Se alguém ainda precisava de elementos para constatar como nosso debate político está apodrecido e sem rumo, o recente incidente envolvendo a jornalista Míriam Leitão durante uma viagem de avião traz um monte de elementos úteis para deixar o problema desenhado ainda mais nitidamente. E o retrato que surge com essas novas pinceladas, infelizmente, não é nada positivo.
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Para começar, temos o fato evidente: hostilizar alguém apenas por não gostar do resultado da sua atividade profissional e/ou posição política é falta de civilidade e intolerância, no mínimo
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Vale tanto para Míriam Leitão quanto para, digamos, Chico Buarque – e também para tantos colegas jornalistas, hostilizados em diferentes situações como se eles e a empresa para a qual trabalham fossem uma coisa só. E abraçar os primeiros relatos dando conta de que Míriam “exagerou”, vindos de quem não parece ter exatamente isenção no acontecido, como modo de desmerecer as queixas dela em sua totalidade é, pura e simplesmente, ser ideologicamente seletivo. Lamento, mas é verdade.
Mas há mais. Embora não seja exatamente uma pessoa isenta, Míriam Leitão está longe de ser uma direitosa raivosa, uma criatura política movida pela intolerância a tudo que tenha o menor cheirinho que seja de esquerda. Não se trata de alguém que abomina Direitos Humanos, que se posiciona abertamente contra grupos socialmente prejudicados, que combate ações afirmativas ou defende o endurecimento irrestrito do ponto de vista penal. É uma figura que foi perseguida durante a Ditadura militar, ou seja, que se opôs claramente a um dos momentos mais terríveis da história de nosso país. Embora comprometida com reformas políticas para lá de questionáveis, ninguém dirá que é incoerente nisso, uma vez que o liberalismo econômico e o discurso pró-mercado são uma constante em seus posicionamentos há muito tempo.
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Míriam Leitão é alguém com quem uma pessoa que pensa à esquerda pode não concordar, mas de diálogo certamente muito menos difícil do que com um fake adorador de Bolsomitos ou um pseudo-pensador de direita devoto de Olavo de Carvalho
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Não estamos diante de uma rebeldia política pré-adolescente à MBL, nem de um fascismo que grita por intervenção militar e que, se pudesse, perseguiria opositores do mesmo modo que a própria Míriam e tantos outros foram perseguidos no passado. Estamos, isso sim, confrontados com um pensamento liberal mais ou menos legítimo, certamente questionável (e qual pensamento não é?), mas com todos os predicados necessários para um debate honesto. Que não acontecerá na Rede Globo, é certo, mas não está proibido de acontecer em qualquer outro lugar, em qualquer outro período no tempo.
A opção das pessoas que entoaram gritos de guerra naquele voo, e a opção dos que seguem atacando Míriam Leitão nas redes sociais, não foi essa. Percebe-se claramente como o meio-campo desapareceu: do lado de lá da linha limítrofe é tudo mais ou menos a mesma coisa, tudo merece basicamente a mesma reação hostil. Uma reação, a seu modo, tão chucra e ignorante quanto a dos fãs de Bolsomito que todos nos esforçamos (e com plena razão) para condenar.
Quem assim age transforma o suposto oponente em espantalho, e vê na imagem que acabou de criar a legitimidade para destruir qualquer espaço de ponderação.
“Mas ela não foi solidária a Dilma Rousseff quando a então presidenta foi ofendida na abertura da Copa”, dirão uns. “Ela está colhendo o que plantou”, acrescentarão outros. Embora não sejam exatamente equivocados, não consigo enxergar onde esses argumentos querem chegar. Se ela fracassou em condenar as agressões brutais e misóginas cometidas contra Dilma em diferentes situações, isso muda a situação exatamente em quê? Se ela eventualmente contribui para desinformar e confundir a opinião pública, de que forma isso legitima a NOSSA adesão, direta ou indireta, ao urro dos não-pensantes?
Pedir a carteirinha ideológica de quem vamos ou não vamos defender não vai nos levar a lugar algum. É o que foi feito por alguns que ousaram defender a hostilidade a Chico Buarque, só para rememorar o exemplo acima. Precisamos ter algo que esteja acima disso, ou então não teremos quase nada. E nem vou falar no cheiro de mofo argumentativo que emana de gritos como os que foram feitos contra a jornalista, porque aí precisaria me estender ainda mais do que já me estendi.
Eu não concordo com muita, mas muita coisa que Míriam Leitão escreve e diz. E fico constrangido de precisar dizer isso, porque a reação natural de muitos será dizer que só me alinho entre os que condenam a pataquada porque sou da mesma laia ou quero pagar de isentão. Um dos nós aparentemente mais difíceis de desatar nesses tempos de degradação política coletiva é justamente entender que essa degradação é algo coletivo, que atinge todos os ângulos, e que é preciso estar alerta para não ser reprodutor e incentivador dela. Mesmo que o discurso da “reação” seja atraente, ele definitivamente não serve para tudo.
Foto: Bruna Caroline/Comunique-se
