alerta de gatilho – violência doméstica
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A socialite Ângela Diniz foi assassinada em 30 de dezembro de 1976, dentro da própria casa, em Búzios, no Rio de Janeiro. Foram três tiros no rosto e um na nuca. Quem puxou o gatilho foi o namorado, Raul Fernando Street, o Doca, uma figura frágil. No laudo do perito, recuperado pela produção do podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, lemos que quando as balas a encontraram ela usava “biquini azul tendo, na região frontal, o desenho de uma cabeça de pantera de cor preta.” Uma perversidade do destino com quem era chamada de “a Pantera de Minas”, apelido dado pelo colunista e amigo Ibrahim Sued, com quem Ângela tivera um relacionamento. O texto segue: “Junto ao ombro direito da vítima, encontrava-se uma pistola automática, oxidada, da marca Beretta, calibre 7,65 mm, com o carregador vazio.”
Carlos Heitor Cony, na edição 1291 da Revista Manchete, de janeiro de 1977, escreve abre a reportagem sobre a morte de Ângela de maneira crua:
“Tinha gente que ia à missa na Igreja de Lourdes, em Belo Horizonte, só para ver o meu vestido novo. Todos os domingos, minha mãe me dava uma roupa nova. Aos 12 anos eu já era sucesso.” Vinte anos depois, essa menina que deslumbrava Belo Horizonte (e mais tarde escandalizou a cidade) estava deitada numa mesa de mármore, fria e imunda, no pequeno necrotério de Cabo Frio. Quase nua, apenas a tanga e a blusa, o rosto mutilado, os dentes trincados, como se mordessem o último pedaço de vida a que tinha direito. Muita coisa aconteceu na vida de Ângela Diniz: um casamento falido, três filhos, um crime de morte em seu próprio quarto, à beira da sua cama. Problemas de tóxico e de amor, ela queria muito e ao mesmo tempo, até que de repente tudo acabou. Frase de uma senhora mineira, durante o seu sepultamento: “Finalmente, ela descansou.”

O assassinato de Ângela Diniz provocou uma comoção no país, mas não pelos motivos que se espera, não pelo feminicídio – palavra que sequer existia no vocabulário dos brasileiros. De início, a surpresa de um crime tão bárbaro acometer a alta sociedade mesclava-se à incredulidade com o fato de tragédias acometerem aos ricos e famosos e belos. Mas em seguida Ângela revelou-se a vítima imperfeita e os motivos da atenção foram não tão lentamente sendo moldados sob a ótica de uma sociedade cruel e moralista. Ela costumava dizer: sou rica, bonita e boa de briga. E era tudo isso. E as pessoas detestavam isso.
Na página dez da mesma Manchete, há uma frase de Ângela que dá uma ideia da mulher nada recatada: “Só tenho uma vida e quem decide sobre ela sou eu.” Mas a sentença do texto seguia cruel: “Suportar ou não suportar essas consequências [da vida] eis questão.” A frase era boa, explicava tudo. Ela continuou fazendo das suas, suportou as consequências tão bem que acabou varada de balas.” Duas semanas depois, na edição 1293, o mesmo semanário traria uma entrevista com Doca Street, então foragido, conduzida pelo jornalista Salomão Schvartzman.
Doca se apresenta como uma figura atormentada, que sofre de saudade, que sofre pelo “amor alucinado” que dedicou a Ângela. Dizia que queria morrer, mas seguiu vivo até 2020, quando faleceu aos 86 anos. Ali, naquela entrevista, antes mesmo de se entregar à polícia, ele admite que a arma era dele, que estava louco de ciúmes, que a relação era conturbada. Ele admite que atirou, só alega não lembrar quantas vezes. Ainda assim, ele não parecia assumir a responsabilidade pelo crime. A primeira coisa que ele diz é que ela nunca se sustentou, se defendendo da alegação de que ele não ganhava dinheiro algum e, até aquele momento, dependia da fortuna da ex-mulher, Adelita Scarpa. E segue:
“Foi uma paixão violenta, possessiva, uma paixão total somada a um ciúme doentio. Amei como jamais amei outra mulher. Quis dar a Angela uma outra imagem, queria que ela vivesse outra vida, que tornasse a ter os filhos perto dela, como verdadeira mãe. Ela me prometeu que mudaria seu comportamento.” Ou seja, a culpa foi dela.
A entrevista toda é entrecortada por frases que apontam para uma suposta inevitabilidade da violência. “Consegui modificar Ângela em muitas coisas, mas o que a estragava era a vodka”; “Disseram que eu não deixava Angela sair de casa. É verdade. Mas fazia isso por causa da compulsão que ela tinha em provocar os homens à sua volta”; “Não sei o que acontecia no seu íntimo, que lhe dava um prazer especial em me espicaçar, em me torturar, ferindo a minha sensibilidade”. Como disse antes, um homem frágil. Ele não pôde evitar.
De acordo com o que apurou a produção do podcast Praia dos Ossos, o delegado Newton Watzl, de Cabo Frio, leu a entrevista. E gostou. “É como se o Doca fosse um Dom Quixote moderno dentro do nosso mundo materialista.” Era ele quem cuidava do caso.
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LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
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A estratégia traçada pelos advogados de Doca Street deu certo e não demoraria para a narrativa do crime passional ser dominante. O homem ponderado, cidadão de bem, apaixonara-se por uma mulher intensa e, em um momento de destempero, perdera a cabeça. Ele não era realmente assim. E conforme o tempo foi passando, boatos e conjecturas se misturaram à realidade e, até o momento do julgamento, em 1979, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ou, parafraseando o delegado, um Dom Quixote moderno. Ele estampava camisetas, nome de pratos em restaurante. Também em um trecho do podcast, sabemos que havia até um coquetel batizado em sua homenagem, que era servido com quatro balinhas no copo. Henfil foi quem melhor traduziu o que se passou naqueles três anos. “Tão quase conseguindo provar! Ângela matou Doca”, escreveu nO Pasquim.
Assim, ignorando uma relação turbulenta, apenas de curta; ignorando que ele era agressivo com as pessoas à sua volta; ignorando que andava armado; ignorando que ele batia, ameaçava e agredia Ângela, o advogado Evandro Lins e Silva levou ao júri a tese da”legítima defesa da honra”. E voltou. Raul Fernando Street foi condenado a dois anos de prisão e, como réu primário, cumpriu a pena em liberdade. A sentença provocou uma reação sem precedentes e movimentos feministas lutaram para que ele fosse novamente julgado. E conseguiram. Na segunda vez, ele foi considerado culpado e recebeu pena de 15 anos. Cumpriu um terço.
A história da Pantera de Minas é contada no filme “Angela”, de Hugo Prata, que estreou nos cinemas em setembro deste ano. Um mês depois de a tese da “legítima defessa da honra” ser derrubada, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), 47 anos depois do assassinato que seria uma divisor de águas na justiça brasileira.
Pela tese aceita até então, um réu agressor poderia alegar que sua honra havia sido ferida a partir do comportamento da vítima e, por isso, o crime havia sido cometido. De maneira prática, se uma mulher cometesse adultério, por exemplo, era como se o homem tivesse direito de se defender. E isso foi usado ao longo de décadas para, no limite, inclusive inocentar assassinos – como quase aconteceu com Doca. E não que seja um crime incomum por aqui.
No Brasil, o feminicídio foi incorporado ao Código Penal como uma qualificadora do crime de homicídio em 2015. Assim, a definição dada pela Lei Nº 13.104/2015 considera o feminicídio um tipo específico de homicídio doloso, cuja motivação está relacionada ao contexto de violência doméstica ou ao desprezo pelas mulheres, pelo sexo feminino. Um levantamento do Monitor da Violência, parceria do site G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) mostra que houve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com 2021. Segundo o que mostram os dados oficiais dos 26 Estados e do Distrito Federal, mais de 1,4 mil mulheres foram assassinadas pelo fato de serem mulheres. É uma morte a cada seis horas. O número é o maior registrado no país desde que a legislação foi atualizada. Se forem consideradas as mortes de mulheres também sem a qualificadora, o número cresceu 3% entre 2021 e 2022 e chega a 3.930 assassinatos. Segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019.
A pesquisa “Visível e Invisível”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, ainda mostra que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022. Estima-se que 33,4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais experimentaram alguma forma de violência por parte do parceiro ou ex. O resultado é superior à média mundial, estimada em 27% segundo o Global Prevalence Estimates of Intimate Partner Violence, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Mas há um detalhe sobre a suposta legítima defesa da honra: ela não aparece no Código Penal. O texto estabelece, sim, que “a legítima defesa pode ser empregada para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ou seja, defesa da própria vida, não da honra.
A ação contra o argumento foi apresentada ao STF pelo PDT em janeiro de 2021. No mesmo ano, o relator, ministro Dias Toffoli, suspendeu o uso da tese da legítima defesa da honra em julgamentos por meio de liminar. A decisão foi referendada por todos os ministros até que, em 29 de junho, Toffoli proferiu o voto, dizendo se tratar de um recurso argumentativo cruel. “A legítima defesa da honra é um estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no Brasil”, disse.
Todos acompanharam o voto do relator. A ministra Cármen Lúcia foi didática: “A vitimização do réu nestes casos se faz indo em busca de informações sobre a mulher, ‘o que ela teria feito para merecer isso’. Portanto, sendo merecedora do assassinato, no caso do feminicídio, o homem não teria feito nada demais. E isto não é algo que esteja afastado da realidade brasileira de 2023. Uma mulher é violentada a cada quatro minutos no Brasil em 2023”. Durante o voto, a ministra relembrou o caso de Ângela Diniz.
Eu sempre me perguntei e agora, diante disso, volto a me questionar como seria se houvesse um outro destino para Angela Diniz. Será que as mulheres imperfeitas seriam absolvidas? Como seria se ela, sim, tivesse agido em legítima defesa? Como seria se ela tivesse reagido às agressões, tomado a arma das mãos de Doca e atirado contra ele até que ele tombasse? Não precisei ir muito longe para descobrir que esse mesmo benefício raramente é concedido quando a história se inverte e a vítima se levanta. “A mulher, quando senta no banco dos réus, existe uma violência estatal muito forte contra ela”, diz o defensor público Andrey Régis de Melo.
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ROSANA E ROBERTO
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Na primeira página do processo, leio: homicídio simples. Eu sei que se trata da tipificação, mas não pude deixar de pensar que não é nada simples. Assim como Ângela e Doca, Rosana e Roberto namoravam há poucos meses. E assim como o de Ângela e Doca, era um relacionamento violento. Mas diferente do que houve com Ângela e Doca, Rosana matou Roberto, não o contrário. Na noite de 06 de janeiro de 2005, Rosana deu uma facada no namorado que a segurava pelo pescoço. No auto de necropsia, lemos que Roberto apresentava uma “lesão perfuro-cortante na região peitoral esquerda com 27mm de extensão.” A facada perfurou o coração. Bastou um golpe.

O nome dela não é Rosana mesmo, ela pediu para não ser identificada quando eu entrei em contato para que contasse sua história. De início, ela topou. Mas dois dias depois, enviou um áudio explicando que não conseguiria. “Eu comecei a me lembrar de tudo que eu passei, de todo aquele sofrimento. Foram vários anos de muito sofrimento e muita angústia. Eu não quero nem lembrar, foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas e eu não quero nem lembrar”, me disse. Acontece que Rosana foi denunciada e pronunciada por homicídio simples e, por 18 anos, o seu destino esteve nas mãos de quem não levou em conta as marcas de esganadura que ela trazia no pescoço e, muito menos, a palavra dela.
Em respeito à Rosana, eu não insisti com as perguntas sobre como tudo aconteceu e decidi recorrer aos autos. No depoimento que prestou à polícia no dia seguinte aos fatos, Rosana conta que ela e Roberto Keppler começaram a namorar em novembro de 2004. Em dezembro, o namorado a convidou para morar com ele e, assim, começa a história de violência:
“Que ficou uma semana morando junto com a vítima. Que a vítima sempre queria lhe agredir, só não fazendo porque “eu corri e foi (sic) posar na casa dos vizinhos”; que posou na casa da mãe da I.M.; que a vítima sempre “me ameaçava de agressão”.”
Note que, neste depoimento, a vítima é o Roberto.
“Que ontem, 06.01.05, por volta de 19h3 ou 20h, Roberto chegou com um litro de cachaça, já com sinais de embriaguez e disse: Rosi, hoje eu vou quebrá (sic) a tua cara, hoje eu vou te matá (sic)” Que pediu para o Roberto parar, pois estavam na casa da amiga e não queria fazer fiasco; que Roberto convidou a depoente dizendo “tu qué apanhá (sic) lá em casa?”; que concordou em descer junto com Roberto até a casa dele, porém pediu para tomar um banho. Que foi tomar banho e neste momento a I.M. veio lhe dizer para não descer junto com ele porque ele ia lhe bater. Que se escondeu no quarto, porém antes pegou uma faca tamanho grande, cabo de madeira, na cozinha da I.M. e foi para o quarto; que deixou a faca sobre o balcão e se escondeu atrás da porta; que I.M. foi dizer para o Roberto que a depoente tinha fugido; que Roberto disse “eu vou achar a R. nem que seja no inferno” e entrou para dentro do quarto, fechou a porta e começou a chamar a depoente de “vagabunda, vadia, vou quebrar a tua cara”; que pediu para sentar e conversar, mas Roberto disse “não tem conversa contigo, eu vou quebrar a tua cara, vou bater onde mais dói, vou te quebrar tudo”; que Roberto falava em tom baixinho, não elevou a voz nenhuma vez; que implorou para ele parar dizendo “tu qué (sic) que eu me ajoelhe aqui, vamo para (sic) com isso, pelo amor de Deus”; que neste momento Roberto lhe deu um tapa na “cara” e a depoente continuou pedindo para ele parar, porém Roberto lhe pegou pelo pescoço e disse “agora vou te matar” e começou a apertar; diz a depoente que estava sufocada, que não conseguia mais respirar e falar, neste momento lembrou da faca, “levei a mão pra trás, peguei a faca e finquei, eu tava desatinada, eu não sei onde atingi”; “quando eu grudei a faca ele me largou e eu saí apavorada”.
Segundo testemunhas, Roberto saiu do quarto cambaleando e dizendo: “Ela me arrebentou o coração.” e tombou no chão da cozinha.

Rosana pediu abrigo na primeira casa que encontrou e ficou lá até a manhã do dia seguinte, quando voltou para a casa da amiga e só então soube que o namorado estava morto. “Eu não acreditava que tinha matado ele.” Ela foi encaminhada para exame de lesão corporal em que se atestou que ela havia sofrido violência: “Apresenta contusão na face lateral esquerda da região cervical.” Mesmo assim, o delegado pediu a prisão preventiva. O juiz indeferiu, mas deu seguimento ao processo. Ela seria julgada por homicídio.
Segundo o defensor público Andrey Régis de Melo, responsável pela defesa de Rosana no tribunal do júri, a versão dela foi desconsiderada ao longo do processo. “Não é levada em conta pelo delegado de polícia, que acaba iniciando ela; não é levada em conta pelo promotor da época, que acaba denunciando ela; não é levada em conta pelo juiz, que pronuncia. E no julgamento, a promotora também não reconhece a legítima defesa”, conta.
Um tempo depois, a prisão preventiva foi decretada novamente, mas Rosana havia se mudado e não havia notícias do seu paradeiro. Ela foi considerada foragida até que foi presa em 2016. “Ela foi registrar uma ocorrência policial, inclusive, e aí ficou sabendo que existia essa prisão preventiva referente a esse processo”, explica o defensor.
Rosana só seria julgada em agosto de 2023. A acusação passou de homicídio simples para lesão corporal seguida de morte, com pena de quatro a 12 anos de reclusão. O defensor Andrey Régis de Melo explica que o caso é muito emblemático sobre como as vítimas que reagem à agressão são tratadas no sistema. “Foi desconsiderado que ela era uma vítima de violência doméstica. Ela já havia sido agredida por ele, inclusive havia informações dando conta de que uma vez ela praticamente se jogou na frente de uma viatura da Brigada Militar pedindo socorro. Ele fugiu na oportunidade e depois confidenciou para uma policial militar que estava armado. Então, era uma relação de poucos meses, mas já tinha os indicativos muito fortes de que ela era vítima de violência doméstica.”
Desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, o debate em torno da violência de gênero vêm se fortalecendo, assim como a construção de uma rede de proteção às mulheres. Mas a violência estatal em julgamentos como esse perdura. “Quando a mulher senta no banco dos réus, ela é muito violentada”, aponta o defensor. E a violência de gênero, segundo ele, pode ser notada em diversos âmbitos, não apenas em casos em que isso é julgado especificamente. Por exemplo, em casos que envolvem organizações criminosas. “Nós temos o maior encarceramento feminino da nossa história e não é feito um debate, por exemplo, sobre o quanto elas são violentadas dentro de facções. A gente não vai deparar com homens cedendo o próprio corpo para transportar drogas, mas as mulheres fazem isso porque muitas vezes elas estão sofrendo violência psicológica, violência física e isso é totalmente desconsiderado.” O defensor Andrey Melo disse que já chegou a ouvir de um desembargador que uma mulher coagida poderia ir à polícia e registrar um boletim de ocorrência. “Por que ela não vai numa delegacia? Porque no outro dia tá morta.”
Rosana foi absolvida, afinal. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, antes representada pela defensora Kedi Leticia Bagetti. Mas não significa que ela não tenha, de certa forma, cumprido uma pena. É o que se chama de pena processual, que é o tempo que as pessoas ficam sentadas no banco dos réus. E a “pena processual” de Rosana foi longa. “Graças a Deus foi feita a justiça. Eu fui absolvida e eu quero deixar lá no passado. Eu não quero nem lembrar porque foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas. Passa todo aquele filme novamente na minha cabeça e foi muito sofrimento para mim. Graças a Deus isso acabou”, desabafa Rosana.
No interrogatório do julgamento, ela estava muito emocionada. Chorou bastante. Sabia que a vida dela, dos dois filhos e do marido dependia do desfecho daquela história. “Porque é um trauma para vida dela. A facada que ela dá no então namorado, companheiro dela, é um ato de socorro, é o que restou. Ela está sendo esganada dentro de um quarto, inclusive por um agressor que xingava ela, zombava dela. Então não dá para entender. Sinceramente, não dá para entender porque que ela foi denunciada e submetida a julgamento”, questiona o defensor.
A proibição pelo STF do uso da tese da legítima defesa da honra é um avanço, mas existe muita coisa ainda para mudar no sistema judicial brasileiro. O caso da Rosana é um exemplo de como ainda não se compreende a complexidade das relações a que as mulheres são submetidas. Porque até então, para se defender homens agressores, usava-se um recurso que sequer consta no Código Penal enquanto as mulheres que se defendem mal conseguem se defender com o que está, de fato, escrito na legislação.
Ou seja, a mulher acaba sendo submetida a diversas violências durante processo como esse.
“Teve um momento no julgamento que a acusação diz o seguinte: olha, não há uma prova da versão dela. Aí eu até interrompi a promotora e disse : olha, Doutora, com todo respeito do mundo, mas quando a senhora diz que não há uma prova em relação à versão dela, inclusive desconsiderando o laudo médico, a senhora simplesmente tá dizendo que essa mulher aqui, que apresentou todo esse sofrimento hoje aqui, é uma mentirosa. É só uma forma elegante de dizer que essa mulher está aqui mentindo. Porque em um crime que só tem ela e o companheiro agressor, e ele morre e ela traz uma versão, é óbvio que só vai existir essa versão dela”, me conta o defensor.
O caso da Rosana mostra que a misoginia do sistema não permitiria outro destino para Ângela Diniz. Ela não seria tratada com a benevolência do agressor. Mas o defensor Andrey Melo faz ainda outra pergunta: “Se fosse um homem que tivesse uma marca de esganadura no pescoço e que tivesse dado um único golpe de faca e que existisse pessoas dizendo que ele já havia sido agredido pela mesma pessoa. Será que esse homem seria submetido ao Tribunal do Júri?”
