenhas e análises. Definitivamente não é minha zona de conforto. Eu estaria mais à vontade descrevendo uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados do que falando sobre um show um gênero musical.

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Então tenham em mente que este texto não passa de um bocado de pitacos e sensações de um apreciador de alguns estilos de rock e artistas. É sobretudo um desabafo sobre como certas referências marcaram a minha vida e me ensinaram que não há nada de errado em ser gay

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Meu primeiro contato com o rock foi ainda na infância. Quando eu ia para a casa do meu avô materno e ficava garimpando seus vinis, me divertindo com as capas. Um dia ouvi Raul Seixas e me apaixonei.

Depois descobri Legião Urbana na pré-adolescência. A voz e as letras de Renato Russo impactaram profundamente a sensibilidade do jovem menino gay que eu estava descobrindo ser no interior do Rio Grande do Sul. A internet era muito rudimentar naquela época. Então eu escutava os CDs (!) de Legião Urbana no Diskman (!!) e ia pausando as músicas frase por frase para anotar as letras em um caderno que eu conservada apenas para isso. Não tem como ser mais viado do que isso, né?

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A insinuação da bissexualidade em “Meninos e Meninas”, o mistério envolvendo a figura de João Roberto em “Dezesseis” e tantos outros sentimentos transmitidos pelas músicas de Renato Russo dialogavam muito com quem eu era – ou estava descobrindo ser – naquele momento

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Ao mesmo tempo descobri também Cazuza, que desatou uma potência revolucionária em minha vida. Lembro que estava no Ensino Médio na época e fui com a escola ver o filme do Cazuza no cinema. Saí mal disfarçando o choro, mas não podia comentar nada em casa. Falar sobre um roqueiro gay que morreu de Aids era um imenso tabu na minha família.

É incrível como uma coisa vai levando a outra. Com Cazuza veio Cássia Eller e toda sua malandragem. A força daquela mulher lésbica que desafiava os padrões que a sociedade impõe a tudo que é considerado feminino me impressionou.

Como vocês devem ter percebido, meu contato com o rock – e especificamente com o rock protagonizado por LGBTs – veio através da música brasileira. As influências internacionais chegaram um pouco depois, no final da adolescência. Mas vieram com tudo.

Embora não fosse homossexual, nem tivesse músicas de alguma forma relacionadas à população LGBT, Jim Morrison foi a grande paixão platônica da minha juventude. Sem dúvida The Doors é uma banda especial para mim. Só por isso incluo sua referência em um texto que deveria ser exclusivo para ícones do universo LGBT. Me perdoem, eu não resisto.

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Poderia citar ainda muitas outras influências do mundo do rock que me ajudaram a aceitar quem eu sou. David Bowie foi fundamental. Sua figura anárquica mais confundia do que explicava. Freddie Mercury era uma alegria para meus ouvidos

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Todas estas influências foram cruciais na minha formação pessoal e cultural e em meu processo de conhecimento sexual. É evidente que eu não bebi apenas dessas fontes. Afinal, não escutava apenas rock. O pop e a MPB também sempre estiveram muito presentes na minha vida. Mas era o rock que apelava a um instinto mais combativo. Era o rock que me induzia a acreditar que eu não precisava me desdobrar em explicações sobre quem eu era. Sobre por que eu era. Sobre até quando eu iria ser. E por isso eu serei sempre grato.

Foto: Cazuza e seu amigo Kiki, nos anos 1980 / Imagem dos arquivos de Tavinho Paes.

Samir Oliveira

Não gay o bastante: o drama de refugiados homossexuais

Samir Oliveira
6 de julho de 2017
Foto: Nathan Rupert/Flickr

A situação dramática de refugiados ganha contornos de catástrofe humanitária em muitos países. A Síria é a expressão mais cristalina deste problema. Acossada por uma disputa infame entre um regime assassino e uma organização terrorista, a população síria vê no exílio a única alternativa. Mas existe uma outra faceta pouco explorada deste problema.

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As pessoas que precisam deixar seus países devido à perseguição motivada por preconceito e discriminação. Não existe um dado preciso e confiável, mas não é difícil imaginar que centenas de milhares de LGBTs encontrem-se nessa situação no mundo inteiro

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É evidente que este não é o único motivo para uma pessoa homossexual ou trans deixar seu país. A comunidade LGBT também sofre as consequências de guerras e catástrofes humanitárias – momento em que estão ainda mais vulneráveis que outros setores da população.

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Exilados mesmo no exílio

Muitos LGBTs acabam buscando asilo na Holanda, um país tido como liberal nos costumes. Foi a primeira nação a legalizar o casamento gay. E recentemente o governo lançou um aplicativo – o Rainbow Refugees NL – que fornece informações a refugiados LGBTs sobre direitos, saúde e segurança. Através da ferramenta é possível verificar os trâmites do procedimento de solicitação de asilo e encontrar associações da sociedade civil que prestam auxílio a refugiados. O aplicativo está disponível em árabe, persa, francês e inglês.

O problema é que muitos refugiados LGBTs acabam enfrentando situações de violência nos próprios abrigos, que dividem com compatriotas e moradores de outros países. Com frequência, têm suas roupas queimadas e as camas vandalizadas com excrementos.

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Reportagens da imprensa e relatório de ONGs apontam que homossexuais são xingados, espancados e até mesmo violentados sexualmente nestes abrigos

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Mesmo diante de tantos abusos, resistem em ir à polícia, com receio de que o envolvimento das autoridades possa atrapalhar a concessão de asilo. Na Alemanha, a Federação Lésbica e Gay informa que ocorreram 106 casos de violência contra homossexuais e transexuais refugiados em Berlim, entre agosto de 2015 e janeiro de 2016. Na Holanda, a prefeitura de Amsterdã precisou viabilizar casas de abrigo exclusiva para refugiados LGBTs. É comum também que cidadãos holandeses se disponham a receber as vítimas em suas casas.

Mas não é apenas contra o preconceito que os refugiados LGBTs precisam lutar na Holanda. É também contra o próprio sistema que, em tese, os acolhe. Para que seja concedido asilo, é preciso que um assistente social do governo seja “convencido” de que o(a) solicitante é mesmo homossexual. Como se refugiados que já tomaram a decisão mais dura de suas existências – abandonar seu próprio país e deixar para trás os vínculos de toda uma vida – fossem forjar uma orientação sexual falsa. Ainda mais sabendo que isso tornaria suas relações mais conturbadas com suas comunidades de origem.

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Suficientemente gay (?)

O caso do iraquiano Sahir, de 29 anos, é emblemático. Mesmo com um namorado, ele não foi considerado “gay o bastante” pelo sistema de acolhimento do governo holandês. Sahir teve que expor sua intimidade de forma completamente invasiva. Precisou relatar às autoridades que dorme junto com seu companheiro e que mantém relações sexuais frequentes com ele. De nada adiantou.

O governo também não aceita fotografias em paradas LGBTs ou depoimento de amigos, colegas ou familiares como “prova” de que o solicitante de asilo seja mesmo homossexual. O impasse absurdo gerado pelo caso de Sahir deslanchou uma onda de solidariedade com a campanha “Not Gay Enough”, que exige mudanças no sistema de acolhimento holandês.

Dentre as mudanças, o movimento quer que o procedimento de concessão de asilo a homossexuais passe pela deliberação de uma comissão formada por profissionais da psicologia e integrantes de ONGs especializadas em prestar auxílio a refugiados. Para que nenhum LGBT seja deportado a um lugar onde não se sente seguro.

Foto: Foto: Nathan Rupert/Flickr

Samir Oliveira

Sasha Velour e o futuro da arte drag

Samir Oliveira
29 de junho de 2017
Foto: VH1

SPOILER ALERT: Se você ainda não terminou de ver a nona temporada de RuPaul’s Drag Race, não leia este texto.

Eu sou um admirador da cultura drag. Foi através desta cultura que tive minhas primeiras experiências de socialização no mundo LGBT, como até já relatei em um texto aqui. A libertação que esta forma de expressão artística permite a quem faz e desperta em quem a aprecia é algo revigorante.

Acompanhei com entusiasmo todos os episódios de RuPaul’s Drag Race e posso dizer com algum grau de certeza que esta última temporada elevou a competição – e a arte drag – a um novo patamar. A vitória de Sasha Velour trouxe um componente de inovação e ousadia que outras temporadas não se arriscaram a coroar.

Se você ainda não viu este lipsync, por favor, veja, divulgue e enalteça!

É verdade que Sasha não foi a personagem mais completa ao longo da temporada, como foi o caso de Shea Couleé, uma excelente atriz, fashionista, performer e bailarina. Mas Sasha nunca deixou a desejar, tanto é que nunca ficou entre as duas piores de nenhum episódio.

Sasha não foi a mais completa, mas sem dúvida foi a mais versátil, dando uma característica única a tudo que fazia – mesmo quando estava totalmente fora de sua zona de conforto, como em desafios que envolviam humor e dança. Isso fez com que ela se destacasse inclusive no Snatch Game, um desafio icônico da série e que pode traçar uma linha definitiva entre vencedoras e perdedoras. Sua versão de Marlene Dietrich foi milimetricamente executada e deu visibilidade à principal característica de Sasha Velour: a inteligência. Estamos falando de alguém que cogitou performar Judith Butler no Snatch Game, algo que PRECISA acontecer ainda, por favor!

Esta cena certamente provocou reações semelhantes ao Red Wedding de Game of Thrones. Aja que o diga!

Sasha é, sem dúvida, a drag mais inteligente e politizada que já participou da competição. Conseguiu provar que um bom lipsync não se resume a passos de dança, mas à criatividade, capacidade de intepretação e elementos de inovação que possam ir além das manjadas trocas de roupa no meio da performance.

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A cena em que Sasha Velour tira sua peruca ruiva e começa a ser coberta por pétalas de rosas vai ficar definitivamente marcada como o Red Wedding do mundo LGBT

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Com aquela interpretação, Sasha comprovou que não estava apenas fazendo uma performance, estava criando algo novo e mandando uma mensagem. É evidente que Sasha teve o cuidado de dosar sua inteligência e seu potencial político ao longo da temporada, afinal de contas sabemos muito bem que essas duas características não costumam ser exatamente atrativas em um reality show. Não é isso que o mercado do entretenimento procura ou faz questão de difundir. Não se trata de uma crítica arrogante, até porque – repito – sou um fã de carteirinha da série. Trata-se do reconhecimento de que a realidade do sistema em que vivemos é bem mais dura do que as brechas e possibilidades de ruptura que ele apresenta.

Sozinha, Sasha Velour não irá revolucionar a cultura drag. Mas certamente é um passo a mais no sentido de uma mudança positiva. Não é à toa que suas primeiras palavras após a vitória foram: “Vamos mudar essa porra toda”.

Foto: VH1

Samir Oliveira

Por que a organização da Parada LGBT de São Paulo não grita Fora Temer?

Samir Oliveira
15 de junho de 2017
SA?O PAULO, SP, 04.05.2014 – PARADA GAY: A 18a Parada Gay comec?a na tarde deste domingo na Avenida Paulista e percorre ate? a Prac?a Roosevelt em Sa?o Paulo. (Foto: Ben Tavener / Brazil Photo Press).

A cidade de São Paulo realiza anualmente a maior Parada do Orgulho LGBT do Brasil. Mais de um milhão de pessoas sairão às ruas neste domingo, dia 18, para celebrar a diversidade e lutar por direitos em um evento que se caracteriza pela mistura entre a alegria festiva e a seriedade reivindicatória. Contudo, algo parece desajustado na parada deste ano.

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O país vive uma conjuntura turbulenta, com um governo ilegítimo e frágil. Com 4% de apoio popular e enrolado na Operação Lava Jato, Michel Temer é sustentado apenas pelos piores interesses fisiologistas de um Congresso Nacional coberto de lama

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Em todos os cantos do país, qualquer evento, peça teatral ou cerimônia oficial  tornou-se um palco para que alguém puxe um grito de Fora Temer, que instantaneamente se transforma em coro. Esta foi a marca do Carnaval deste ano, onde os blocos de rua das principais cidades do país expressaram este sentimento de repulsa ao governo.

Agora, que a situação está ainda mais grave do que em fevereiro, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo toma uma decisão inexplicável: escolhe como tema da edição deste ano o “Estado laico”. É evidente que a luta por um Estado laico é necessária, justa e dialoga com a proteção da população LGBT brasileira, na medida em que fanáticos religiosos neopentecostais dominam amplos setores da política e articulam iniciativas cada mais vez mais nocivas aos nossos direitos.

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Acontece que este governo representa, também, estes setores. Que, aliás, são muito bons em se misturar com qualquer governo. Não é à toa que o bispo Marcelo Crivella, hoje prefeito do Rio, foi ministro da Dilma

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A conjuntura exige da Parada LGBT de São Paulo um grito forte, alegre e colorido por Fora Temer. O movimento LGBT sempre esteve na vanguarda das lutas sociais. Simplesmente não faz sentido que a associação da parada resolva ignorar o momento histórico do país e colocar esta poderosa festa da diversidade em rota de colisão contra um governo que sequer é um aliado dos LGBTs.

Tenho a convicção de que, embora oficialmente o Fora Temer esteja ausente do tema da parada deste ano, ela acabará inevitavelmente expressando este caráter de rechaço ao governo. A população LGBT sabe que Michel Temer é um inimigo de nossos direitos. É uma pena que a própria organização da parada tenha optado por perder o trem da história.

Foto: Ben Tavener/Flickr