Pedro Henrique Gomes

A lista do Chico

Pedro Henrique Gomes
20 de maio de 2017

Saiu a mais esperada lista do ano: a do Chico!

Eu explico. O jornalista e crítico de cinema Chico Fireman pediu para críticos, cineastas, jornalistas e cinéfilos que lhe enviassem uma lista com os seus 20 filmes favoritos. O resultado é uma compilação de menções a centenas de filmes. Como lista é uma tendência por aqui, Chico recebeu o vazamento de dezenas delas. No último minuto mandei a minha, meio de susto, com o que foi vindo na memória. O filme que dá título a esta coluna, desnecessário dizer, é hors concours.

Pequeno Fugitivo, O (1953), Ray Ashley, Morris Engel
Corpo que Cai, Um (1958), Alfred Hitchcock
Chinesa, A (1967), Jean-Luc Godard
Vinhas da Ira, As (1940), John Ford
Noite da Noiva, A (1967), Karel Kachy?a
Lírio Partido (1919), D.W. Griffith
Diabo, Provavelmente, O (1977), Robert Bresson
Bunny Lake Desapareceu (1965), Otto Preminger
Rastros de Ódio (1956), John Ford
Amantes (2008), James Gray
Viagem da Hiena, A (1973), Djibril Diop Mambéty
Pagamento Final, O (1993), Brian De Palma
Terra em Transe (1967), Glauber Rocha
Turba, A (1928), King Vidor
Era uma vez no Oeste (1968), Sergio Leone
Amantes Crucificados, Os (1954), Kenji Mizoguchi
Prelúdio para Matar (1975), Dario Argento
Solei O (1970), Med Hondo
Portal do Paraíso, O (1980), Michael Cimino
Cidadão Kane (1941), Orson Welles

Além disso, Chico separou as listas em categorias. Deixo abaixo os links para todas elas. Divirtam-se!

Os melhores filmes de todos os tempos

O ranking alternativo

Melhores por década

O melhor de cada ano

Os melhores por país

As listas individuais

Os rankings temáticos

Todos os filmes votados na enquete

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Corra

Pedro Henrique Gomes
15 de maio de 2017

Corra, primeiro longa-metragem de Jordan Peele, leva o jovem Chris (Daniel Kaluuya) para a casa dos pais de sua namorada para uma visita. A família não sabe que ele é negro, pois, sob garantia da namorada (Allison Williams), que é branca, eles são bastante esclarecidos e não veriam problema na relação da filha com ele. A realidade, no entanto, é senhora de outra complexidade.

A cordialidade racista, sempre embutida e mal disfarçada nos gracejos e em comentários sobre as aptidões físicas do negro, é aqui levada ao escárnio, ao ridículo, ao grotesco. O filme de Peele não é nada sutil (não quer ser): a estrutura formal do racismo é colocada desde o esqueleto. Peele não se ocupa em metaforizar, comenta a sujeira civilizacional em sua indecência de forma crua. É assim que podemos entender, por exemplo, um diálogo que é aparentemente idiota, a saber, quando o seu sogro (neste momento ainda não o sabemos, mas ele é um branco rico, racista e assassino; o componente de classe não escapa ao filme) diz que votaria novamente em Obama, pois ele teria sido o melhor presidente da história dos Estados Unidos, ao que Chris concorda desconfiado.

A preocupação em se misturar com os brancos parece, no início, mais de sua namorada do que do próprio Chris, que age como alguém que já conhece a violência do racismo e pode lidar com ela. Ao chegar na casa dos pais da namorada, que fica num vilarejo bem distante de qualquer outra habitação, Cris logo estranha a presença de empregados negros trabalhando para a família e que apresentam comportamento muito suspeito. A contradição não é aleatória, logo veremos.

A partir daí as suas resoluções não são, em verdade, as melhores. Suas soluções têm certo automatismo e previsibilidade (como se descobre o mistério, como se luta contra ele, quem ajudará a resolvê-lo) e o relógio de seu humor bate atrasado, embora o filme consiga manipular esses esquemas mantendo constante a tensão fundamental do filme, já que o diretor tem um estilo de direção já bastante mentalizado, de encenação pensada – e deve matizá-la em filmes seguintes. O seu domínio estético permite que o filme não descambe para a sátira desleixada que se encerra em um discurso político de boas intenções.

Embora não seja importante retê-lo, aviso que revelo a seguir parte do mistério do filme: usando os corpos negros como hospedeiros para a mente dos brancos mais velhos da família, retira-se o cérebro do colono para colocá-lo no corpo da vítima de maneira a prolongar a sua existência. Ou seja, a perpetuação material da vida provém do sacrifício criminoso dos corpos negros. Não há como pedir socorro, por razões óbvias, para a polícia, e não há tampouco pessoas confiáveis por perto.

O que esse aparato todo revela não é tanto a analogia com certos grupos supremacistas, mas o descabimento, mais largo, de uma sociedade que inviabiliza e interdita a convivência. É pois no imaginário colonizador que se sobrepõem as narrativas do racismo e sua maquinaria complexa, inclusive instituindo-o como sistema que, aí sim, naturalizado, pode ser reproduzido pelos que sofrem do racismo. Contra isso, a luta.

Get Out, de Jordan Peele, EUA, 2017. Com Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Keener, Bradley Whitford.

Pedro Henrique Gomes

Five Came Back

Pedro Henrique Gomes
8 de maio de 2017

Enquanto acompanhamos, sem norte, o lamaçal acachapante da nossa política (não só a nossa), de minha parte resta algum refúgio mental nos filmes. Não que isso implique facilidades ou conforto. Ao nos movermos por entre imagens, também nos perdemos nelas – talvez em consequência delas, por elas.

Passei a última semana assistindo os documentários que o filme Five Came Back (produzido pela Netflix e narrado por Meryl Streep) menciona, realizados por grandes cineastas americanos como propaganda governamental da guerra: John Ford, Frank Capra, George Stevens, William Wyler e John Huston. O documentário, dirigido por Laurent Bouzereau, em três episódios, pune o espectador com o modo Netflix de narrar o mundo, rigorosamente quadrado e superficial (as falas dos contemporâneos Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, por exemplo, são meramente publicitárias). Mas o interessante é, após ver o filme de Bouzereau, encarar a maratona dos trabalhos que ele cita (que a Netflix incluiu em seu catálogo).

Já havia visto os filmes de Capra e Wyler, mas não os outros. Artilharia pesada, os filmes se inserem no aparato formal da guerra, sua estrutura e sua técnica. No conjunto, representam e oferecem ampla visão sobre a formação dos discursos, das narrativas e, claro, do olhar de cada cineasta sobre os objetos que filmam: a morte, a destruição, a História em luta. É sabido que, em regimes fechados ou abertos, o Estado geralmente fez uso do cinema como propaganda. Até mesmo “propaganda” é um termo que pode soar vago a luz de leituras mais sofisticadas sobre os efeitos políticos de um filme e sua relação com os espectadores. Mas deixamos esse debate para outro momento.

***

Se a guerra merece ser filmada, se há coisas que são representáveis ou irrepresentáveis, a estas preocupações os filmes não se apegaram. A propaganda anti-nazi passava por filmar as atrocidades cometidas pelos nazistas (dezenas de campos de concentração, isto é, campos de extermínio); ou pelos italianos e japoneses. O filme de George Stevens, Nazi Concentration Camps, por exemplo, é muito duro: vai aos campos filmar os corpos soterrados, os resgates, as missões do exército americano. Há uma preocupação, documental por excelência (estamos nos anos 1940, momento enérgico para a tradição realista no cinema), em captar a realidade tal como ela se apresenta. Para entender Hollywood, temos que ir ao encontro de suas imagens mais contraditórias.

Não sei se resumo bem, mas a hipótese de Five Came Back, construída a partir dos filmes que menciona, é que ao filmar os dispositivos de destruição de vidas que desembocaram nas duas Grandes Guerras, o que os cineastas estavam fazendo era participar simbólica e operacionalmente dos conflitos, ajudando a construir o seu imaginário, a formular as suas narrativas centrais.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Rastro de Maldade

Pedro Henrique Gomes
28 de abril de 2017

A passagem da tranquilidade ao caos é o elemento detonador do conflito. Quando a esposa de um habitante (combalido) é levada por uma tribo de canibais, o xerife da cidade (Kurt Russell) mobiliza um pequeno grupo em busca de resgatá-la. Os personagens são cansados, de falas arrastadas, alguns impacientes, outros já andam com idade avançada ou estão debilitados de algum modo – e não há muitos deles. A missão não será fácil. Na tradição do gênero, nunca é.

Filme que passou em branco nos cinemas (chegou aqui diretamente em streaming), Rastro de Maldade segue a cartilha clássica do western e busca a renovar, embora essa renovação não seja sempre fluida e bem organizada, se escorando e dependendo, por vezes demais, dos códigos do gênero. A violência que mostra, desde o primeiro plano, não é novidade no faroeste, embora o cineasta Craig Zahler, neste que é o seu primeiro filme como diretor, tenha ambições um tanto mais literais ao filmar corpos sendo partidos ao meio a base de machadadas. É um universo que proporciona essa liberdade, este o do faroeste: o deserto montanhoso e isolado, o silêncio do vento e a sensação de justiça e preservação da calmaria local.

O filme já inicia partindo desse rompimento do sossego do vilarejo. Roubos, mortes e sequestros acontecem (desconfiam de índios). Mas são poucos os espaços que existem no filme, sendo a ação concentrada a uma prisão, duas ou três casas e a trilha rumo ao resgate. A concisão do espaço resulta em tensão ao longo do tempo, pois o filme captura bem os ambientes e os personagens. Mas mesmo que tente incluir elementos do mais puro cinema de horror para escapar das responsabilidades morais do gênero (pois o horror comporta mais as hipérboles do que o western), os seus personagens precisam responder aos códigos, precisam preencher as lacunas estruturais do roteiro e, sobretudo, devem morrer na hora certa.

Se cada filme é um tratado sobre o cinema e, embora seja dedicado na construção do tempo de cada sequência e na descrição do quanto é complicado tomar uma decisão (sempre é), o filme é certamente conservador ao insistir na vilania de “tribos”, bem e mal corporificados naquele que é incivilizado. A história do western foi erigida em torno de muitos valores que não possuem dimensão alguma no filme de Zahler, aparecendo enterrados na sua preocupação (justa) por criar um filme que pudesse transitar livremente entre gêneros. Mas o trânsito não se dá sem atropelamentos. A filiação ao gênero se dá mais pela via de um pastiche tarantinesco do que pela assimilação da própria história cinematográfica do western.

Bone Tomahawk, de S. Craig Zahler, EUA, 2015. Com Kurt Russell, Richard Jenkins, Matthew Fox, Patrick Wilson, Lili Simmons.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Fragmentado

Pedro Henrique Gomes
7 de abril de 2017

Duas amigas tentam convencer uma terceira a pegar carona com o pai de uma delas, após pararem numa lanchonete. Os atrativos para a viagem giram em torno das piadas ruins que o motorista contará para as passageiras. Após breve hesitação, a jovem aceita. Um homem misterioso entra no carro, no lugar do pai, e silencia as três. Ao acordarem, estão presas e não fazem a mínima ideia do motivo. O mistério do sequestro, e do cativeiro, Fragmentado carregará até o final antes de completar. A descrição da cena é incapaz de colocar a imagem, mas, como as personalidades que o personagem de James McAvoy interpreta, esse mistério assume muitos desdobramentos.

O sequestrador sofre com o transtorno dissociativo de identidade e sua mente comporta mais de vinte personalidades, cada uma tomando o controle de seu corpo (de sua mente) a qualquer momento. Desnecessário dizer o quanto esta premissa é explorada e incorporada ao universo do diretor de Corpo Fechado e O Sexto Sentido – como as armadilhas que ele cria jogando tanto com as crenças dos espectadores quanto com suas expectativas. O seu raciocínio visual é apurado e a inventividade que propõe é decisiva para apreensão do espectador (que ele reconhece e manipula sorridente). O transtorno da múltipla personalidade está geralmente associado a um evento traumatizante, sendo uma forma de reação à ruptura do ego, a qual as várias vidas passam a tentar esquecer.

Os admiradores de M. Night Shyamalan vão recorrer, com boa razão, ao que é regular em sua obra, ao que são as suas categorias universais, as reviravoltas, as questões de fé, os recursos estilísticos, a construção psíquica do medo, enfim, o que quisermos adicionar ao bojo do cineasta. Isto é, evidentemente, coisa de cada um. O essencial é que Shyamalan está filiado a um gênero, o suspense, e que sua obra contém, em fato, uma amarração espiritual com este gênero – de Hitchcock a John Carpenter – e também um estilo próprio. Não só pelo que é mental e da ordem do sobrenatural (e por isso nos lembramos de Hitchcock, por isso nos recordamos de Carpenter, de Polanski), mas principalmente pelo que é físico, material. Fragmentado é mental e é físico.

A sua metafísica, bem entendida, não surge em oposição ao físico, mas como parte integrante dele, sua ontologia, seu alicerce memorialístico e visual. O aspecto fabular de sua obra, que tem seu auge em A Dama na Água, não é resultado de arbitrariedades: é medo, tentação, aventura, dúvida, morte, fantasia, em suma, é construção meticulosa das variantes da crença. Shyamalan é um historiador de suas próprias imagens e, num só golpe, um escritor visual destas histórias (imagens). Aquilo que o cinema fantástico de super-heróis encena com certa ironia ou “ansiedade realista”, Shyamalan resolve como ritual absolutamente consciente dos seus encargos.

É aí que ele ainda é surpreendente. Como se as expectativas que depositamos se dissolvessem magicamente nas ações dos personagens, tão frágeis e tão incapazes de agir diante do medo, que paralisa e torna inerte o movimento do pensamento. E então a morte chega, decidida, a dar um fim e um recomeço hiper-real. Os que sobrevivem, agora aperfeiçoados, são justamente aqueles que creem no poder da mente. Shyamalan é um crente.

Split, de M. Night Shyamalan, EUA, 2017. Com James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson.

Pedro Henrique Gomes

Michael Cimino: o homem que pisou na cauda do tigre

Pedro Henrique Gomes
31 de março de 2017

A célebre cena da roleta russa em O Franco Atirador (1978), quando Robert De Niro tenta dissuadir o seu amigo Christopher Walken de continuar com o perigoso jogo é a síntese do poder que as imagens, nos filmes de Michael Cimino (1939 – 2016), exprimem. Absolutamente todos seus filmes possuíam certa lisura e notável efervescência algo raras. De O Último Golpe (1974) a Na Trilha do Sol (1996), sua obra é um prato cheio para entendermos um pouco da complexa história do cinema americano.

Sua filmografia comporta um malgrado episódio, como uma porção de outros, no qual o protagonista é um filme poderoso. O Portal do Paraíso (1980) não é a “obra-prima incompreendida” que aniquilou a United Artists, pois não é de compreensão que se trata o cinema. O estúdio, criado pelos pioneiros Chaplin, Griffith, Pickford e Fairbainks lá nas primeiras décadas do século passado (e que tinha como propósito fortalecer a posição dos diretores em uma indústria crescente e vivendo modificações que só viriam a se intensificar), teve então o seu maior fracasso (no sentido hollywoodiano).

A história é longa e não há espaço para remontá-la, deixo portanto a recomendação de um livro, bastante duro com Cimino, escrito por Steven Bach, um dos produtores do filme: Final Cut: Art, Money, and Ego in the Making of Heaven’s Gate, the Film that Sank United Artists.

A história deste filme custou caro não só ao estúdio, mas ao próprio cinema americano da geração pós-clássica. Cimino, é claro, sabia, do auge de sua sensibilidade, que fazia um grande filme, donde a sua insistência em manter a temperatura das cenas (a violência, física e psicológica, se é que podemos as separar), a magnitude dos planos, a honesta e ambiciosa vontade de remeter ao tradicional, a pureza dos diálogos, a extensão do tempo, a clareza de suas heranças estéticas e intelectuais. Estão lá, por óbvio, os “seus cineastas”, John Ford (decerto em primeiro lugar), D.W. Griffith, King Vidor, Cecil B. DeMille; os seus literatos, Charles Dickens, Thomas Mann; os seus pintores, Caspar Friedrich, Kandinsky, Renoir (não possuem as cenas de danças do Portal do Paraíso e de O Franco Atirador (1978) alguma semelhança com O Baile no Moulin de la Galette?).

Ele só queria filmar pessoas e sonhar

Os personagens de Cimino não precisam falar muito: existem as imagens. Aliás, a minha imaginação cinéfila sempre permitiu imaginar Griffith, cineasta do período silencioso, a falar cada vez menos em seus filmes se ainda os fizesse hoje. De fato, os seus dois filmes falados não possuem lá muitos e extensos diálogos. Como Cimino, Griffith também viu sua carreira desandar com o auxílio perverso da mesma indústria que ele, como nenhum outro, ajudou em seus primeiros passos. Cimino não teve melhor sorte, mas o seu legado é imenso. Ele foi, sempre, entre os herdeiros de Griffith e Ford, provavelmente o maior, em quem as “evidências” apareceram com mais força e vibração.

Ao contrário de Griffith e mais próximo de Ford, Cimino era um idealista crítico. Temos um exemplo definitivo em seu último filme, Na Trilha do Sol, que coloca lado a lado a crença religiosa e a ciência não para prová-las verdadeiras, mas torná-las possíveis. Pois é disto mesmo que se trata: a linha do horizonte fordiana, matéria visual constituinte da história do western, não é senão a crença na possibilidade do mundo e nesta possibilidade como ordem (moral) a ser restituída pela e na América.

Como aquele outro sonho que nunca se realizaria: a adaptação do livro de Ayn Rand, Vontade Indômita. King Vidor já havia lhe dado uma imagem cinematográfica em sua adaptação do livro homônimo. O Objetivismo, “a virtude do egoísmo”, a liberdade, a propriedade, na propalada ideia de Rand, ou seja, o laissez-faire ordenador da estrutura capitalista moderna, seriam seus materiais. Mas Cimino dizia não estar ligado em ideologias e política. Ainda bem que, neste caso, ele sempre esteve errado. Pois o que seria de um filme como O Ano do Dragão (1984) sem a violenta exposição dos meandros da máfia chinesa nos Estados Unidos (como se, naquele contexto, máfia e política não fossem partes de um mesmo processo) e O Siciliano (1987) – ou mesmo O Franco Atirador, filme antibelicista por excelência.

Não lhe importavam os motivos, mas as crenças e o que elas mobilizavam nos homens que as carregavam. Era o que ele queria filmar, o que buscava mostrar. Ele queria poder imaginar e sonhar o mundo com seus personagens.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Silêncio

Pedro Henrique Gomes
24 de março de 2017

Os padres portugueses Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) vão ao Japão para procurar o mentor intelectual de ambos, Cristovão Ferreira (Liam Neeson), que lá foi e não retornou. Estamos no século XVII. O Japão dos senhores feudais, budista, não aceita a religião cristã. Os padres católicos e seguidores de Cristo são então condenados a se tornarem apostatas ou experimentarão a tortura e a morte. A primeira, em matéria de religião, em si uma forma de tortura claudicante: é necessário pisar e cuspir em imagens de Cristo para confirmar o abandono da fé. Paradoxal, como qualquer fé, é a imagem que Scorsese nos oferece destes homens e suas missões.

A história, adaptação de um livro japonês publicado em 1966 é algo como um Sermão do Padre Antônio Vieira: “Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear, são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta” (Sermão da Sexagésima).

É tentadora a ideia de incluir Silêncio, pensado no conjunto da obra de Scorsese, entre os seus filmes de aprofundamento das temáticas religiosas cristãs. Ele trata de fé, isto está claro, de modo mais direto, assim como em A Última Tentação de Cristo e Kundun. O tema é caro ao cinema americano (de D. W. Griffith a Michael Cimino, chegando ao próprio Scorsese), país de fundação cristã (protestante) que é. O cineasta inscreve seu filme na tradição de um cinema em diálogo intenso com outro, aquele que o cinéfilo conhece bem e admira com notório entusiasmo – o japonês, evidentemente; sua inspiração está baseada em Yasujiro Ozu. Ele dedica, pois, suas imagens a estas duas tradições: a dos símbolos religiosos e a das imagens do cinema como profissão de fé, como instrumento e como registro; como história da memória. Não são os melhores filmes aqueles em que os seus autores investem as suas crenças?

Silêncio é o filme de alguém que crê, sobretudo, nas imagens que cria. No entanto, ele expõe a contradição de ser um pregador não violento com uma obra repleta de violência em forma de punição – e purificação, sacrifício, martírio, autoflagelo. Rodrigues e Garupe, os homens em missão, irão sentir na carne e no espírito a dor que o Padre Ferreira experimentou. As formas de tortura utilizadas para forçar a apostasia eram as mais variadas, corpos jogados em alto mar, queimados, deixados a perecer em crucifixos.

Scorsese quer a conciliação das crenças, a convivência e o respeito no mundo dos que creem (nesse sentido ele é como Bresson). É um humanista radical: chafurda cada vez mais na seiva que nutre o pensamento cristão. Suas imagens não são dogmáticas (as de Mel Gibson em A Paixão de Cristo, por exemplo, são) – dedica o filme aos religiosos japoneses, embora os retrate como antagonistas, não exatamente como vilões. O que lhe interessa é a ideia de Deus ante a religião, o pensamento do indivíduo ante o conjunto de crenças. Seus personagens não renunciam. É até algo didática a forma como Scorsese encena e enquadra a fé dos seus, resgatando closes dreyerianos e insistindo, pela montagem, na duração e na intensidade do sofrimento em tela. É preciso um pouco sangue frio para não sofrer junto.

Silence, de Martin Scorsese, EUA, 2016. Com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Tadanobu Asano.

Pedro Henrique Gomes

A 13ª Emenda

Pedro Henrique Gomes
17 de março de 2017
13TH

Não demora para A 13ª Emenda confessar a sua potência argumentativa. As políticas de encarceramento em massa de negros e latinos não é um dado lateral para entender a perversidade racial que circula nos EUA. É, ao contrário, o seu traço mais marcante, o continuador ideológico do racismo e das violências escravagistas que explicam o fenômeno do sistema prisional (e, claro, da Justiça) daquele país. É entendimento do presente que ilumina o entendimento do passado, poderia dizer Marx. Há também as diferenças de classe, tão cruciais no campo minado do debate que estão amalgamadas com o racismo. O racismo evoluiu de um sistema de posse para um sistema de segregação e preconceito estruturado e violento. É ainda preciso lutar.

O filme de Ava DuVernay nos diz que para compreendermos esse recorte é preciso ter perspectiva histórica, e esta nos deixa claro que o processo de mistificação do negro como ameaça ao branco precisava ser uma ameaça real após o fim da escravidão. Precisava tomar corpo, ser imagem. O filme então utiliza as imagens de cinema, a partir de O Nascimento de Uma Nação, para reforçar esse ponto – poderia citar muitos outros filmes, vários deles menos lembrados; …E o Vento Levou, por exemplo. O filme de Griffith deu, após seu lançamento, em 1915, novo fôlego a Ku Klux Klan e inspirou nova onda de perseguições (para acompanhar esse momento vale ler Melvyn Stokes, em especial, seu livro D.W. Griffith’s the Birth of a Nation: A History of the Most Controversial Motion Picture of All Time).

Após o fim da escravidão negra, em 1865, a 13ª emenda condenou o negro ao estigma de criminoso. O filme refaz o percurso sem encenação, aposta na força das entrevistas, do arquivo. A certa altura, colocam-se as divergências em campo: mostrar ou não as imagens da violência motivada pelo racismo? É preciso chocar a opinião pública e, assim, promover algum nível de consciência social da situação histórica da população negra nos Estados Unidos? As políticas de guerra às drogas iniciadas com Nixon (Lei e Ordem) e reforçadas com Reagan promoveram um aumento absurdo do número de presos no país desde os anos 1970. Somados a isso, os complexos prisionais privados lucram como máquinas de moer carne. Quando tais políticas começam a perder força o discurso vira a ponto de os democratas, que com Clinton eram favoráveis, com Hillary pedem reformas. Nem tanto ao mar, pois, nas palavras de Angela Davis, historicamente os processos reformistas sempre significaram mais opressão. Isto é, é dos escravizados que devem nascer as ações políticas práticas e não dos escravizadores.

Uma ressalva firme ao filme é petulância da “estética Netflix”, que vem abaular, rodear de power points, promovendo um picoteamento incrível nas falas dos entrevistados para dinamizar o ritmo do filme. É uma característica comum aos documentários feitos pela empresa, a montagem ultra planejada (num mal sentido), mediada por intervalos de respiro musicados e então devolvidos ao ritmo do argumento como um soco. Esse ritmo, num filme que é puro fluxo de pensamento reflexivo, soa anacrônico.

Voltaremos a este filme em uma próxima coluna.

13th, de Ava DuVernay, EUA. Com Michelle Alexander, Angela Davis, Cory Booker, Jelani Cobb.

Pedro Henrique Gomes

Hell or high water

Pedro Henrique Gomes
10 de março de 2017
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Antes de me voltar para uns filmes de modo mais detido, preciso ainda escrever sobre alguns outros. Não consegui assistir a todos os filmes da “awards season”, portanto esboço abaixo algumas palavras sobre alguns deles – enquanto já há outros chegando, pois neste final semana estaremos em peregrinação para assistir Silêncio, do Martin Scorsese, e Personal Shopper, do Olivier Assayas, e O Apartamento, de Asghar Farhadi.

A Qualquer Custo, de David Mackenzie

O cenário é o sul dos Estados Unidos. Texas, claro. Jeff Bridges interpreta o xerife. Toby (Chris Pine) e Tanner (Ben Foster) roubam bancos para constituírem um patrimônio (uma lembrança de que a luta de classes no velho oeste é a luta pela propriedade da terra). O filme mostra que os bancos, após tomarem as terras, dominam e controlam a economia local. Chegaram com violência, expulsaram os povos indígenas, tomaram conta das terras. Portanto, a dominação territorial/espacial é um elemento da ação de A Qualquer Custo – e de seus dramas também. Mackenzie o faz com atenção especial aos espaços (isto é, aos enquadramentos). Os espaços, no cinema, aprofundam tensões, distendem o tempo, provocam angústias e maravilhamentos. Não assisti aos seus filmes anteriores, mas o cineasta demonstra conhecer o riscado. Eis o lema que seus personagens carregam: roubar dos ricos e dar a nós, os que precisamos.

Aliados, de Robert Zemeckis

O CGI francamente debochado, o chroma key escandaloso, a atmosfera retida ao que é essencial ao movimento do filme, este Aliados é um delírio. Mesmo que seja para roubar um pouco de Raoul Walsh aqui, um pouco de Lubitsch ali, não é fácil (tentar) ser clássico. Zemeckis está plenamente consciente dos artifícios que utiliza para manipular narrativamente o seu filme e, ao mesmo tempo em que inscreve seu filme dentro da tradição, é muito livre para criar uma ação visualmente muito interessante e uma história de amor que encerra o caso de maneira a honrar os seus personagens. Uma mistura honesta de drama amoroso, filme pastiche de guerra e filme de ação fantástica (vocês viram a cena do parto em meio aos bombardeios?).

Lion – Uma Jornada Para Casa, de Garth Davis

Incrível como um filme desaba totalmente após cada minuto de projeção, principalmente na segunda fase da vida do protagonista (a segunda parte do filme). Mesmo antes, nota-se que a mão é pesada, o filme teima em seguir uma cartilha jornalística sub-sensível que não consegue articular as suas sensibilidades dramáticas. As tendências estruturais se manifestam desreguladas, impedindo que mesmo a substância mais elementar para que o filme funcione, a emoção, se veja jogada numa montagem e principalmente numa encenação que impedem que o filme aconteça. O ápice do filme é a descoberta da casa através de imagens de satélite do Google. Uma reportagem escrita teria melhor sorte.

Manchester à Beira-mar, de Kenneth Lonergan

Esperto ao filmar conversas, Kenneth Lonergan faz com que as melhores cenas de seu filme sejam aquelas em que uma tensão se cria de maneira autocontida. O cineasta sabe filmar esse diálogos mais duros travados pelos personagens pois não precisa fazer muito e, ao mesmo tempo, não pode simplesmente deixá-los a própria sorte. Mas ele encontra a medida e seu filme então flui – no entanto, cá entre nós, os flashbacks ainda me parecem deslocados no filme, puramente repetitivos. Não interrompe a conversa e a melancolia que rebate daquele espaço frio e cinzento dá força ao filme. Vale acompanhar o próximos passos do cinema de Lonergan.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu não sou seu negro

Pedro Henrique Gomes
3 de março de 2017

James Baldwin iniciou o projeto de um livro, Remember This House (1979), que não concluiu, no qual pretendia contar a história dos Estados Unidos através da figura de três amigos seus, notadamente Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Em comum, além da militância pelos direitos civis dos negros americanos, Baldwin chama atenção ao fato de que os três, nos anos 1960, foram assassinados antes mesmo dos 40 anos – ele morreria aos 63 anos, na França, para onde se mudou em 1948. Eu não sou seu negro, dirigido por Raoul Peck, é construído inteiramente a partir de fragmentos dos manuscritos deixados por Baldwin.

“Não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram”

Negro, escritor, militante e orador habilidoso. O texto salienta a sofisticação do pensamento do seu pensamento, a poesia crua de sua prosa, expõe suas contradições de jovem, revela as angústias dos anos de maturidade. Baldwin é muito persuasivo e é algo como isto: não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram. O genocídio indígena e a escravidão negra não foram invenções dos negros. O filme chama atenção para as divisões de classe no seio da sociedade americana: “o branco é uma metáfora do poder”.

Peck costura a narração, na voz de Samuel L. Jackson, com imagens de grandes filmes do cinema americano. Baldwin, atento também ao cinema, comenta alguns deles, sua herança, seu imaginário, seus heróis. Não havia representação do negro (nem do índio) no cinema americano senão como elementos de vilania ou a partir de um ponto de vista aristocrático. Não era possível o reconhecimento do negro no cinema. Baldwin cresceu envolvido por essa cultura.

O filme de Raoul Peck é consciente do poderoso material que tem em mãos e não o despeja sobre seus espectadores. Sua narração é pausada, cantada letra por letra em sonoridade irrepreensível, o filme é minucioso nesse sentido puramente estético do rigor documental, tão rigoroso que chega a ser um tanto engessado e apegado ao “televisionismo” da montagem. Ao mesmo tempo, a produção de Baldwin como escritor tratava, não com menor força, de sexualidade, de pressões sociais, em suma, da homossexualidade – Baldwin era homossexual. O filme menciona isso apenas lateralmente através de um relatório do FBI, o que é estranho, pois confiar ao estado policial e racista a descrição de uma particularidade fundamental de seu personagem ameaça (ainda bem que não consegue, graças a ele mesmo) retirar um pedaço dele. Não foi o recorte escolhido pelo cineasta, no entanto.

Outra questão que se imputa negativamente ao filme de Peck, sem surpreender, é um “olhar” semelhante ao que grande parte da crítica (ocidental) despejou (com muita violência, diríamos) sobre os cinemas africanos durante boa parte dos seus anos de formação, a partir de 1960. Em resumo, esperavam que os cineastas dos países africanos “não abandonassem as suas raízes”, que “criticassem o colonialismo” e o seu continuador exatamente perverso, o neocolonialismo pós-independência.

Era preciso ser radical, diziam. O bem aventurado imaginário colonizador (eurocêntrico; nestes casos, em grande parte o francês) pretendia um certo cinema africano: aquele que eles gostariam de ver. Os cineastas africanos queriam outra coisa – ou pelo menos algumas outras coisas, mas não há espaço para remontar este debate agora. É claro que ao salientar isso não se interrompe as críticas ao filme, apenas se questiona uma modalidade específica de juízo valorativo que parece querer um tipo de filme adequado aos seus desejos, esquecendo o filme tal como ele foi concebido.

I am not your negro, de Raoul Peck, França/EUA. Com James Baldwin, Martin Luther King, Malcolm X, Medgar Evers, Dick Cavett, Samuel L. Jackson, Henry Belafonte.