Pedro Henrique Gomes

Crítica – Rifle

Pedro Henrique Gomes
19 de agosto de 2017

A alegoria caprichada da paisagem campeira é um elemento sedutor de Rifle. Que tanto os elementos documentais se embaralhem com os ficcionais, assim como em Castanha, longa anterior de Davi Pretto, não chega a surpreender.

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É a atmosfera de um registro, que é a um só tempo puro e impuro, que Rifle busca captar

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O trabalho intelectual (força de conjunto) do filme é claramente entendido, principalmente a partir das soluções sonoras e visuais, cujas imagens decisivas são marcadas por uma trilha sonora alucinante, que golpeia, com elegante violência, os sentidos de quem as vê.

Ao combinar os elementos de uma tradição de imagens que está rigorosamente assentada em outra cultura visual (a cultura heroica e épica, da aventura e da tragédia dos desertos norte-americanos, do monument valley; desnecessário dizer, da linha do horizonte conceituada por John Ford), apropriando-se, portanto, de seu imaginário (de sonho e violência), Rifle conecta a trajetória de seu personagem aos elementos constitutivos do faroeste clássico americano, buscando, entre planos firmes do céu e da terra, aludir a esse universo sem sequestrar os seus significados.

Uma das características exemplares dessa tradição é a disputa territorial. No western, essa disputa se articula a partir de uma série de conflitos morais, econômicos, familiares, amorosos e raciais. Não que Rifle não os tenha, mas deles não se alimenta para que suas situações dramáticas se estabeleçam, isto é, não temos a necessidade premente de um justiçamento épico que, para o bem ou para o mal, viria postar o corolário sobre os bustos de seus homens combatentes. Justiçamento, nessa tradição, não é justiça. A atmosfera do filme, herdeira de uma cinefilia muito particular e híbrida, é também dona do pensamento sobre a história das imagens que busca tanto resgatar quanto discutir.

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Filme político, claro. Uma política sanguínea, cuja amarração, tensão e conflito estão projetados em torno de uma luta antiga, contra a qual é muito difícil triunfar

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Quando Dione, o protagonista discreto do filme, arma em punho, dispara contra vários carros que ameaçam se aproximar do espaço que ele representa, ele está nos dizendo claramente ao menos uma coisa: nós somos esta terra. Ex-militar, Dione trabalha para um fazendeiro de poucos recursos e o interesse de um grande proprietário naquelas terras surge como uma ameaça a qualquer coisa que eles possuam lá. Dione trabalha, ele também, para um proprietário, mas um decerto menos ambicioso – de acordo com a insinuação do filme.

O cotidiano muito tranquilo da fazenda se vê ameaçado pelo expansionismo comercial, descaracterizador das paisagens rurais desde sempre. O filme apenas incorpora os elementos simbólicos desse embate ao movimento interior de seu personagem central, que vaga solitário, centrado na atividade rural que lhe sustenta e, no limite, que lhe perturba, angustia e confunde. Dione e seu rifle respondem com disparos e estilhaços.

Rifle não se furta inclusive a arroubos moderadamente fantasiosos e delirantes (uma saída de roteiro ao psicologismo) que povoam a imaginação do protagonista. Para ele, malgrada a sua história militar, é muito difícil não pensar em partir para a luta armada. Como filho da península, como gaucho, como parte dos mitos populares e da tradição regional, Dione considera inaceitável sentar e negociar. Ele acha melhor não e por isso propõe uma ruptura violenta. Entende, institivamente, que ceder ao dinheiro seria ceder também a dominação como instrumento de conquista.

Rifle, de Davi Pretto, Brasil, 2017. Com Dione Ávila De Oliveira, Francisco Fabrício Dutra dos Santos, Sofia Ferreira, Evaristo Pimentel Goularte, Andressa Nogueira Goularte.