Voos Literários

A greve em Hollywood e a perversidade capitalista

Flávia Cunha
3 de agosto de 2023

A greve dos roteiristas, atores e atrizes de Hollywood revela uma camada oculta da perversidade do capitalismo associada à tecnologia. Afinal, quando acessamos plataformas como a Netflix para relaxar depois de um dia exaustivo de trabalho, o que a gente menos pensa é na remuneração da equipe de filmes e séries. Sejamos honestos: quantos de nós, engajados politicamente e preocupados com a precarização das relações de trabalho, estavam por dentro das injustiças dos pagamentos residuais para a categoria artística?

Mídia brasileira superficial

Já aqui no Brasil, a cobertura jornalística sobre o assunto tem variado entre o entretenimento (“Confira quais celebridades apoiam a greve”) e a visão egoísta do tema (Será que a sua série preferida será prejudicada pela paralisação?). De qualquer forma, não é uma surpresa. Tradicionalmente, muitos veículos brasileiros costumam fazer uma abordagem editorial superficial em relação a movimentos de trabalhadores. Por exemplo, passeatas de categorias profissionais em busca de reivindicações salariais são transmitidas como meros transtornos de trânsito para ouvintes de rádios de informação. 

Ainda assim, notícias sérias sobre a greve divulgadas em escala mundial tiveram um efeito imediato. Que foi o de retirar o véu capitalista que encobria a penúria financeira da maioria dos atores e atrizes da indústria cinematográfica norte-americana. Além disso, a regulação das tecnologias envolvendo Inteligência Artificial é uma urgência justamente para os trabalhadores anônimos de Hollywood.

Tecnologia já provocou demissões no Cinema

Afinal, não é de hoje que a tecnologia coloca em risco trabalhadores deste setor. Uma das primeiras e mais avassaladoras demissões ocorreu ainda na década de 1920. Celso Sabadin, no livro A história do cinema para quem tem pressa, explica este contexto:

“O desenvolvimento da tecnologia de sincronização do som com a imagem cinematográfica, ou, em outras palavras, o surgimento do filme falado, em 1927, causou muito mais alterações significativas na produção, na linguagem e no mercado mundial de cinema do que se poderia supor num primeiro momento. Na verdade, a introdução do som foi considerada a maior revolução da história da Sétima Arte em todos os tempos, em todas as épocas. Afinal, como disse Noel Rosa em seu samba Não Tem Tradução, de 1933, “O cinema falado é o grande culpado da transformação.”

Celso Sabadin, na mesma obra, analisa que o abalo para a classe artística nesta época acaba não sendo tão lembrado:

“A chegada do cinema sonoro transformou-se também num pesadelo particular para atores e atrizes, principalmente os de vozes menos privilegiadas e os estrangeiros que faziam carreira nos Estados Unidos, mesmo sem o domínio da língua inglesa. Se na era muda a grande matéria-prima dos intérpretes eram suas expressões faciais e corporais, agora a voz, a fala e a dicção tinham de ser adicionadas a esse repertório, valorizando o trabalho de fonoaudiólogos e treinadores específicos de voz. Isso sem falar na capacidade de memorização de diálogos, até então dispensável. Transformações assim tão radicais interromperam várias trajetórias de sucesso.[…] Também caiu no esquecimento toda uma linhagem de cômicos mudos que apoiavam seus filmes em correrias, perseguições, acrobacias e performances físicas que soaram sem sentido na era falada. Com o som, o próprio subgênero da chamada comédia pastelão pereceu.”

Riscos práticos da I.A. para o trabalho criativo

Esta revolução na tecnologia do cinema, que já data de quase 100 anos, pode ser uma alerta sobre o futuro do trabalho criativo. Porque, no fim das contas, quantos espectadores saberão se os figurantes dos filmes e séries forem sempre os mesmos, replicados por Inteligência Artificial? Ou o quanto será divulgado se os roteiros das produções não tiverem mais seres humanos como mentes pensantes na criação? Enquanto ninguém se importa, o capitalismo vai avançando e provocando demissões, sem piedade.

Apoio milionário

Porém, os trabalhadores em Hollywood receberam um apoio importante para enfrentar as dificuldades financeiras enquanto estão paralisados. Diversos atores famosos doaram milhões de dólares para ajudar os colegas anônimos de profissão. Assim, a greve hollywoodiana ganha fôlego e não tem prazo para acabar. Enquanto isso, no Brasil, a solidariedade dos artistas super ricos com os menos favorecidos da mesma categoria profissional não é tão comum. Mas essa empatia e visão de classe bem que poderia servir de inspiração, não é mesmo?

Imagem: Facebook/Reprodução