Igor Natusch

Fala de Michel Temer não é sobre Deus, mas sobre quem pode mantê-lo vivo

Igor Natusch
28 de junho de 2017
Brasília - O presidente Michel Temer fez um pronunciamento no qual contestou a denúncia apresentada ontem (26) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Hoje, a política brasileira é um atoleiro, onde cada passo nos deixa mais cobertos de constrangimento e, por mais que andemos, parece impossível avançar. A cada minuto extra sendo governados por Michel Temer, um presidente acusado pelo Procurador-Geral da República de crime comum, cometido no exercício do mandato, mais fundo pisamos no barro pútrido, mais desastrosa se torna nossa jornada pela infâmia política.

E essa inundação parece ter alcançado um nível especialmente alto com o surreal pronunciamento de Temer, concedido na tarde de terça-feira, 27 de junho de 2017. Uma fala assustadora em vários níveis, que vão muito além do insólito “não sei como Deus me colocou aqui” – uma frase tão cara de pau que já virou meme, com toda justiça.

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Antes de tudo, um desafio de compreensão se impõe. A quem, no fim das contas, Michel Temer desejava falar?

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Ao povo brasileiro, junto ao qual goza de uma impopularidade quase sem paralelos no Brasil democrático, certamente que não. Afinal, em nenhum momento dirigiu ao povo palavras de tranquilidade, esperança ou convicção – aliás, quase poderíamos dizer que não dirigiu ao povo palavra alguma. Ao alto empresariado, talvez? Mas de que jeito, se mencionou as tão trombeteadas reformas apenas de passagem, se não trouxe nenhum indicativo de melhora econômica, sequer um dividendo positivo de sua tragicômica viagem para Rússia e Noruega foi capaz de enumerar?

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Pretendendo vender a imagem de estadista ultrajado por acusações falsas, Temer só fez desnudar sua incapacidade de liderar um Estado. Ou existe qualquer coisa de líder em alguém que, diante da angústia de uma nação, dedica toda a sua fala a, mal e porcamente, defender a si mesmo?

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Nada disso: o discurso de Temer só faz sentido quando se olha para o Congresso Nacional. É a ele, ou ao que resta de apoio dentro dele, que Temer dirigiu suas palavras de frágil defesa, ao mesmo tempo que posicionou-se de forma clara em uma guerra contra o Ministério Público e a Polícia Federal. “Querem parar o país”, disse o presidente, e ao dizer tal coisa falava não ao detentores do poder econômico, mas aos deputados e senadores que podem salvá-lo da investigação no Supremo. Estou com vocês, é isso que Temer quis dizer, o tempo todo, com tal ânsia que a mal-disfarçada mensagem saltava o tempo todo para fora das entrelinhas. Estou com vocês, meu inimigo é o mesmo, estejam comigo e juntos lutemos até o fim. Querem parar o país, ora pois.

Só assim faz sentido a ausência de justificativas ou perspectivas, as ilações que comete enquanto diz que não as cometeria, os torpes comentários sobre Rodrigo Janot, o procurador Marcelo Miller e a JBS. Não explica o conteúdo de sua conversa com Joesley Batista, não justifica ter sido flagrado em mentira sobre a viagem de jatinho com um “bandido notório”, não faz mais que tergiversar sobre a gravação que, segundo perícia da PF, não foi adulterada como alega. Não entra nesses méritos simplesmente porque não é essa sua estratégia.

A luta é outra: parar de derreter no Congresso, onde até companheiros de sigla (e não estou falando de Renan Calheiros) não se constrangem mais em avacalhá-lo publicamente.

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Sem a maioria na Câmara e no Senado, Temer não tem nada – e fala grosso para tentar deter a debandada, demonstrar que está pronto para brigar por si e, por tabela, em nome deles

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Chama uma claque um tanto patética para aplaudi-lo (com direito a ridículos gritos de “bravo!” por parte de Darcísio Perondi) e elogia o “quórum suficiente para uma sessão na Câmara”, agradecendo pelo “apoio extremamente espontâneo”. É falso e patético, mas não é desprovido de função.

O cadáver político que é Michel Temer vem apodrecendo em público desde a revelação devastadora da gravação feita por Joesley. Já são 40 dias em que sua presença é um misto de infâmia, desaforo e constrangimento. A disposição, evidente quando diz que a denúncia é “uma ficção” calcada em “provas armadas”, é insistir em submeter o país a uma presença que quase ninguém tolera mais, sem brandir sequer as tais reformas estruturantes como desculpa. A briga é para salvar a pele, e a instituições que funcionem no raio que as parta. Curioso perceber que, em meio a tanta dissimulação e delírio, a fala de Michel Temer não deixa de ter uma distorcida forma de sinceridade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil