Atualizado em 02 de outubro de 2023
A reportagem do Vós fez uma incursão pelo Pampa gaúcho e mostra porque ele é o bioma menos preservado – e menos protegido – do Brasil. Uma mistura perigosa de desinteresse, desinformação e dinheiro gerou o ambiente perfeito para a devastação da paisagem que é patrimônio cultural do Rio Grande do Sul.
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Parece um conto de realismo mágico. Aqui, floresta grande e alta é mau sinal; colinas muito verdinhas e uniformes indicam uma espécie invasora; e gado pastando é sinônimo de vegetação preservada. É estranho. O senso comum sobre preservação ambiental não basta para entender o que acontece nestas terras. Ou seja, é preciso conhecer o Pampa para proteger o Pampa. Não basta olhar sem essa vontade, porque a supressão de campo nativo só é evidente para quem quiser ver. Assim começa o conto do bioma invisível.
“Como é que um leigo reconhece a devastação no Pampa?” Essa foi uma das primeiras perguntas que eu fiz à pesquisadora Ana Rovedder. Estávamos frente a frente, na sala dela, no segundo andar do departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ela ficou pensativa, me disse que nunca ninguém havia perguntado isso a ela. Mas eu viajava havia dias pela metade sul do estado e, centenas de quilômetros depois, me incomodava o fato de eu ainda ter dificuldade para identificar o que era esperado da paisagem natural e o que era devastação.
Acontece que a paisagem do Pampa não é composta de belas florestas tropicais como a Amazônia ou a Mata Atlântica. O Pampa é um bioma de campo que está restrito ao estado do Rio Grande do Sul, onde ocupa uma área de 176.496 km² (IBGE, 2004). Isto corresponde a 63% do território estadual e a 2,07% do brasileiro – o bioma estende-se, ainda, por Uruguai, Argentina e Paraguai.
Os campo cobertos de gramíneas espraiam-se cuidadosamente sobre as coxilhas, que é como chamamos as colinas com declives. A vastidão do Pampa preservado é impressionante. É possível enxergar o horizonte a quilômetros de distância, sem nada que obstrua a vista. A paisagem natural é pintada de tons de verde esmaecido e palha que, eventualmente, encontram o céu azul. E apesar do predomínio dos campos nativos, há também matas ciliares, matas de encosta, matas de pau-ferro, formações arbustivas, butiazais, banhados, afloramentos rochosos, etc.
A riqueza da biodiversidade brasileira é notória e as imagens das altas árvores das florestas tropicais e rios de quilômetros de largura são exportadas junto de papagaios, araras e onças-pintadas. Mas há formas de biodiversidade mais sutis, como a do Pampa, que podem ser difíceis de se perceber. Para se ter uma ideia, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) encontraram 57 espécies diferentes de plantas em 1 m² de campo nativo por estas bandas. O faz o Pampa o bioma brasileiro com a maior diversidade de vegetação nativa por metro quadrado.
Mas com exceção do que se nota na rodovia, de dentro do carro, que é algo obviamente escancarado, é difícil identificar a devastação quando se olha para o horizonte. É difícil saber se aquelas árvores deveriam estar ali, se aquele verde é da paisagem natural ou tem a mão do homem – que está cada vez mais pesada.
O biólogo Marco Azevedo explica que essa característica de “bioma invisível” não deixa de ser fruto de desinformação e faz com que o Pampa se torne um alvo fácil de uma espécie de desinteresse deliberado. Ele atua na área de pesquisa científica, conservação e gestão ambiental no Rio Grande do Sul há 18 anos. Ele também é membro da Coalizão pelo Pampa, um movimento da sociedade civil formado para proteger o Bioma. “Resiste uma visão predatória sobre o Pampa, dizendo que como o campo, por muitos anos, foi ocupado pelo gado, ele deve ser considerado todo ele como uma área consolidada e, portanto, não precisaria de licenciamento ambiental para utilizar essas áreas”, explica.
Uma análise inédita feita pelo MapBiomas a partir da mais recente coleção de dados de uso e cobertura da terra, abrangendo o período entre 1985 e 2022, mostrou que a perda de vegetação nativa no Brasil acelerou principalmente nos últimos dez anos. O período coincide com a vigência do novo Código Florestal, aprovado pelo Congresso em 2012. O estudo foi realizado a partir de imagens de satélite e mostra que, nos cinco anos antes da aprovação do texto (2008-2012), houve uma perda de 5,8 milhões de hectares. Nos cinco anos seguintes (2013-2018), a perda aumentou para 8 milhões de hectares. E nos últimos cinco anos (2018-2022), alcançou 12,8 milhões de hectares. É mais que o dobro. Isso configura um aumento de 120% em relação aos anos que antecedem a vigência da nova legislação.
Os dados referentes aos últimos 38 anos não são menos alarmantes. Houve uma perda de 96 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1985 e 2022 no Brasil. É como se São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Paraíba, Santa Catarina, Pernambuco, Ceará e Paraná simplesmente desaparecessem. Onze estados. E proporcionalmente à vegetação existente em 1985, os biomas que mais perderam vegetação nativa até 2022 foram o Cerrado (25%) e o Pampa (24%). E a velocidade é tão impressionante que, de tudo que foi convertidos para algum uso humano, como cidades ou atividades agropecuárias, um terço foi antropizado nos últimos 38 anos.
E o Pampa perdeu a inglória primeira posição apenas no ano passado. O levantamento anterior indicava que se tratava do bioma brasileiro em que mais se havia suprimido vegetação nativa em termos proporcionais entre 1985 e 2021. No período, 3,4 milhões de hectares de diferentes tipos de campos deram lugar para a agricultura, principalmente o plantio de soja, e silvicultura. O que representa uma perda de 29,5% de vegetação. Mas não é motivo para comemorar, porque entre 2021 e 2022, houve incremento na área desmatada em cinco dos seis biomas brasileiros – apenas a Mata Atlântica ficou de fora. Em termos de área, os maiores aumentos ocorreram na Amazônia e no Cerrado, mas em termos proporcionais, os maiores aumentos ocorreram justamente no Cerrado (31,2%) e no Pampa (27,2%).
Isso nos leva de volta à pergunta que eu fiz à professora Ana Rovedder, que também é coordenadora do Neprade e da Rede Sul de Restauração Ecológica. Ela concorda que é difícil, para um olho não treinado, identificar a supressão de campo nativo – no Pampa não se usa a expressão desmatamento. Mas ela indica que há elementos que podem ser observados mesmo pelo olho menos treinado, que podem amenizar a sensação de invisibilidade que a falta de florestas frondosas pode causar. “Uma das questões mais sensíveis, principalmente na região de campanha, é a degradação do solo. Então a gente tem cicatrizes que nos indicam isso.
As cicatrizes mais contundente são as erosões – as voçorocas – e os areais”, explica. As voçorocas são caracterizadas por vincos, sulcos muito grandes que se abrem no solo. Já os areais são porções de areia, já bastante comuns em municípios como Alegrete e Santiago, que dão ao Pampa um aspecto de deserto. Aliás, a professora Ana explica que não devemos usar a palavra deserto para nos referirmos ao Pampa. “No Rio Grande do Sul, para ter deserto, nós teríamos que ter clima de árido a semiárido, e nós não temos. As pessoas chamam erroneamente de deserto. São areais, porque é uma feição de solo e não de clima”, corrige.
O solo do Pampa é um solo arenoso por natureza, então nem todo areal é sintoma de um problema ambiental. Claro, não seria simples no nosso Pampa do realismo mágico, que parece desenhado a partir de uma história de García Márquez. Mas o uso intensivo dessas áreas em sistemas muito intensivos, especialmente para o plantio de soja, aumentou essas feições. “Os campos não aguentam, não suportam esse tipo de produção”, diz a professora.
Em outro conjunto de informações a respeito de cobertura e uso da terra do MapBiomas, um dos dados que mais se destaca é justamente o avanço da cultura de soja no país. Entre 1985 e 2022, a área ocupada para o plantio do grão passou de 4,5 milhões de hectares para 39,4 milhões de hectares. No Pampa, a soja avançou 3,1 milhões de hectares e, de acordo com o estudo, está mudando o perfil econômico do bioma a partir da degradação dos campos nativos, tradicionalmente utilizados pela pecuária.
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DE GRÃO EM GRÃO, O AGRO APAGA O PAMPA
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O plantio de soja provoca um esgotamento muito rápido do solo do Pampa. “Você até consegue trabalhar sistemas produtivos intensivos fazendo manejo conservacionista do solo, o problema é quando você não faz o manejo conservacionista. E a maioria não faz. Fora que a soja é uma cultura anual, então todo ano se mobiliza demais essas áreas produtivas. A silvicultura é problemática, mas ela é uma cultura de ciclos de sete anos, então fica mais parado. Mas a soja é todo ano”, diz Rovedder.
Quando eu saí da sala da professora Ana e voltei para a estrada, os contornos do bioma e da devastação foram ficando mais nítidos. E não muito tempo depois da nossa conversa, a professora me enviou uma fotografia via WhatsApp que exemplifica o poder de degradação do plantio inconsequente de soja. “À direita, o campo nativo e à esquerda, na porção superior principalmente, a soja que foi plantada onde era campo nativo. Veja que os espaços claros são a erosão e o solo exposto já formados em um primeiro ano de plantio.” O solo já está erodido após o primeiro ciclo.
Além do impacto no solo, a agricultura sem manejo adequado tem um impacto imenso na biodiversidade da região, porque quando se faz matriz produtiva em grandes extensões, a fragmentação é diária e há um impacto muito grande na conservação de espécies.
Para se ter uma ideia, o felino mais ameaçado do mundo vive por estas terras. Na estrada entre Dom Pedrito e Santana do Livramento, é possível avistar outdoors sugerindo cuidado com o gato-palheiro-do-pampa, um animal que só existe aqui e já poderia ser considerado extinto se não tivesse sido avistado recentemente, como foi divulgado pela reportagem do Vós em parceria com o portal ((o))eco de jornalismo ambiental. E a principal ameaça ao gato-palheiro é justamente a perda de habitat.
Mas todos os animais sofrem com isso. O Marco Azevedo, que também é Doutor em Biologia Animal e especialista em ictiologia, fala da ameaça, por exemplo, aos peixes anuais. São um grupo de espécies pequenas, de pequeno porte, de peixes da família Rivulidae, que é bem distribuída na América do Sul. No Rio Grande do Sul, há cerca de 40 espécies de rivulídeos, a maioria delas com habitat no Pampa. “Essas são espécies muito particulares, que tem distribuição geralmente muito restrita. E são chamados de peixes anuais justamente porque elas vivem em ambientes temporários, que são poças ou áreas alagadas sazonalmente.
Os peixes anuais vivem nessas poças que geralmente ficam isoladas de corpos hídricos permanentes. Ou seja, elas secam em determinada época do ano e esses peixes tem o ciclo de vida adaptado a isso. “Quando elas estão cheias, eles crescem e se reproduzem muito rapidamente, em poucos meses. Então, depositam os ovos no substrato lodoso – que tem determinadas características. Quando a poça seca, os adultos morrem, mas os ovos permanecem enterrados no substrato e vão nascer na próxima estação chuvosa, completando o ciclo”, explica o biólogo. Isso significa que eles não sobrevivem em terrenos permanentemente irrigado, nao sobrevivem em solo totalmente seco. E não sobrevivem em plantações de soja. “A gente tem visto cada vez mais essas áreas serem perdidas para agricultura”, diz Marco.
Mas entra governo, sai governo, a dinâmica de expansão da soja no Brasil segue inabalada. Ou melhor, a escolha pela exportação de commodities segue inabalada. A área colhida era de 9,5 milhões de hectares em 1995 e saltou para para 30,7 milhões de hectares em 2017. E, segundo o CONAB, esse número já está em 44 milhões de hectares em 2022. Ou seja, 30% da área plantada simplesmente não existia como lavoura há pouco mais de cinco anos.
O grão representa o maior valor de produção do país. O Rio Grande do Sul é o terceiro maior produtor de soja do país. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor da produção em 2022 foi de 345 milhões de reais. O maior produtor é Dom Pedrito, na região da Fronteira com o Uruguai. No Pampa. O mapa do cultivo da soja e o do bioma invisível se sobrepoem.
O problema do avanço da soja é o mesmo de todo monocultivo: empobrecimento do solo, destruição de vertentes e nichos ecológicos. Uma destruição que dá início a um ciclo vicioso que prejudica, inclusive, o cultivo dos grãos.
É inevitável pensar, portanto, que, como disse o antropólogo Fábio Zuker em artigo publicado no site O Joio e o Trigo, parece haver “uma relação direta entre grãos (proponho nos centrarmos aqui no caso da soja), monocultivo, violência e concentração de poder.” Para explicar a provocação, ele sugere que podemos pensar que a sociedade que se constrói ao redor da soja cultivada de maneira irresponsável está solapando a sociedade que se organiza(va) em torno do que havia antes da lavoura.
Vamos pensar na paisagem mais tradicional do Pampa, naquela que vem à nossa mente de pronto: um gaúcho montado a cavalo, com um chapéu de aba larga, bombachas, tocando o gado. Talvez sentado à sombra de uma árvore, sorvendo um mate enquanto o sol se põe no horizonte por detrás de uma coxilha. Pois essa cena não existe em uma lavoura de soja. É a isso que Zuker se refere.
Além disso, a ampliação de monoculturas vem acompanhada de outro tipo de relação de poder, até pela natureza do negócio, em que a soja, geralmente, é precificada e vendida antes mesmo de ser plantada. Há, portanto, o que antropólogo chama de fechamento ao imponderável. Segundo ele, isso se expressa também por meio do uso de agrotóxicos, utilizados como uma espécie de ferramenta política de eliminação da diferença. “A produção da homogeneidade encontra nos agrotóxicos a sua arma mais poderosa. Simplificação ecológica e extermínio de diferentes formas de cultura e vida social andam de mãos dadas.” Não por acaso, 2.182 agrotóxicos foram liberados para uso no Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro.
“As pessoas não sabem, mas nós temos 8.600 famílias assentadas no Pampa, e elas estão sendo afetadas”, diz a professora Ana Rovedder. “Vou te dar um exemplo, tem um assentamento em Piratini. Eles estão muito assustados. Eles falam o seguinte: a gente está vendo a soja bater na porta da gente. Nós fizemos a análise da qualidade de água. Da água que eles usam para lavoura, da água que eles usam dentro de casa, dos poços artesianos e dos poços rasos. Todos estão contaminados com coliforme fecal e nós encontramos 2,4-D em várias dessas fontes.”
Trata-se de um um herbicida poderoso, um agrotóxico que foi banido na Europa há décadas, estava banido no Brasil e, recentemente, foi liberado pelo governo de Bolsonaro. “Eles estão tomando essa água. E eles não usam 2,4-D. Da onde que está vindo?”, pergunta.
Esse caso ilustra como a paisagem não é um sistema hermeticamente fechado. A paisagem do Pampa – e de qualquer bioma – é um sistema aberto que troca fluxos. Então tudo que se faz em uma propriedade afeta a sociedade em uma escala regional e vai encontrar eco em outras localidades. No caso de Piratini, as famílias do assentamento da Reforma Agrária produzem alimentos orgânicos e bebem água contaminada por agrotóxico.
“Não acho que seja exagero prever aquelas massas de migração para daqui um tempo, daquelas que nós vimos na década de 1930 no centro dos Estados Unidos. Daqui a pouco nós vamos ver isso por falta de água e por falta de condições de trabalho. Vocês já estão vendo faltar água na casa de vocês, vocês estão vendo os agricultores morrerem de câncer.”
A escolha – e insistência – dos governos brasileiros pela exportação de commodities mostra que a exportação dos bens primários é o motor de inserção do país na geopolítica e no mercado global. E essa opção foi feita e mantida por governos à direita e à esquerda no espectro político ideológico. Tanto que o governo Lula anunciou, neste ano, o maior Plano Safra da história, com a liberação de R$ 364,22 bilhões para a produção agropecuária nacional. Ainda assim, a associação da expansão do agronegócio com a ascensão da extrema direita e do Bolsonarismo é evidente.
Em entrevista ao jornal Correio do Povo após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no ano passado, o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira, disse que o resultado era “altamente preocupante”.
No livro, As Geografias do Bolsonarismo, o autor Bruno Malheiro explica que a semelhança entre o mapa eleitoral da vitória de Bolsonaro e os mapas do cultivo de soja demonstram que “a expansão de um capitalismo de fronteira é também a de um gosto musical, de um sabor, de um modo de se vestir e se comportar, de uma racionalidade espacial cujo conteúdo de relações congrega um modo de vida violento e absolutamente refratário à diferença. Sabia-se, ali, que o alargamento das commodities no campo brasileiro não era apenas um processo econômico eivado de violência, mas também um processo politico com forte rebatimento na política eleitoral e na legitimidade do bolsonarismo.”
E isso aparece nessa disputa pelo Pampa. Em que famílias assentadas e que produzem alimentos orgânicos disputam o espaço com uma soja cujo dono é mais invisível que o bioma. A dona Alaide Roso vive em um assentamento da Reforma Agrária em Julio de Castilhos. Ela cuida de um quintal agroflorestal implantado pelo projeto Quintais Sustentáveis em 2013. Em depoimento para o Programa Conexus bioma Pampa, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Agricultura Familiar (NESAF) e pelo NEPRADE, ela relata o avanço não requisitado dos agrotóxicos. “O veneno tá destruindo tudo. Muitas vezes eu entro aí no quintal pra colher uma fruta e eu vejo os passarinhos mortos, envenenados, que vem de outras lavouras”, conta.
Durante entrevista coletiva para apresentação do balanço de 2022 do Sistema Farsul e projeções para 2023, Gedeão Pereira destacou o papel do Brasil no cenário internacional dizendo que o país continuaria sendo um player fundamental para a solução da fome no mundo. “Nós todos somos brasileiros, vivemos nesta pátria e eu tenho orgulho quando saio lá fora e vejo o quanto nosso setor é importante. Possivelmente estejamos produzindo alimentos para mais de 1,5 bilhão de pessoas neste mundo”, disse.
Mas não é bem assim. Para além do fato de que a maior parte da soja é exportada e que milhões de pessoas passam fome no Brasil, a soja não é produzida para ser consumida de maneira direta, diferente das frutas da Dona Alaíde. A commodity tem dois produtos principais: óleo e farelo. O farelo é utilizado, basicamente, na composição de todas as rações. Isso significa apenas 2% da soja é consumida in natura para alimentação humana, a maior parte vai para os animais. Portanto, é consumida indiretamente por quem come carne.
A relação entre o agronegócio e a fome, porém, é mais profunda. O agro não só não é parte da solução, como é parte do problema. Primeiro, porque avança sobre áreas de agricultura familiar, que é quem produz alimentos, de fato. De novo, podemos usar o exemplo da Dona Alaíde. “O que eu colho aqui não é só pra mim. Eu levo pra cidade, pro centro social onde tem crianças que moram lá. Eu dou pra eles, pros meus vizinhos. E elas não tem veneno, elas são natural. Isso é o mais importante, é a gente ter, sem veneno, e ter não só pra gente, mas pros outros”, diz ela. Mesmo assim, ela já depara com o veneno, como ela chama, no próprio quintal. Segundo, porque provoca o êxodo rural. De acordo com o IBGE, o país perdeu 1,5 milhão de postos de trabalho rurais entre 2006 e 2017. Mas note que a quantidade de pessoas que trabalhava na agricultura familiar foi reduzida em 2,2 milhões de trabalhadores. Mas porque a expansão da soja pode ser culpada pela redução das vagas? Porque homogeiniza o cultivo e, consequentemente, demanda menos. Isso além da mecanização do trabalho. Terceiro, é simples: dinheiro. O agronegócio tem privilégio para acessar financiamentos públicos além do Plano Safra e, ainda por cima, é regido pelo dólar. Com a desvalorização do real, os produtos do Brasil se tornam muito atraentes para o mercado externo.
O agronegócio, da forma como é produzido, não alimenta quem tem fome de comida, alimenta quem tem fome de grana.
A economia brasileira, obviamente, depende da produção dessas commodities, mas insistir na monocultura sem o manejo adequado do solo e sem respeitar espaços que deveriam ser preservado cobra um preço alto, especialmente em um bioma que já passa despercebido. Como diz o Bruno Malheiro no livro, “o ato de jogar veneno em áreas de monocultivos rodeadas por comunidades, fazendo de espécies que não interessam aos lucros – inclusive a humana – em pragas desprezíveis (…)são ações que carregam uma subjetividade que flerta com o autoritarismo, pois normalizam a transformação da natureza em obstáculo, a conversão dos diferentes em inimigos, a organização miliciarizada da vida social, o culto à violência e à implosão de todas as formas de vida comunitária em nome da defesa da propriedade privada.” A morte torna-se condição de expansão.
“Quem trabalha com questão ambiental tem ido contra o progresso?”, pergunta a professora Ana. “Não, ao contrário nós estamos barrando problemas seríssimos que nós vamos ter em curto prazo. E a questão da água é uma delas.”
E é curioso que o potencial financeiro da soja seja justificativa, porque, no longo prazo, a perda de biodiversidade compromete também o potencial de desenvolvimento sustentável da região, seja pela perda de espécies de valor forrageiro, alimentar, ornamental e medicinal, seja pelo comprometimento dos serviços ambientais proporcionados pela vegetação campestre, como o controle da erosão do solo e o sequestro de carbono que atenua as mudanças climáticas, por exemplo.
E à medida que os campos de soja avançam, vão matando o campo ao redor, fazendo com que se perca a florística nativa dos campos tradicionais e o potencial de pastejo para o sistema de produção pecuária.
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UMA TRADIÇÃO ESMAECIDA
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Quando a gente olha para o Brasil, os relatórios do MapBiomas indicam que a agropecuária continua sendo o principal vetor de desmatamento e pode ser constatado em quase todos os biomas brasileiros no período entre 1985 e 2022. A exceção fica, de novo, por conta da Mata Atlântica, o bioma historicamente mais desmatado do país, onde os dois terços do território ocupados por essas atividades permaneceram estáveis nas últimas duas décadas. Na Amazônia, a área ocupada pelo agro saltou de 3% para 16%; no Pantanal, de 5% para 15%; na Caatinga, de 33% para 40%; no Pampa, de 29% para 44% e no Cerrado, de 34% para 50%. As pastagens avançaram sobre 61,4 milhões de hectares entre 1985 e 2022; a agricultura, sobre 41,9 milhões de hectares. De acordo com o levantamento mais recente, de agosto deste ano, a agropecuária respondeu por 95,7% de todo o desmatamento no Brasil em 2022, consolidando-se como o principal vetor de supressão de vegetação nativa. Mas no Pampa, é preciso separar o “agro” da “pecuária”. Porque a soja é devastadora, mas a pecuária pode ser, inclusive, um meio de preservação.
“Quando se fala de Amazônia, eu tenho que eliminar um bioma e plantar um capim exótico, ou seja, não nativo, formar uma pastagem artificial. E aí eu crio o gado ali em cima com uma pegada ecológica bastante alta, porque eu desmatei. Mas aqui nessa região, os campos são ambientes naturais e com uma diversidade altíssima de forrageiras naturais”, explica o biólogo Glayson Bencke.
A relação do Pampa com a pecuária – ou com algo parecido com a pecuária – é anterior à existência do ser humano na América do Sul. Trata-se de uma história de evolução conjunta com herbívoros nativos e que hoje estão extintos, a chamada mega fauna. Há milhares de anos, havia mamíferos de grande porte que, assim como o fogo, atuavam como agentes de perturbação e mantinham o campo como, bem, campo. Hoje, quem exerce esse papel são os bois. “Nesse ambiente, assim como uma evolução natural o gado e os cavalos entram como agentes que mais ou menos mimetizam o papel ecológico dessa fauna extinta ou mesmo do fogo”, diz Glayson, que é pesquisador e Mestre em Zoologia.
Então, mais do que compatível, a pecuária mantém a florística de campo no Pampa. Ela opera como uma reguladora da manutenção. Se a pecuária for substituída pela soja, as feições mais arbustivas e arbóreas vão se sobrepor ao campo e gerar um desequilíbrio na paisagem. Ou seja, o modulador do Pampa é a bocada do gado.
Mas a pecuária também tem que ser manejada com cuidado, e nem sempre é o caso. Outro sinal de campo degradado a que podemos estar atentos, é justamente a presença de uma pastagem exótica, o capim anoni. “Quem não conhece, pode até achar lindo aquele campo. É um capim de uma cor que oscila entre o verde e o pardo, é uma inflorescência parda. Mas é um pouquinho mais difícil, não é todo olhar que pode olhar e ver”, diz a professora Ana.
O capim anoni é uma espécie invasora africana que foi introduzida propositalmente com para fins de pastejo, por volta da década de 1960. “Mas ele já de cara mostra que é uma péssima pastagem, porque ele é muito fibroso. Ele tem muita sílica, então ele machuca a boca do gado. E se o gado tá machucado, ele reduz o seu ganho de peso”, explica. E agora, está no Pampa inteiro.
“Esse tipo de coisa, esse tipo de interferência, acontece o tempo inteiro e ao mesmo tempo em que os nossos mecanismos de regulamentação sofreram muito nos últimos anos. Sofreram não apenas com a despolítica ambiental da esfera Federal, mas também com a esfera estadual e isso é importante que se diga”, desabafa a pesquisadora Ana Rovedder.
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INVISÍVEL ATÉ NO PAPEL
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A invisibilidade do Pampa pode ser constatada, também, quando olhamos para estratégias de conservação e mesmo para a legislação. O levantamento do MapBiomas indica, além da devastação, que o Pampa tem a menor proporção de unidades de conservação dentre todos os biomas brasileiros, com apenas 3,3% do território protegido. E destes, 2,4% de uso sustentável e somente 0,9% de proteção integral. Em relação às áreas naturais protegidas no país, é o que tem menos representatividade no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), representando apenas 0,4% da área continental brasileira protegida.
O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que prevê a proteção de pelo menos 17% de áreas terrestres representativas da heterogeneidade de cada bioma. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, as “Áreas Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira” resultaram na identificação de 105 áreas do bioma Pampa, destas, 41 foram consideradas de importância biológica extremamente alta. Números que tornam os 3% ainda mais trágicos.
CAPÍTULO IV DO MEIO AMBIENTE
Art. 251. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.
§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, o Estado desenvolverá ações permanentes de proteção, restauração e fiscalização do meio ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente:
XVI – valorizar e preservar o Pampa Gaúcho, sua cultura, patrimônio genético, diversidade de fauna e vegetação nativa, garantindo-se a denominação de origem.
Apesar de a valorização e a preservação do Pampa constarem na Constituição do Estado, não há uma legislação específica para proteger o bioma. Em 2020, o governador Eduardo Leite (PSDB) sancionou o Novo Código Ambiental. O projeto foi aprovado apenas 75 dias após a apresentação do texto pelo Executivo e alterou 500 pontos da legislação vigente até então sem passar sequer pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da casa. Para se ter uma ideia, o texto do código anterior foi discutido ao longo de nove anos até ser aprovado, em 2000.
O governo diz que há um avanço, porque o Código anterior não mencionava o bioma e agora se prevê a proteção. Mas isso é porque o Pampa só foi reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente em 2004. E o novo texto é bastante nebuloso.
O código – que foi aprovado com um esforço do Executivo, de parte do Legislativo e do setor do agronegócio – indica que o Bioma Pampa terá suas características e proteção definidas por lei específica, mas não explica como isso será conduzido. Ao mesmo tempo, libera usos do solo da região sem necessidade de autorização de órgão ambiental. Por exemplo, um produtor rural pode substituir a pecuária pelo plantio de soja. Sem autorização.
Os deputados Jeferson Fernandes (PT), Miguel Rossetto (PT) e representantes de organizações da sociedade civil articuladas na Coalizão pelo Pampa protocolaram um projeto de lei que dispõe sobre a conservação e uso sustentável do bioma, mas o texto ainda tramita na Assembleia Legislativa. Mas até que ele seja aprovado – se for -, o único dispositivo que proteção de que o Pampa dispõe é uma ação civil pública de 2015. Há oito anos, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Capital, representada pelos Promotores de Justiça Annelise Monteiro Steigleder, Josiane Camejo e Alexandre Saltz, integrantes do Núcleo de Proteção ao Bioma Pampa, ingressou com ação civil pública contra o Estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de assegurar a proteção jurídica.
“A nossa ação civil pública, ela foi bem específica para impedir a emissão de licenças ou autorizações para conversão de campo ou para realização de qualquer empreendimento que pudesse impactar a vegetação nativa sem que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente exigisse a reserva legal de 20% das propriedades rurais”, explica a promotora Annelise. Segundo ela, o MP-RS atacou o Decreto Estadual 52.431/2015, que, ao distinguir as áreas rurais consolidadas por atividade pecuária das áreas remanescentes de vegetação nativa, definidas no texto como áreas não-antropizadas, desconsiderou evidências científicas no sentido de que a atividade pecuária não causa supressão do campo nativo. É a isso que o biólogo Marco Azevedo se referia lá atrás.
A consequência prática do decreto seria, então, a dispensa da reserva legal para os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais localizados no Pampa, independente da atividade. “Esse decreto tratou a vegetação do Pampa como uma grande área rural consolidada, porque geralmente tem gado ali pastando. Então o Estado, ele entendeu que a presença desse gado significava a supressão da vegetação nativa. E aí seria tudo área consolidada. E na visão técnica, acadêmica, dos vários especialistas que a gente ouviu para fazer a ação judicial, a presença do gado não não descaracteriza os remanescentes de vegetação nativa”, disse a promotora.
A ação postula que, quando da aprovação da localização da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural, o Estado do Rio Grande do Sul respeite o percentual de 20% da área do imóvel mantida com campo nativo, ainda que ocorra a atividade de pecuária na área de vegetação nativa remanescente. Pede, ainda, que seja reconhecida a ilegalidade da anistia em relação às infrações administrativas praticadas no período de 22 de julho de 2008 a 25 de maio de 2012, já que esta anistia não está prevista no Novo Código Florestal.
Mas neste ano surgiu um novo problema: o novo zoneamento da silvicultura.
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AS VISÍVEIS LAVOURAS DE ÁRVORES
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Apesar de ser difícil para uma leiga identificar traços específicos da degradação do Pampa, algo me chamou a atenção no trajeto entre Rosário do Sul e Santa Maria, horas antes da minha entrevista com a professora Ana Rovedder. Eu sabia da existência de algumas porções de florestas no Pampa, embora menos comuns. Mas também sabia que elas não ocorriam nos municípios que eu havia percorrido naquelas dias. Ou seja, as florestas imensas que eu avistava agora só podiam ser fruto da silvicultura. Pouco depois, a professora Ana confirmou o motivo do meu espanto. “O Pampa também tem floresta, embora não seja o predomínio, não é o ecossistema que predomina. Nós temos um predomínio de floresta em mosaico com campo nativo naquela região de Caçapava, Piratini, Canguçu, Santana da Boa Vista. É uma região toda “dobrada”. Lá tem floresta”, explica. Olhando para o mapa do Rio Grande do Sul, constatei que estávamos longe dessas cidades. De fato, as árvores que oprimem o visual da estrada são espécies exóticas.
A silvicultura, embora não seja a maior, também é uma ameaça importante ao bioma Pampa. Plantam-se verdadeiras lavouras de árvores que retiram uma quantidade grande de nutrientes do solo e consomem água a ponto de inutilizar o espaço no longo prazo. E em vez de o governo do Estado frear o avanço dessa ameaça, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou um novo zoneamento a partir de um estudo encomendado justamente pela indústria de celulose. Segundo a nova regra, as espécies exóticas como pinus e eucaliptos podem cobrir mais de 10% do território gaúcho. Uma área extra de até 3 milhões de hectares. Isso significa que a área ocupada pela silvicultura pode quadruplicar e ocupar um espaço equivalente ao estado do Rio de Janeiro.
As regras que estavam em vigência até então haviam sido aprovadas em 2009 com base em estudos da extinta Fundação Zoobotânica e com ampla discussão. Desta vez, a decisão foi baseada em um relatório financiado pela multinacional CMPC, uma das maiores produtoras de celulose e papel do mundo, que produz no RS há dez anos e tem o maior interesse em explorar a região. Mas quem protocolou a proposta do Novo Zoneamento no Consema foi a Federação das Indústrias (Fiergs). No conselho, o texto foi avaliado pela Câmara Técnica de Agropecuária até que, em março deste ano, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) abriu uma consulta pública e deu prazo de 10 dias corridos para discussão. Tirando sábados, domingos e feriados, restariam quatro dias para debate – foi durante a Páscoa.
De novo, coube ao Ministério Público Estadual intervir e determinar a extensão do prazo. A promotora Annelise Monteiro Steigleder, que assinou a peça, também recomendou que o estudo fosse submetido também à Câmara Técnica de Biodiversidade – e não apenas a da Agropecuária – e que fossem incorporadas as contribuições da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Graças à intervenção do MP-RS, a consulta pública sobre o zoneamento acabou recebendo 215 contribuições da sociedade.
Segundo o parecer da Fepam, o estudo apresentado pela Fiergs é “insuficiente e inadequado” e pode tornar impossível a restauração do ambiente natural. A Coalizão pelo Pampa e o NEPRADE também se manifestaram contrárias ao novo zoneamento, mas a proposta original foi encaminhada praticamente intacta.
O Rio Grande do Sul foi o quinto Estado brasileiro com maior produção de madeira em tora oriunda da silvicultura entre 2018 e 2020, conforme a última edição do Atlas Socioeconômico. Foram produzidos 13,9 milhões de metros cúbicos por ano no período. Grande parte disso é para exportação.
“A grande dificuldade quando a gente pensa no Pampa é que ele é um mosaico de propriedades privadas. E falando bem concretamente, nos falta uma política pública de proteção desse Pampa que também trabalhe com estratégias de ordenamento territorial, de realmente incentivar até o proprietário rural que tem gado. Porque hoje o apelo é econômico, então a pessoa que tem uma propriedade rural e de repente ela tem uma oportunidade de implantar uma lavoura de soja ou de arroz, enfim, ela vai querer fazer isso porque para ela é mais lucrativo”, desabafa a promotora Annelise Steigleder.
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ALIANZA DEL PASTIZAL
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A Alianza del Pastizal pode ser um exemplo das possibilidades de se retomar o uso para o qual o bioma é predestinado. No site da iniciativa, a primeira coisa que se lê é: produção agropecuária que conserva o Pampa. E é um bom resumo. O grupo reúne produtores rurais e parceiros institucionais que trabalham para aliar produção e conservação ambiental.
Não é uma caridade, é uma ideia inteligente que segue a lógica da sugestão da promotora Annelise. O objetivo é promover sistemas de produção agropecuária mais eficientes e que operem em harmonia com os campos nativos, mantendo e aumentando os “serviços ecossistêmicos” prestados, com foco na monetização desses serviços. Ou seja, explora-se o potencial de projetos de créditos de carbono e outros mecanismos de pagamento por serviços ambientais. Assim, o produtor tem incentivo financeiro para proteger o Pampa, o campo nativo é conservado e a biodiversidade de fauna e de flora continuam presentes. Completando o círculo.
Basicamente, o produtor que mantém determinado percentual de campo nativo intacto é recompensado por isso.
A Alianza del Pastizal atua nos quatro países em que o Pampa está presente. Já são 158 mil hectares de campos nativos preservados por meio de 290 produtores parceiros que estão em 38 municípios. “Já que maior parte do campo nativo que resta está nas mãos de proprietários privados, trabalhamos essa questão de recompensar produtores que se comprometessem a criar gado e produzir carne mantendo no mínimo 50% de campo nativo. Mas tem produtoras da Alianza que tem 90, 95 e até 100% da área da propriedade de campo nativo”, explica o biólogo Glayson Bencke, que também faz parte da Alianza.
No Brasil, são 250 propriedades aderentes, segundo Glayson. E os benefícios já são evidentes. “A gente já visitou 70 propriedades da Alianza ao todo. Nessas 70 propriedades, a gente já encontrou 290 espécies de aves, mas, mais importante que isso, a gente já encontrou 85% das espécies de aves campestres do Rio Grande do Sul do Pampa. Isso quer dizer que a gente está, sim, mantendo a biodiversidade do Pampa, pelo menos em termos de aves.”
A ave-símbolo da Alianza é um pássaro chamado veste-amarela. Eu consegui fotografar um exemplar desse passarinho lindo, que voa pelos campos dos quatro países. Só fiquei devendo o registro pro Glayson. Mas ele contou que as propriedades visitadas guardam muitas espécies raras. “Das 29 espécies de aves ameaçadas de extinção no Pampa, 23 encontram um lugar nessas 70 propriedades”, comemorou.
E outro motivo pelo qual a Alianza é um projeto a ser celebrado, se dá em função da relação desses proprietários com a terra, que é diferente da de quem aposta na expansão do monocultivo. “Essa terra está na família há muitos anos, ela já foi dividida entre os filhos, entre os netos, entre os bisnetos dos ancestrais dessas pessoas. Então essa terra, ela tem um significado muito maior para alguém que sempre viveu na região do Pampa e é pecuarista. É uma tradição, há raízes, é diferente para um arrendatário que vem de fora para plantar soja.” Ou seja, protege-se, também uma cultura, um modo de vida, uma comunidade.
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O BIOMA INVISÍVEL
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O conto do bioma invisível começou a ser escrito antes de eu entrar no carro com destino à Piratini, a primeira parada. Foi quando eu conversei com o Glayson e ele me disse algo que foi para a estrada comigo: “A erosão não pega só a terra. Pega os costumes, pega as tradições, pega a cultura e leva tudo embora.”
Depois da viagem, a entrevista com a promotora Annelise Steigledder completou o ciclo com a seguinte frase: “Essa paisagem é também um patrimônio cultural. E nós não temos um instrumento que proteja paisagem, que pressupõe um olhar integrado, um olhar amplo para a região. Qual é a estratégia para manter essa paisagem?”, pergunta.
Não é só o Pampa bioma que desaparece nesse conto. É o Pampa cultura, o Pampa símbolo do Rio Grande, o Pampa que a gente ouve nas canções nativistas, o Pampa que também é imaterial. Todo esse Pampa é invisível a quem não tem interesse em protege-lo. Seja por desinteresse, desinformação ou por dinheiro.
“Quando a gente trabalha fala em preservar espécies de plantas e animais, em conservar nascentes, em conservar as beiras de rios do Pampa – e da Mata Atlântica -, a gente está falando de conservar processos produtivos, a gente está falando em conservar cultura. Nós estamos falando em conservar as próprias aglomerações humanas”, revela a professora Ana, em mais uma tentativa de mostrar para quem quiser ver, como diz a canção de Leonardo. Mostrar para quem quiser ver um lugar pra viver sem chorar.









