Samir Oliveira

O Gapa agoniza em praça pública – literalmente

Samir Oliveira
24 de agosto de 2017
Foto: Clarinha Glock/Gapa

Quando o Gapa nasceu, em 1989, eu tinha apenas um ano de idade. Não acompanhei sua história. Assim como minha geração não vivenciou os anos iniciais do surgimento da AIDS. O terror social que a doença causou e a munição que o vírus deu a discursos homofóbicos é algo que vejo apenas em filmes e livros. Não é algo que senti ou vivi.

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Durante 28 anos o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS) travou uma batalha sem tréguas contra o vírus. E como se luta contra uma doença invencível? Com acolhimento, informação e muitos, muitos parceiros

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O atendimento psicossocial e jurídico totalmente gratuito a pessoas com HIV só foi possível por conta de parcerias com órgãos públicos e uma rede de financiamentos nacionais e internacionais. No início dos anos 2000, o Gapa tinha 120 voluntários, uma sede de dois andares na Cidade Baixa, veículo para atividades externas e realizava cerca de 2 mil atendimentos por mês.

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Hoje o Gapa agoniza em praça pública. Literalmente, já que no dia 11 de agosto foi enxotado de sua sede. O local foi interditado pela Justiça. Foi apenas a pedra de cal que estava faltando para coroar uma agonia que já durava muitos anos

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Na avaliação dos dirigentes do Gapa, a sociedade, de uma maneira geral, deixou de se preocupar com o problema da AIDS. Os financiadores passaram a destinar recursos a outros continentes, como a África, e os governos já não se mostravam parceiros. Assim o Gapa murchou de 120 para cinco voluntários. Teve que se desafazer de seu veículo e não conseguiu mais conservar as mínimas condições de uso de sua sede. Nem o banheiro mais estava funcionando.

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O aluguel da casa era pago pela Secretaria Estadual de Saúde desde 1992. Mas há nove anos o governo simplesmente resolveu deixar de pagar os alugueis e abandonar o Gapa à própria sorte

Era o segundo ano do governo de Yeda Crusius (PSDB)

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Desde então o Gapa vinha tentando negociar com órgãos públicos uma solução para que pudesse continuar desenvolvendo seu trabalho. Em 2009 o Estado chegou a cogitar a cedência de um imóvel na Avenida João Pessoa, mas isso nunca se concretizou. Em 2011, a prefeitura ofereceu um prédio na Rua Jerônimo Coelho. O local foi reformado para receber o Gapa e outras organizações, mas acabou sendo interditado pelo Corpo de Bombeiros e hoje está sendo leiloado.

A agonia do Gapa, como podemos ver, não é de hoje. O desrespeito é tão grande que o Estado sequer notificou o grupo a respeito do despejo da sede. Os voluntários encontraram o local lacrado pela Justiça, com todo o acervo lá dentro. São milhares de documentos com informações sigilosas das pessoas que são atendidas pela ONG, bem como materiais informativos, campanhas e relatórios. Praticamente toda a memória da epidemia de AIDS no Rio Grande do Sul foi interditada junto com o Gapa.

Agora este acervo ficará sob os cuidados (?) da Secretaria Estadual da Saúde. Enquanto isso, o Gapa segue em busca de uma sede. O governo municipal se comprometeu em pagar um aluguel, mas os dirigentes da ONG estão receosos. Aprenderam a duras penas que não é possível ficar dependente dos humores políticos dos governos.

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A agonia do Gapa é o mais cruel retrato da indiferença com que o Rio Grande do Sul enfrenta o problema da AIDS

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Os motivos ainda precisam ser melhor explicados – e arrisco dizer que há inclusive elementos psicológicos e culturais para tanto –, mas o fato é que o Estado apresenta os mais primitivos índices de contaminação da doença do Brasil.

O RS possui uma média de 38,3 casos de detecção de HIV para cada 100 mil habitantes. É quase o dobro da média nacional, de 19,7 casos. Ficamos atrás apenas do Amazonas, e por muito pouco, já que o estado do Norte possui 39,2 casos por 100 mil habitantes. Porto Alegre é a capital com a maior taxa de detecção do país: 94,2 casos por 100 mil habitantes. Um índice cinco vezes superior ao nacional.

Um Estado cuja iniciativa privada, poderes públicos e entidades sociais deixam uma organização como o Gapa agonizar em praça pública ficará preso ao horror destes índices por um bom tempo. Talvez isso nem cause espanto. Por isso precisamos olhar para trás. Especialmente nós, LGBTs, por tanto tempo demonizados em todos os cantos por conta do HIV. Se estamos aqui hoje, de cabeça erguida, é por conta do trabalho incansável de organizações como o Gapa.

Foto: Clarinha Glock/Gapa